Abraça-me para Sempre 2/3 - Carla Ribeiro


Era cada vez mais difícil lutar contra a dor, a agonia excruciante que haviam plantado no seu corpo e que não dava sinais de se atenuar. Perdera a noção dos dias decorridos desde que fora conduzido ao interior daquela sala imunda e tanto os actos imaginativos do torcionário como os espaços de abandono que intercalavam com esses momentos afectavam dolorosamente a resistência que, aos poucos, desfalecia.
Primeiro fora a luz, o jogo das lâmpadas ofuscantes contra as manchas antigas marcadas naquela parede. Recusava-se a imaginar o que as provocara ou – pior – a quem poderiam ter pertencido. Amarrado de braços e pernas à fria cadeira de metal, ali o haviam deixado, por mais tempo que o que conseguia contar, a imaginar que destinos cruéis lhe estariam reservados. Depois, ele viera.
Com o rosto coberto por uma máscara negra como as roupas que o cobriam, falara e a sua voz ecoava nas paredes, como se um novo tom de terrível e de inevitável se inserisse, assim, nas ameaças que proferia. Prometera-lhe um tormento excruciante, uma tamanha implosão de dor que acabaria por o conduzir à loucura bem antes do fim que, então, já desejaria com todas as suas forças. E pormenorizara-lhe tudo o que pretendia fazer-lhe, descrevendo até ao mais ínfimo detalhe os lugares onde as lâminas entrariam, que músculos rasgariam na sua passagem e que consequências imutáveis lhe ficariam marcadas na carne.
Inicialmente, tentara resistir. Podia ser demasiado fraco e ter falhado em ocultar-se ao inimigo, mas era fiel ao seu povo, mesmo que a sua condenação fosse já evidente. Não os trairia. Não podia permitir que o seu corpo falhasse ao seu dever. Com o passar de demasiadas horas, contudo, naquela prisão de angústia e de abandono, as poucas forças que lhe restavam começavam a ceder. Agora, sozinho com a dor do seu corpo ferido por tormentos bem maiores que os inicialmente prometidos, aliados a momentos como aquele, em que apenas a súplica dos seus sentidos clamava às paredes pela misericórdia do fim, sabia que não podia continuar. Já não era capaz de suportar em silêncio os segredos que o mantinham ali.
Em breve, o torturador voltaria e, com ele, as lâminas, as cordas e o fogo. Sabia que era impossível ser resgatado pelos seus e que, mesmo que o pudessem encontrar, as mutilações operadas sobre o seu corpo eram irreversíveis. Sabia também que, enquanto contivesse a informação de que dispunha, a morte continuaria a ser-lhe negada e a dor das lâminas a trespassar-lhe a carne e das cordas esticadas que lhe deslocavam as articulações não cessaria, mil vezes repetida até que ele por fim libertasse o conhecimento que insistia em esconder.

Com um gemido sinistro, a porta abriu-se e, mais uma vez, o mascarado colocou-se ao alcance do seu olhar. Daquela vez, contudo, a voz do cativo não mais se prenderia em palavras de desafio ou de inútil resistência. O inimigo vencera. Sabia-o. E, ante uma agonia já demasiado forte para suportar, ele não tinha alternativa senão ceder ao que lhe era exigido e revelar, afinal, onde se escondiam os poucos que restavam entre os que haviam persistido em resistir.




Abraça-me para Sempre 1/3 - Carla Ribeiro


Sentia-a tremer entre os seus braços magros, aninhada contra a protecção do seu corpo. Por mais que os fogos dispersos pelos corredores do refúgio lutassem para trazer aos perseguidos um pouco de luz e calor naquele sepulcro subterrâneo, todas as tentativas eram insuficientes para preencher o imenso vazio. E para ela não havia luz. A visão abandonara-a anos antes, num tempo em que também ela podia lutar pela sua vida, sem necessidade de se entregar completamente aos cuidados do irmão para que este a protegesse. Ainda assim, talvez o calor do fogo a pudesse confortar, acalmar o violento temor que ela se forçava a controlar nos confins do seu abismo pessoal, as sombras que lhe restavam no coração.
- Kari… - murmurou ele, suavemente, enquanto lhe acariciava os cabelos – Kari, estás bem?
Ela ergueu o rosto, como se, com aqueles olhos vazios de vida, tentasse ainda encontrar nas sombras os traços do irmão.
- Sim. – respondeu – Mas não me deixes. Não me largues, Aleks. Abraça-me com mais força.
Fez o que lhe pedia. De que outra forma poderia agir quando, na verdade, ambos partilhavam o mesmo medo visceral e incontrolável? Aqueles sinistros corredores eram o último abrigo dos condenados, o único esconderijo que não fora ainda descoberto pelos invasores. À superfície, o som dos disparos e o fúnebre troar das explosões compunham a sua sinfonia de morte, num nítido aviso de que o fim estava agora demasiado próximo. E Aleks sabia que, se os que haviam partido fracassassem, não tardaria até que também eles e os poucos miseráveis que se espalhavam por aqueles corredores encontrassem o seu fim.
Seria aquele o seu último dia? Apreensivo ante o futuro, Aleks contava o tempo decorrido desde a partida dos companheiros em missão de resgate. E, por mais que tentasse manter viva a ténue ilusão da esperança, sabia como seria difícil arrancar um cativo às mãos dos conquistadores. Alguém que, com a pressão certa, acabaria por dar voz aos seus mais sagrados mistérios e que, assim, os condenaria a todos.
Voltou a fitar a irmã, em busca de uma força que o arrancasse aos seus próprios medos. Era ela a sua razão para não ter ainda desistido da luta. Cega e indefesa, precisava da sua protecção. Agora, contudo, enquanto a olhava, frágil e vulnerável nos seus braços, Aleks sabia que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por lhe falhar, que nada poderia fazer quando os conquistadores chegassem. Quanto tempo lhes restava? Teria o seu segredo sido já revelado? Seria aquele abraço o derradeiro traço da sua ligação à irmã?
O som de passos que se aproximavam arrancou-o em sobressalto aos seus pensamentos. Kari, contudo, apesar do seu próprio medo, tranquilizou-o.
- É o Sirm. – disse. Conhecia o som dos seus passos.
Alguns momentos depois, o homem apareceu. O cansaço era evidente nos seus traços, consumido pelo esforço, tal como muitos dos que ali se refugiavam. A perturbação de Sirm, contudo, o desânimo resignado que transbordava da sua postura, era um motivo de temor para todos os que ali se escondiam, já que era aquele o homem a que chamavam líder e também um dos que partira na missão de resgate cujos resultados ansiosamente esperavam. Agora, olhava em redor, numa mistura de receio e necessidade de contar aos que restavam o catastrófico resultado do seu empreendimento.
- Dói-me anunciá-lo – começou, por fim, incapaz de conter o tremor na sua voz – mas aproxima-se o mais negro dos nossos dias. Chegámos tarde demais. O nosso irmão já tinha sido conduzido à prisão dos invasores.
Kari gemeu. Foi Aleks, contudo, quem deu voz aos seus temores.
- Por esta altura – disse – já lhe devem ter arrancado tudo o que precisam de saber. Já nos devem ter localizado.
Sirm assentiu.
- Não tardarão em vir até aqui. – disse – Quem tiver algum lugar para onde fugir, é melhor que o aproveite já.
Foi como se um suspiro desolado nascesse do próprio cerne daqueles corredores. Não havia já nenhum lugar seguro e todos o sabiam. Nada os podia proteger de um inimigo que, com a sua força infinitamente superior, optara por extinguir, num massacre, todas as possibilidades de reacção da parte dos vencidos.
Destroçado, Sirm fitou-os. Um tempo houvera, quando os conquistadores tinham acabado de tomar o poder, em que fora oferecida aos derrotados a escolha da servidão. Ele, contudo, não hesitara em recusar uma vida de escravo e muitos haviam sido os que persuadira a prosseguir com a resistência. Via agora que tudo o que conseguira fora conduzi-los até aos braços da morte.
- Tens medo, Sirm? – perguntou Kari, de súbito, como se pudesse tocar os seus sentimentos – Por nós? Não tenhas… Não obrigaste ninguém a seguir-te. Chegámos até aqui porque quisemos.
O líder fitou-a, perturbado.
- Sim, Kari, tenho medo. – admitiu – Por todos nós. Não queria este destino para ninguém…
Como se, de alguma forma impossível, os seus olhos cegos pudessem fitar as profundezas daquela alma atormentada, Kari fixou em Sirm a sua expressão.
- Espera connosco. – convidou, ciente da aura que, como um toque invisível, reflectia a sua vontade de se afastar, de os poupar à presença do verdadeiro culpado pelo destino que enfrentavam – Se estiveres aqui será mais fácil. Será mais simples lembrar.
- Lembrar? – perguntou Sirm, surpreendido – O quê?
- Lembrar que a morte – concluiu Aleks, em sintonia com os pensamentos da irmã – é um tormento mais breve que a escravidão.




A Senhora dos Dragões - Inverno - Parte 1/5 - Liliana Novais



Ela passou uma noite agitada, tendo acordado cansada e faminta. Haviam passado semanas desde a última vez que conseguira caçar uma presa de grande porte. Apenas encontrava pequenas presas, as quais eram imediatamente dadas às suas três adoradas crias. Ela olhou para estas com preocupação, quer ela, quer o seu companheiro Seneth conseguiriam sobreviver mais algum tempo sem comer, mas elas não, ainda eram muito pequenas e frágeis para isso. Tinham de caçar algo em breve, senão iriam morrer à fome, e ela não podia permitir isso. Na manhã anterior, Seneth partira em caçada e quando regressara não trouxera nada. Hoje seria a sua vez, iria tentar caçar enquanto ele ficava a descansar e a tomar conta dos seus rebentos.
Imzahr era o mais velho, nesse Verão fazia duzentos anos e em breve aventurar-se-ia pela primeira vez no mundo exterior abandonando o ninho. Ele partilhava-o com mais duas crias. O que era muito raro uma vez que os dragões reproduziam-se muito lentamente. As duas crias eram fêmeas, gémeas de cinquenta anos chamadas Alnith e Zahin. Elas necessitavam de muitos cuidados devido à sua tenra idade.
Aluminir levantou-se lentamente e dirigiu-se para a entrada da gruta onde habitavam. A luz do Sol ofuscou-a momentaneamente. As suas escamas eram brancas e prateadas, e brilhando ao Sol, não se conseguia distinguir um padrão definido, mas tal como as manchas de uma zebra, as suas escamas eram únicas para cada dragão, como a nossa impressão digital é pessoal e única no mundo inteiro. Seus olhos eram verde-esmeralda e seu olhar era profundo e conhecedor. Ela tinha seis membros, duas asas e quatro patas, as quais terminavam em garras afiadíssimas. A sua cabeça era triangular, apresentando dois espigões na cabeça. Seu dorso era liso, ao contrário de muitas espécies que apresentam uns espigões a partir do seu pescoço até à sua cauda. Quando os seus olhos se habituaram à luz, esticou as suas asas e voou para os céus.
Aquele Inverno estava a ser muito rigoroso para todos os habitantes daquelas paragens. Todos os animais haviam migrado para bem longe, para sul em direção ao calor. Mas nesse ano parecia que tinham ido para mais longe ainda, fora do alcance dos dragões que tinham crias, os quais não se podiam afastar muito delas. Os mais fracos, que haviam ficado para trás, já tinham sido caçados pelos habitantes famintos das montanhas Farlam e da floresta de Holvar.
As montanhas eram o ponto mais a norte de Ahelanae, e eram a zona que mais sofria no Inverno. Estas estendiam-se por centenas de quilómetros. A sua extensão variava com a espécie de que se falava. De acordo com os elfos, seriam oitocentos, mas segundo os dragões, seriam mil e duzentos quilómetros, nunca chegaram a um consenso. A floresta de Holvar crescia na base das montanhas envolvendo-as, as árvores de folhas perenes criavam um manto verde e branco no Inverno. Era aí que habitavam as ninfas e as fadas.
Ela havia tomado uma decisão, iria arriscar tudo e voar até mais longe do que seria imaginável, iria até aos limites da floresta e das montanhas. Se fosse necessário, iria procurar alimentos fora do seu mundo mágico, para o mundo exterior. Sabia que tal era um enorme risco, mas tinha que o correr. Pelo menos tentaria, e caso fosse bem-sucedida e caçasse uma presa de grande porte ganhava mais algum tempo, possivelmente o necessário até os animais voltarem às montanhas com o início da Primavera que não tardaria a chegar, se a tríade quisesse.
Ela estava tão perdida nos seus pensamentos que nem reparou que o dia tinha nascido sem uma única nuvem no céu, anunciando o final do Inverno e o regresso dos dias quentes e com eles das manadas. Mas, o desespero que sentia era tanto que nem prestou atenção à pequena alteração que estava a ocorrer. Tinha de voar o mais depressa que conseguisse para chegar à Porta Branca o mais cedo possível, para passar para o mundo exterior.
Continua...





O Pacto - Vitor Frazão

  Clóvis estava sentado no centro do círculo protector, quando a lâmpada do candeeiro começou a piscar e a velas em seu redor a abanar, embora não houvesse brisa.
  3h30. O fim aproximava-se.
  As baratas e ratos saltaram das fendas na parede para o soalho, fugindo em pânico perante o poder profano que convergia sobre a sala.
  3h31. O relógio no pulso de Clóvis parou e a lâmpada extinguiu-se, deixando apenas as velas para iluminar a leitura. A temperatura caiu a pique, as tábuas do soalho estalaram e uma gota de sangue pingou entre as letras impressas, escorrendo do nariz do jovem, que continuou a ler, mesmo quando uma figura sombria, vestido no fato ensanguentado de Clyde Barrow, se materializou na sala, erguendo-se das sombras. 
  – Clóvis Barnabé – clamou a criatura, apoiando-se na bengala esculpida com a madeira do Wasa, inundando o espaço com a sua voz cavernosa e o cheiro azedo a sangue, putrefacção e cinzas – os teus 33 anos entre os vivos chegaram ao fim, é hora de honrares o pacto de teu pai e vires comigo. Resistir é inútil, a tua alma pertence-me e arrastá-la-ei pelos Portões Negro do…
  – Yah, dá-me só dez minutos, pode ser? Estou mesmo no último conto.
  “Cachopos! Já ninguém respeita as Forças do Inominável…” queixou-se a entidade sombria, sacando do relógio do Capitão Edward Smith e dando um pontapé na barreira protectora, que na sua opinião era uma anedota, capaz de ser pulverizada pelo arroto de um diabrete de 3ª categoria.
  – Ó que se lixe, tenho tempo – autorizou, guardando o relógio e encolhendo os ombros perante a insignificância de dez minutos face à eternidade. – Que lês?
  – Vollüspa – Antologia de Contos de Literatura Fantástica.
  – Bom?
  – Excelente.
  – Posso ler, quando acabares? Não quero abusar…
  – Na boa.
  – Fixe.

As Crónicas de Decessus – O Demónio de Wharrom Percy 1/5 - Pedro Pereira


As chuvas de Dezembro caíam com grande intensidade na escuridão da noite. Chovia torrencialmente há horas, deixando as estradas e os caminhos completamente alagados, transformando-os em autênticos rios de lama.
Montado no dorso do seu garanhão negro, William tentava proteger-se da chuva com o seu manto preto, o que lhe conferia um ar sinistro na escuridão da noite. Há muito que perdera a conta às horas que cavalgava. Um camponês dera-lhe indicações sobre a existência de uma vila na proximidades, mas era quase impossível enxergar o que quer que fosse naquelas condições.
Ao lado do cavalo, Moonraider, o encorpado lobo cinzento, fiel companheiro de William, estancou. O animal começou a farejar e apontou o focinho para o horizonte.
O rosnar de Moonraider foi o sinal que William procurava. Olhando para o horizonte, conseguiu vislumbrar as ténues luzes que provinham de Wharrom Percy.
– Vem – ordenou William para o lobo, com a sua voz grave e rouca. De seguida, conduziu o garanhão em direção à vila.

As ruas de Wharrom Percy encontravam-se completamente desertas. Nada que não fosse de esperar, tendo em conta o temporal que se fazia sentir e a avançada hora da noite.
Quando finalmente encontrou a pequena estalagem, William desceu do dorso do seu cavalo e prendeu-o junto à entrada.
– Fica.
Obedecendo às ordens de William, Moonraiser soltou um latido de desagrado e sentou-se ao lado do cavalo, com ar pouco satisfeito.
O ambiente no interior da estalagem aparentava estar calmo. Dada a hora da noite, havia apenas meia dúzia de camponeses sentados nas mesas mais próximas da lareira da sala comum. A maioria nem deu pela sua entrada. Estavam demasiado entretidos a esvaziar as suas canecas de hidromel.
William encaminhou-se para o balcão onde se encontrava o estalajadeiro, um homem gordo e com ar mesquinho. Pelo caminho, puxou para trás o capuz do manto, revelando os seus cabelos brancos e olhos amarelos, sinais que denunciavam a sua condição…
– Arranje-me um quarto e traga-me uma caneca de hidromel – declarou William, ao mesmo tempo que deixava cair algumas moedas de prata no balcão.
– É para já, Senhor. Vou preparar o nosso melhor quarto.
William foi então sentar-se numa das mesas livres. Não tardou para que lhe levassem uma caneca cheia, com a bebida dos deuses.
O forasteiro saboreava calmamente a sua bebida, quando um homem moreno e franzino, envergando um manto azul, se sentou a seu lado.
 – O que o trás por estas bandas, meu Senhor? – questionou o homem, num tom de voz pomposo e extremamente irritante. – Não é habitual termos visitantes.
William manteve-se em silêncio, na esperança de que o homem fosse embora. Estava habituado àquela escumalha, sempre há procura de alguém que se oferecesse para pagar umas bebidas, em troco de uns dedos de conversa. Porém, este parecia não querer partir sem a sua resposta.
– Estou apenas de passagem…
– Pensei que tivesse sido atraído pelas mortes. Um caçador de demónios como você…
Aquelas palavras deixaram William em alerta. Se o homem conhecia a sua identidade, isso podia significar que havia gente suficientemente estúpida naquela terriola para o tentar enfrentar. Era a principal desvantagem de ter a “cabeça a prémio”. Porém, William decidiu participar no jogo, antes de começar a pintar o chão de vermelho com a sua espada.
– Eu não sou nenhum caçador de demónios. Além disso, duvido que a Peste Negra possa ser um…
William tomou mais um trago do seu hidromel, com uma atitude de desdém.
– Alguém com a “cabeça a prémio” devia ter mais cuidado com a sua identidade, Decessus
O homem nem teve tempo para mover um único músculo. Numa fracção de segundo, William retirou uma pequena adaga da manga do manto e, por baixo da mesa, encostou-a à virilha do homem.
O sujeito empalideceu de imediato, ao sentir a lâmina afiada.
– A menos que não tenhas amor à tua pila, sugiro que escolhas a tuas palavras muito cuidadosamente…
– Eu sabia que eras tu! Vi o teu retrato no cartaz! És tão sádico como contam!
– E o tempo está a passar, e eu estou a ficar aborrecido… – declarou William, em tom de ameaça, aumentando a pressão da lâmina.
– Temos um demónio aqui na nossa vila… Ele tem atacado as nossas mulheres e crianças. Só na semana passada morreram quatro pessoas – explicou o homem, apressadamente.
William podia ver as gotas de suor a escorrerem pela face do homem. Não passava de um campónio que gostava de se armar em valente. Se se mantivesse aquele impasse por muito mais tempo, o desgraçado ainda se mijava nas calças.
 – Por favor, precisamos da ajuda de alguém como você!
– As boas ações não enchem o estômago, nem ferram cavalos…
– Nós temos dinheiro! Nós podemos pagar! Juro! Por favor!
            – Nesse caso, começa a falar…
Continua…









Crónicas de Amarílis 1/3 - Sara Farinha



 “Quando todas as promessas foram quebradas e as esperanças aniquiladas o futuro torna-se doloroso e previsível. Se eu pudesse voltar atrás e corrigir o que fiz…” Excerto do diário de Ivan Fallon.

Ivan agachou-se na pequena plataforma de pedra, aguçou os seus sentidos e esperou. A lama espalhada pelos seus cabelos loiros e a roupagem escura ajudavam a escuridão da noite a encobri-lo dos olhos da sentinela de vigia.
O dia chegaria em breve e Ivan tencionava aproveitar o céu vermelho da aurora para distribuir mais um pouco dessa cor… espalhando-a pelo chão com a ponta da sua espada.
Os seus olhos azuis cobalto perscrutaram o acampamento improvisado, identificando o local onde os guardas dormiam e onde a sentinela lutava contra o sono de uma madrugada emergente. A sentinela que não passava de um miúdo, com não mais de dezanove anos, um projecto de homem cuja lâmina da sua espada media mais de metade da sua altura.
Os restantes guardas dormiam profundamente, crentes que o escudo mágico os protegeria de visitantes indesejados. Mas Ivan Fallon não era um visitante, a barreira mágica não os protegia dele porque a magia de Amarílis reconhecia os seus súbditos… mesmo aqueles que haviam sido renegados pela sua comunidade. A força de Amarílis bailava nas suas células e isso seria sempre o seu passaporte de acesso sem detecção.

Descer sorrateiramente do rochedo iria ser uma tarefa delicada, mas Ivan conhecia aquela paisagem… há sete anos que aquelas pedras eram a sua casa. Resgatar Caio era arriscado, mas possível.
Caio, o seu irmão mais novo, permanecia amarrado ao tronco dum carvalho. De olhos fechados, com a cabeça encostada à árvore, os pés e as mãos restringidos por nós tão apertados que os seus dedos pareciam inchados mesmo de longe, aparentava ter novamente doze anos. Imóvel, ele ostentava um esgar de dor nas suas feições adormecidas, o seu cabelo estava cheio de terra e folhas num emaranhado de raízes loiras, o seu torso mostrava várias feridas em diversos estados de cura.
Mesmo ostentando todas essas feridas, Caio Fallon era uma cópia mais nova e menos brutalizada de Ivan, a quem a existência selvagem nos arredores de Amarílis imputara milhares de outras cicatrizes.

Em sete anos de exílio, nas florestas de Amaríllis, Ivan nunca pensara que este dia chegaria. O dia em que tivesse de lutar contra as tropas de Allure, a toda-poderosa e arrogante governante do reino. Agora não havia nada que o impedisse de a matar. Não depois de ordenar que Caio sofresse a expurgação pública.
Eles iam retirar-lhe a consciência humana, deixá-lo como um recipiente vazio, sem razão nos seus actos. Allure trazia de novo a vingança inscrita na alma e desta vez o alvo era Caio, mais um peão usado para punir Ivan.
Sete anos depois e a sede de poder de Allure não abrandara. A ganância em governar Amarílis impôs que fossem eliminados todos aqueles que, por sangue e magia, estivessem na linha de sucessão. Os seus pais, cujos laços sanguíneos os ligavam directamente ao trono, haviam perecido na primeira vaga de assassinatos. Ivan escapara à chacina por um milagre e Caio, com doze anos, fora aprisionado.
Quando as acções de Allure transpiraram para fora de Amarílis, a morte da maioria dos herdeiros do trono e o exílio de Ivan estavam consumados. Ela ordenara a sua captura e execução pelo que permanecer longe da comunidade fora a única opção.
Ela condenara-o a uma existência sem a força vital da sua comunidade, sem os laços poderosos da magia que os suportava a todos como parte integrante de um todo que os transcendia. Isolado da magia durante sete anos, Ivan recorrera à força física e à determinação para sobreviver nas florestas de Amarílis. A magia era agora um eco fraco nas suas células, um vislumbre do que poderia ter sido.

Ivan iniciou a descida, agarrando-se a cada fenda com a força dos seus dedos maciços, deslizando pelos lancis naturais da rocha. Estava cada vez mais próximo das duas dúzias de homens que dormiam espalhados pelo chão da floresta.
No exílio, Ivan recebia esporadicamente notícias de Caio, mas essas novidades nunca o apaziguavam. O irmão mais novo parecia destinado a arranjar problemas e Ivan temia pelo futuro do rapaz. Caio tornara-se num prisioneiro valioso, um escravo sob a protecção da comunidade, um jovem cuja vivacidade e tenacidade lhe valeram uma certa tolerância durante a puberdade. A situação de Caio era tão despropositada que confundira Ivan, arriscando a permanência do seu irmão em Amarílis por mais tempo do que desejara.
Mais uma vez, fora tolo em acreditar que Allure esquecera o passado, ela nunca permitiria que um membro dos Fallon permanecesse pacificamente em Amarílis.

O miúdo de vigia, tolhido pelo sono, balançava instavelmente sobre uma rocha quando Ivan lhe apertou o pescoço. Num abraço sufocante, os pés dele remexeram um pouco, tentando libertar-se do garrote corporal de Ivan. O quase imperceptível som despertou Caio que, de olhos semicerrados, nada mais podia fazer excepto observar os movimentos do irmão.
Os restantes guardas ressonavam poderosamente, abraçando as suas espadas e a inconsciência de horas de sono pesado, enquanto Ivan acomodava o corpo do sentinela na plataforma rochosa que havia servido de posto de vigia.
Ivan pisou o solo com a fluidez de um felino, desembainhou o gládio que trazia às costas e avançou. Os sons da vida animal e da sonolência humana abafavam a sua presença, mais uns passos e Caio estaria ao seu alcance. Aproximou-se furtivamente do irmão, cortou as amarras, retirou a mordaça e arrancou Caio do chão por um braço. Subitamente ouviram-se os murmúrios de um feitiço a ser lançado.
Caio proferia as palavras mágicas que faziam descender sobre eles uma redoma de contenção. Aprisionados numa bolha de energia estática, que espalhava um brilho azulado pela floresta de Amarílis, Ivan imobilizou perante o significado daquele acto… Caio traíra-o.

Fantasy & Co.

Fantasy & Co nasceu da vontade de criar um espaço totalmente dedicado à literatura fantástica. Num universo virtual saturado de espaços individuais, este blogue vem concretizar a esperança de trabalharmos em função de um objectivo comum: Divulgar a Literatura Fantástica Portuguesa.

Aqui propomos a aproximação dos leitores ao trabalho dos autores emergentes no domínio do fantástico. Proporcionamos o espaço onde o cruzamento de ideias e experiências contribuem para a expansão deste género literário. Apostamos na inspiração de e para Portugueses.

Neste espaço vão encontrar textos originais, no formato de Contos de dimensão reduzida ou distribuídos por vários artigos, todos sobre o domínio da literatura fantástica, publicados periodicamente e sob a égide de um olhar atento às preferências dos nossos leitores.

Para um público apreciador de fantasia, de criações literárias originais, de autores dedicados ao género, apresento-vos Fantasy & Co e convido-vos a participar neste projecto, uma viagem inédita ao mundo da Literatura Fantástica Portuguesa.

Conheçam os nossos autores residentes aqui…