Bicho Cidrão – A natureza do bicho 5/5 – Vitor Frazão


- Não é possível! – exclamou Costa, olhando freneticamente em redor, numa incaracterística quebra de compostura
- Só que é – retaliou Silva baixando-se junto ou corpo de Figueiredo, sujando os joelhos no sangue misturado do camarada e do bicho Cidrão. – Pensei que lhe tinhas acertado na tola.
- Estava demasiado longe e tive medo que ele se mexesse. Escolhi o alvo maior – confessou, mal conseguindo engolir o embaraço. Em sua defesa, nunca acreditara que ele conseguisse sobreviver ao tiro de caçadeira nas costas e à queda. O que seria aquela coisa? – Da próxima não cometerei o mesmo erro.
- Ele está a sangrar bastante – indicou o colega, coçando o bigode ao olhar de soslaio para o óbvio rasto de sangue do Oculto ferido. – O quer que seja, não regenera muito depressa.
- Óptimo – comentou a líder, recuperando a habitual frieza e seguindo o rasto sem hesitação. – Silva, de que é que estás à espera?
O Obliterador continuava ajoelhado ao lado do camarada tombado, parecendo mais preocupado em tapar-lhe o rosto e murmurar uma prece sobre o cadáver do que em dar qualquer sinal de pretender seguir a líder. Havia algo no cenário que para ele não fazia sentido. O corpo de Pedro estava desfeito, mas não tanto quando devia estar com uma queda daquela altura…
- Devíamos levá-lo – sentenciou, erguendo-se.
- Figueiredo? Ele pode esperar mais uns minutos.
- Mas nós não. A noite está a fugir-nos. Será difícil levar o corpo e ainda desactivar o resto as armadilhas antes do amanhecer, ainda por cima com um operativo a menos. Deixemo-lo sangrar mais um bocado.
- E correr o risco de ele recuperar? Nem pensar – recusou, não entendendo a relutância do subordinado, nem se preocupando em descobrir o motivo. – Vamos.
- Os locais sabem que estamos aqui, se não limparmos esta porcaria quanto antes corremos o risco de despertar demasiadas atenções quando descermos – lembrou, usando o protocolo para justificar a sua decisão, embora a verdade fosse muito menos linear. – A única coisa mais importante que limpar o mundo de Ocultos é manter o segredo da sua existência. Figueiredo sabia isso. Esperava o mesmo de ti.
- Aceito o risco – afirmou, mal contendo a frustração. – Não faz sentido deixarmos isto a meio quando estamos tão perto.
- Seja, boa sorte. Eu vou fazer o meu dever – declarou, virando as costas e voltando a baixar-se diante do cadáver, pensando na melhor e mais discreta maneira de o transportar.
- Quê?! Silva, tu vens comigo, é uma ordem.
- Não – respondeu, sem se dar ao trabalho de olhar para trás. – Se tens problemas com isso queixa-te ao tenente. Tenho a certeza que ele concordará comigo, que retirar é a opção mais sensata.
- Tu vens comigo, senão… – ameaçou, avançando e colocando-lhe a mão no colarinho.
- Senão o quê? Dás-me um tiro das costas? – desafiou, olhando por cima do ombro sem esconder a fúria e o desprezo. – E depois quem usarias como isco, Marisa?
O rosto da Obliteradora transformou-se numa disforme máscara de raiva. Por momento, Silva pensou que ela, de facto, iria dar-lhe um tiro nas costas, mas acabou apenas por lhe virar as suas, soltando com a língua um estalido de indiferença. Ao afastar-se ainda ladrou umas ordens, numa tentativa de salvar o orgulho ferido. Uma parte dele queria tentar convencê-la a não ir, contudo, sabia que não adiantaria.

***

Localização: Montado do Cidrão, Curral de Freiras, Câmara de Lobos, Madeira, Portugal
Alvo: Bicho Cidrão
Espécie: Indeterminada
Estado: Obliterado

            Joaquim Silva não teve quaisquer escrúpulos em mentir no relatório. Sabia que se um dia a verdade fosse descoberta, que o bicho Cidrão continuava vivo, na melhor das hipóteses, a sua reputação seria arruinada ou, muito mais provável, eliminá-lo-iam. Na verdade, não havia ninguém para contrariar o seu relatório. Pedro e Marisa estavam mortos. Encontrara-a três dias depois de se separarem. O estado do corpo indicava que dera uma queda violenta e que alguém tentara assisti-la, não sendo capaz de reparar os massivos danos internos.
            Apesar de não poder dizer que sentiria a falta dela ou que não tivera o destino que merecia, sofreu a sua perda, como a de qualquer outro camarada. Morte, independentemente de quem fosse a vítima, era para ele sempre um motivo de tristeza.
            Mais do que permitir que um Oculto vivesse, o que por si só já era um acto hediondo, Silva estava a protegê-lo. A sociedade secreta militar em que ele e os camaradas foram criados acreditava que o mundo devia ser purgado de todas as aberrações sobrenaturais, por inofensivos e insignificantes que alguns fossem, para proteger a humanidade. Contrariamente ao que podia parecer, não perdera a fé em tal filosofia, só que, mais do que purificar o mundo de monstros, fora educado para acreditar que viviam para aniquilar o Mal e, o quer que o bicho Cidrão fosse, não era malévolo. Se o fosse teria tentado salvar Pedro, tanto agarrando-o no desfiladeiro, como protegendo-o com o próprio corpo durante a queda? Ou tratado das feridas de Marisa?
            Agora, o experiente Obliterador acreditava que seu pai não se limitara a sair de mãos vazias da última campanha no montado do Cidrão, antes foram confrontado com a mesma realidade e chegara a igual conclusão, que, com tantos e tão horríveis monstros a assombrar os cantos escuros do mundo, os recursos da organização tinham melhores locais onde serem gastos do que a caçar a uma infeliz criatura, que apenas queria ser deixada em paz para choramingar.



Bicho Cidrão –Valor de uma vida 4/5 - Vitor Frazão


Caindo para o vazio, Figueiredo largou instintivamente a espingarda. Diante dos olhos não lhe passou a vida apenas a noção que ia morrer, que seria esborrachado de encontro ao fundo do penhasco, num espectáculo de sangue e carne moída.
Então, tão depressa como começara, a queda parou, com um safanão repentino, deixando-o pendurado pela gola da camisola, braços e pernas suspensas como uma marioneta sem marionetista. Pouco depois ouviu a espingarda estilhaçar-se dezenas de metros abaixo, perdida na escuridão. 
Num misto de gratidão e surpresa olhou para cima, vendo a fronha animalesca do seu salvador.
Na melhor das hipóteses o bicho Cidrão, em toda a sua disforme glória, parecia a tentativa desajeitada, como se feita por um deus em treino, de fundir um cão sarnento, um lobisomem magricela e um homem feio como uma noite de trovões. Apesar de sujo de terra e lama, unhas fendidas imundas e pele quebrada por dezenas de feridas infectadas de pus, o braço que segurava a camisola de Figueiredo podia ser considerado humano, já o resto, coberto com uma camada de pêlo longo, sujo e desgrenhado, nem por isso. Na posição em que estava, não lhe conseguia ver as patas traseiras, imaginando-as como a esquerda, peludas, providas de garras, desproporcionalmente compridas e, apesar do aspecto magricela, fortes o suficientes para impedir ambos de caírem do penhasco. O focinho canídeo era curto e um pouco achatado, as orelhas compridas e da boca pendia-lhe uma longa e deselegante língua, assim como generosa quantidade de baba.
A criatura falou, todavia, entre a surpresa perante tal capacidade e a extensão da desajeitada língua, Figueiredo não conseguiu entender o que ele disse, de início.
- Agarra-te! – repetiu o bicho, quase cortando a língua com as afiados presas a cada movimento da boca.    
O jovem Obliterador hesitou por momentos, porém, o instinto de sobrevivência depressa se sobrepôs à repugnância e agarrou com ambas as mãos o braço que o impedia de morrer. Quando estivesse de volta a solo firme dar-se-ia ao trabalho de pensar no que fazer, naquele momento queria apenas salvar o couro.
Fincando com mais força a mão animalesca na rocha e flectindo as patas, o bicho Cidrão tentou puxar o humano para segurança, mas o esforço alargou-lhe a ferida no ombro, provocada pelo tiro de Silva. Novo safanão e Figueiredo voltou a ser baixado de repente, tendo o Oculto de usar todas as forças que lhe restavam para evitar largá-lo.   
O jovem Obliterador, com o coração a bater como se quisesse fugir-lhe do peito, olhou para cima, para os olhos âmbar do bicho, iluminados pelo luar, vendo neles genuína preocupação e ternura. Pareciam dizer-lhe que, apesar de tudo e mesmo com risco da própria vida, não o abandonaria e que a mera ideia de o fazer aterrorizava-o. Não entendia o porquê daquela generosidade, deu apenas por si a confiar no inimigo. Talvez aquela situação fosse simplesmente demasiado familiar para a criatura… 
Arfando como um desalmado, o bicho Cidrão concentrou todas as forças e voltou a puxá-lo. Desta feita, Figueiredo ascendeu muito mais depressa e já se via a salvo, quando uma explosão de sangue lhe encharcou a cara, cegando-o. O corpo do bicho ficou frouxo e o Obliterador voltou a cair, arrastando consigo o bom samaritano.
- Merda, Marisa! Para que é que foi isso? – protestou Silva, correndo para a beira do penhasco, caçadeira em punho, para tentar ver o que acontecera ao companheiro. – Podias ter esperado que ele o içasse.
- Ele era demasiado rápido, não podia arriscar – justificou a líder, expulsando o cartucho, sem revelar qualquer sentimento nas feições morenas e redondas, além de alívio por ter conseguido abater a aberração antes de ela se desviar. – Tive uma oportunidade e aproveitei, o puto teria feito o mesmo. Qualquer bom soldado teria.
- Ele tinha um nome – atirou, voltando-se para a ela, com amargura e desprezo, os seus dedos ficando brancos em redor da caçadeira. – Pedro Figueiredo. Se consegues viver com o que fizeste sem remorsos, o mínimo é lembrares-te disso.
- Não te armes em moralista comigo, Silva – retaliou ela, contundentemente fria, como se gelo lhe corresse nas veias. – Fazemos o que devemos. O resto não importa. Nenhum indivíduo é mais importante que a missão. O puto… o Figueiredo sabia isso. Esperava o mesmo de ti. De qualquer modo, o sacrifício dele não foi em vão. Menos um Oculto significa um mundo mais seguro.
“Sim conseguimos eliminar um monstro cujo único historial fora assustar uma dúzia de cães e aldeões” pensou, esforçando-se para se conter de enfiar uma chapada na fronha da superior. “Não esquecendo que cometeu o acto hediondo de tentar salvar alguém que o queria matar. Sem dúvida, o mundo pode respirar de alívio e tudo pelo preço, mais que justo, de apenas a vida de um jovem Obliterador. Uma pechincha.”
            Silva nascera no seio da organização, entendia bem a importância da causa e os sacrifícios que se esperava que fizessem por ela, contudo, não os aceitava de ânimo leve. Missão ou não, Obliterador ou civil, uma vida humana era uma vida humana, cabendo apenas ao seu portador decidir o que fazer com ela. Marisa não tinha o direito de roubar a escolha a Pedro, não num cenário daqueles, não contra um Oculto tão insignificante. 
- Vamos – ordenou a sargento, descendo a encosta sem olhar para trás – temos de confirmar que morreu.
- E resgatar o corpo.
- Sim, claro.
- O de Figueiredo também – cuspiu Silva, tendo a certeza que Marisa já se esquecera do Obliterador que assassinara, pensando apenas no cadáver do Oculto. Ela nem os via, cega pela causa.




As Crónicas de Decessus – O Demónio de Wharrom Percy 5/5 - Pedro Pereira


O Chichevache saltou sobre William, tentado atingi-lo com as suas afiadas garras. O guerreiro teve apenas tempo de se esquivar para a esquerda. Apesar do seu tamanho colossal, o demónio era bastante rápido.
Aproveitando o movimento, William rodopiou sobre si e tentou atingir a criatura com a lâmina da espada, mas esta bloqueou-lhe o ataque com as longas garras.
Não querendo dar tempo à criatura para contra-atacar, William deu um pontapé no focinho do demónio, obrigando-o a recuar. No mesmo instante, Moonraiser abriu as mandíbulas e abocanhou a parte de trás do joelho da besta, ferrando os dentes na carne.
Com um golpe rápido, o Chichevache tentou atingir o lobo. Porém, este foi mais rápido e largou a perna do demónio, afastando-se rapidamente. O demónio deu um salto e atravessou uma fenda no teto, refugiando-se no telhado da mansão.
Deixando que a energia que o rodeava fluísse através de si, William recorreu aos poderes do demónio aprisionado no seu interior. Usando essa energia, deu um salto sobrenatural e seguiu a criatura para o telhado.
Ao aterrar no telhado velho, várias telhas deslizaram e caíram para a rua, fazendo Decessus escorregar. Mal recuperou o equilibro, o guerreiro foi atingido nas costelas por um golpe, sendo projetado no ar em direção à beira.
Tirando partido dos seus reflexos sobrenaturais, William agarrou-se à berma do telhado, evitando assim uma queda que se podia revelar mortal. Usando os seus poderes, o guerreiro impulsionou-se no ar aterrou novamente no telhado após dar um salto mortal.
William e o Chichevache iniciaram então uma dança lenta em torno um do outro. Estudavam-se mutuamente e nenhum dos dois parecia querer ser o primeiro a avançar. Sempre que Decessus ameaçava atacar o demónio colocava-se de imediato numa posição defensiva. Já William optava por usar a espada para bloquear e afastar possíveis golpes da criatura.
William sabia que não podia manter aquele impasse por muito mais tempo, pelo menos se esperava sair vitorioso daquele combate.
Foi então que surgiu uma ideia na mente do caçador de demónios. Podia não funcionar, mas também podia ser o que precisava para distrair a besta, permitindo-lhe ganhar a vantagem no combate.
Deixando a energia fluir através de si, William fez levitar algumas telhas soltas atrás do demónio, atirando-as contra a nuca da criatura.
A diversão teve o resultado esperado. O Chichevache desequilibrou-se momentaneamente, colocando a perna direita numa zona fragilizada do telhado. O peso do demónio fez com que parte do telhado cedesse, prendendo o membro da criatura na fenda.
Deslizando pelo telhado húmido, William passou por entre as pernas da criatura. Com a espada em riste, cravou a lâmina no peito do demónio, fazendo-a rasgar a carne de cima a baixo. As entranhas da criatura a deslizarem para fora do corpo à passagem da lâmina. Num salto rápido, Decessus colocou-se novamente em pé e rodopiou sobre si mesmo. Com a lâmina da espada coberta de sangue, William recorreu aos seus poderes para ampliar a força do golpe e atingiu o pescoço da besta decepando-a.
Aproximando-se do cadáver sem vida, William empurrou a cabeça e o corpo da criatura, atirando-os do telhado. Caídos na rua, os restos mortais começaram a mudar de forma, assumindo de novo a aparência humana.
Alguns populares que passavam na rua repararam em William na berma do telhado da mansão, segurando uma espada ensanguentada e o corpo mutilado do padre Alexander caído na rua, sem vida.
– Ele matou o padre! – exclamou um dos populares.
– Apanhem-no! Assassino!
Não tardou a que a rua se enchesse de curiosos.
– Merda… – praguejou William.
Deslizou pelo telhado e atravessou a fenda no teto da mansão, partindo de imediato em passo de corrida.
Moonraiser aguardava já o guerreiro junto ao cavalo. William montou o garanhão negro e fez o cavalo partir a galope. Atrás de si, o caçador de demónios ouvia os gritos irados dos populares ficarem para trás à medida que se afastava da povoação.
Pelo menos, tinha recebido metade do seu pagamento. Era mais do que recebia na maioria das vezes. Mas no final do dia, era isso que contava…






As Crónicas de Decessus – O Demónio de Wharrom Percy 4/5 - Pedro Pereira


William passou o resto do dia a inspecionar o que restava da mansão da família Percy. O fogo parecia ter-se propagado de uma forma estranha, afetando mais a zona norte da mansão, destruindo tudo à sua passagem. William parou subitamente quando se aproximou das propriedades adjacentes a norte. Estas não se encontravam sequer chamuscadas, dando a ideia que o incêndio consumira a mansão de fora para dentro. O forte cheiro a enxofre no ar e a propagação do fogo, levava o caçador de demónios a crer que o incêndio tinha tido causas sobrenaturais.
Acompanhado por Moonraiser, o caçador vasculhou as poucas divisões da zona sul que tinham sobrevivido, procurando algum registo da informação que custara a vida à família Percy. Porém, o fogo atingira a mansão com tal violência que pouco restava. Apagar o rasto era fundamental para os demónios que se disfarçavam de humanos. Estes tinham de esconder a sua identidade para manterem o seu terreno de caça e aquele demónio em particular sabia bem como cobrir os vestígios.
No exterior, tinha começado a anoitecer, cobrindo o local de sombras, dando um ar ainda mais desolado ao local.
William ouviu um som vindo do corredor que dava acesso ao quarto onde se encontrava. Eram passos… Preparando-se para um possível combate, apertou o punho prateado da espada.
Decessus, calculei que o encontrasse por aqui…
– É um pouco tarde para explorações. Não acha, padre? – questionou sem retirar a mão do punho da espada.
Junto a William, Moonraiser começou a rosnar.
– Descobriu alguma coisa de interesse?
– Nada de que eu não desconfiasse já… O que faz aqui a estas horas?
– Vim ver se já tinha descoberto algo… Realmente foi uma tragédia o que aconteceu à família Percy – comentou o padre enquanto observava as paredes cobertas de negro.
– Há algo que eu não percebo em relação ao Lorde Percy, se ele possuía informações importantes sobre o demónio, porquê avisar apenas Chamberlain? Supostamente o padre também estava a ajudar a capturar o demónio…
– Está a insinuar algo? – questionou o padre calmamente.
– É um pouco estranho ter chegado à vila antes de os ataques começarem…
O clérigo sorriu e começou a andar lentamente em círculos pela sala.
– Coincidências…
– Eu não acredito em coincidências – comentou Wiiliam. – Não me espanta que Chamberlain e os habitantes da vila não consigam capazes de ver através da sua máscara. O disfarce de padre benfeitor quase me enganou. Por vezes, a verdade mais difícil de se ver, é a que está mesmo em frente aos nossos olhos…
O sacerdote parou de frente para William e sorriu, passando a mão pelos cabelos loiros.
– Estou curioso… A sua fama precede-o, mas de todos os relatos que ouvi, nunca ninguém mencionou o seu aspecto peculiar…
– E porque o haviam de fazer? Não sou propriamente nenhuma rameira com um bom par de tetas…
– Ora, ora... Não é muito comum encontrar sujeitos com o seu aspecto. Cabelos brancos, penetrantes olhos amarelos… Nasceu com essas características peculiares, ou desenvolveu-as?
– Quando era criança, fui possuído por um demónio. Os meus pais arranjaram um padre para executar o exorcismo, mas o desgraçado tinha pouca experiência e o demónio era demasiado forte. Eu recuperei o controlo do meu corpo, mas a criatura continua aprisionada dentro de mim.
– Daí os cabelos brancos e os olhos amarelos – concluiu o padre. – Mas se assim é, de certeza que deve ter adquirido outras habilidades bastante úteis…
Decessus deixou escapar um grunhido.
– Ainda não me disse o que faz aqui, padre?
Alexander sorriu e dirigiu-se para junto de uma janela, deixando que a luz da lua lhe banhasse a pele clara.
– Durante a minha vida, cruzei-me com indivíduos com habilidades pouco naturais. Muitos destes casos eram deveras fascinantes! Mas você… Você é o primeiro que conseguiu domar um demónio aprisionado no seu interior. Tal controlo sobre a criatura decerto que lhe trouxe algumas habilidades.
– E qual é o seu interesse?
– Digamos que eu gosto de colecionar capacidades invulgares… Quais são as suas? Força sobre-humana? Velocidade sobrenatural? Reflexos extraordinários? Ou talvez algo mais discreto? Vidência, por exemplo?
Wiiliam apertou com mais força o punho da espada.
– Demasiadas perguntas – respondeu o caçador de demónios. – Para um Íncubo é bastante corajoso. Se eu fosse a si já me tinha colocado a milhas, não está à minha altura…
– Um Íncubo?! Talvez os rumores sobre as suas capacidades como caçador sejam exagerados…
– Geralmente são – respondeu William em tom trocista. – Mais uma vez, qual é o seu interesse nas minhas habilidades?
– Absorver todas estas habilidades, domá-las, torná-las minhas… Chegará o dia em que ninguém será capaz de se opor à minha vontade.
– Não me parece que haja muitas habilidades em Wharron Percy…
– Infelizmente, a minha fome aumenta com os meus poderes. Toda a gente tem de comer…
– Um bocadinho tagarela para demónio sugador de vidas, não? – comentou William.
O padre sorriu com desdém.
– Não estás à minha altura, Decessus.
                – Isso é o que iremos ver…
– Sabes o que vai acontecer a seguir, certo? Vou partir cada osso do teu corpo deixando-te com dores excruciantes. E quando terminar, sugo-te a vida e os poderes muito lentamente…
– Prefiro a versão em que te deixo as entranhas de fora e a cabeça espetada numa lança, para os corvos a debicarem…
William desembainhou a espada e lançou-se ao ataque, mas o padre esquivou-se com um salto sobre-humano. O guerreiro ouviu os ossos de Alexander a estalar, enquanto este se contorcia e o seu corpo mudava de forma, revelando a sua verdadeira identidade.
A criatura que se erguia agora em frente a William tinha uns dois metros de altura, possuía um corpo musculado, com ombros largos e andava curvada. A transformação do padre reduzira a sua roupa a farrapos, revelado um denso e espesso pelo de tonalidade escura. No entanto, e apesar do porte imponente da criatura, era a cabeça que a tornava verdadeiramente aterradora. Possuía dois enormes chifres, semelhantes aos de um boi, que lhe nasciam um pouco acima dos penetrantes olhos vermelhos. O focinho do demónio terminava numa boca composta do que pareciam ser quatro mandíbulas extensíveis, repletas de afiados dentes e que escondiam uma longa e musculada língua negra, que terminava em dois aguçados espigões.
O que se erguia à sua frente não era um Íncubo, mas sim um Chichevache. Os Íncubos, tal como a sua versão feminina, o Súcubo, alimentam-se da energia vital das suas vítimas, colocando-as num transe profundo enquanto lhe sugam lentamente a vida do corpo. Contudo, alguém experiente como William, facilmente seria capaz de quebrar o transe induzido pelo demónio. Porém, um Chichevache era um adversário temível. As criaturas podiam viver milénios e serviam-se da sua língua para sugar a vida e as capacidades às presas. Quantos mais anos viviam, e vidas ceifavam, mais fortes se tornavam. Avaliando o comprimento dos chifres daquele Chichevache, tratava-se de um bem antigo e poderoso.

O Chichevache avançou em força sobre William, obrigando o guerreiro a desviar-se. Aquele ia ser um combate duro…





Bicho Cidrão – Elusivo Parte 3/5 - Vitor Frazão



- Quim?! Quim?! – chamou o jovem Obliterador, quando uma nota de alta frequência indicou que algo acontecera ao comunicador do camarada.
- Puto, ele vai para ti! Já estás em posição? – quis saber Costa, completamente indiferente ao destino do subordinado.
- Quase – disse, distraído, incapaz de ignorar a possibilidade de Joaquim ter acabado de tornar-se a primeira vítima confirmada do bicho Cidrão. – De onde vem ele?
A resposta, se a houve, foi abafada por um urro tão intenso que o jovem guerreiro sentiu vertigens, vendo o mundo alongar-se, precisando de todas as forças para evitar largar a espingarda e deixar-se cair de joelhos, com as mãos nos ouvidos. Os berros eram mais que os protestos furiosos e atormentados de um animal ferido, pareciam capazes de baralhar a realidade, atacando os sentidos.
Incapaz de entender de onde vinha o grito, pois parecia nascer de todas as direcções, incluindo de dentro de si, Figueiredo olhou freneticamente em redor à medida que subia. Acabou por ter sorte, conseguindo ver de soslaio, por uma fracção de segundo, algo grande e vagamente humanóide a correr sobre as quatro patas, por entre os arbustos, antes de se apoiar no tronco de um pinheiros para saltar, mergulhando numas silvas. Apesar da desorientação provocada pelo urro, quando disparou, a sua mão foi firme e a pontaria certeira. Ou tê-lo-ia sido, caso o bicho não se movesse no exacto momento do disparo. Joaquim tinha razão. Ele era muito rápido. Tanto que chegava a ser assustador. Não fosse pelo tamanho, acreditaria estar a caçar um maruxinho. O que seria aquela coisa?
Outra bala foi colocada na câmara de imediato, com um eficaz e rápido movimento da patilha, apenas para permanecer dormente, pois o alvo desaparecera sem deixar rasto, de um momento para o outro. Sem berro, sem passos, sem sequer o estalar discreto dos ramos, o montado cai num silêncio tumula que deixou o jovem caçador nervoso e mais atento do que nunca. Estaria o bicho escondido à espera que baixasse a guarda para lhe saltar à garganta? Preocupado, disparou um tiro para o último local onde localizara o Oculto, na esperança de provocar alguma reação, conseguindo apenas alvejar um arbusto.
Vendo a ridículo a que se estava sujeitar, agindo como um maçarico assustado na primeira missão, respirou fundo, procurando acalmar-se. Afinal, não existia motivo para alarme. Estava no topo da elevação, o bicho só podia passar por ele para fugir e caso descesse os outros apanhá-lo-iam. Já estivera em situações piores. A única coisa a fazer era manter-se calmo e atento.
Apesar da racionalização, assim que ouviu um movimento brusco disparou, mal fazendo pontaria. Novo urro ecoou, praticamente rebentando-lhe os tímpanos. Em sofrimento e desorientado, nem sequer pensou duas vezes ao sentir algo a passar perto de si, girando sobre os calcanhares de arma em punho. Esse primeiro passo precipitado foi suficiente para se aperceber que debaixo da sola já não havia rocha, apenas escuridão e vazio, enquanto a outra perna escorregava para o desfiladeiro.







A Senhora dos Dragões - Inverno - Parte 5/5 - Liliana Novais


Mergulhou em direcção ao riacho fechando as asas para aumentar a sua velocidade, um dos veados que estava de guarda deu o alerta e começaram todos a correr.

“Estão a ir exactamente para onde eu os quero”- pensou ela com satisfação.

Eles corriam cegamente enquanto ela planava por cima da copa das árvores guiando-os. Mas, mesmo assim, ela era mais rápida que eles e passava-lhes à frente, sempre que isso acontecia ela voltava para a cauda da manada, dando uma cambalhota no ar. Era desta vez, com tantas presas, iria de certeza conseguir caçar algo para levar para casa assim que chegassem à clareira. Estavam quase lá e ela preparou-se para o golpe final. Assim que chegaram à clareira, ela esticou as suas patas ergueu as asas um pouco, como que se estivesse a aterrar, e investiu sobre uma das corsas que tinha escolhido, fazendo com que as suas garras se cravassem nela e a matassem instantaneamente. A que ela tinha escolhido era grande o suficiente para alimentar as suas crias e assim salvá-las. Quando aterrou as suas patas dianteiras despedaçaram a jugular do animal e o seu pescoço com o impacto. O resto da manada partira, o que não lhe interessava uma vez que ela já tinha o que pretendia daquele lugar. Ela ergueu-se orgulhosa do seu feito, já tinha como alimentar as suas adoradas crias. Agora apenas teria de esperar que o animal sangrasse completamente antes de o levar.
Em Ahelanae, não tinha essa preocupação, mas ali era essencial, pois se uma gota de sangue caísse em cima de um ser humano, que por acaso passasse. Ela poderia ser descoberta no seu caminho para a Porta Branca, e tudo estaria perdido.
Continuava faminta, mas não se iria alimentar daquela carcaça, esta era para as suas crias. Então decidiu lamber o sangue do pescoço da corça morta, não era muito mas chegava para aplacar um pouco a fome que sentia.
Enquanto comia sentiu um odor de putrefação, este não vinha da presa que acabara de chacinar. Era sim de uma morte antiga, com algumas horas, pelo menos. Procurou a origem do cheiro, tinha de se apressar, uma vez que este era demasiado apelativo para abutres e os outros animais necrófagos, e ela não gostava particularmente de se encontrar com eles. Avançou em direção ao cheiro proveniente da floresta, segui-o até encontrar o corpo de uma mulher estendida, esta havia sido trespassada por uma flecha, estava abraçada a um embrulho como se o estivesse a proteger. Gentil e respeitosamente, afastou o corpo da mulher com o nariz. Soprou de modo a conseguir abrir o cobertor e para seu espanto encontrava-se um bebé no seu interior. Estaria vivo ou morto?
Com o auxílio dos seus poderes mágicos, conseguiu sentir o coração deste. Foi muito difícil encontrar qualquer batimento, pois este era muito fraco, estava quase a morrer. Ao olhar para aquele bebé pensou em quão indefesas as crias podem ser. O seu coração encheu-se de carinho e pena por aquele bebé moribundo, e uma lágrima correu dos seus olhos.
«Tenho de salvar esta cria de humano.» Pensou ela, deixando que a lágrima escorresse para a cabeça de modo a sarar o seu corpo frágil.
O seu espírito estava muito fraco e abandonava o seu corpo. Portanto, Aluminir deitou-se ao seu lado e tentou voltar a encontrar o batimento cardíaco do bebé. Demorou mais tempo do que anteriormente a encontrá-lo. Quando finalmente o sentiu, elevou o seu espirito, fragmentando-o. O pedaço mais pequeno pairava sobre o bebé, acabando por se juntar à alma deste. Um clarão de luz envolveu-os aquando da junção, e assim tudo terminara. Sentia-se satisfeita com a sua ação, mas essa sensação não durou muito tempo, ela não podia abandonar a bebé naquele lugar. Nunca antes um dragão prateado havia partilhado a sua força de vida com um ser humano, e o resultado era imprevisível. Ela teria de levar o bebé consigo, uma menina de meses de idade, era sua responsabilidade tomar conta dela e a guiar para usar os poderes, que eventualmente desenvolvesse, para o bem. Partiu de regresso à floresta mágica, levando a bebé e a sua presa.
FIM





A Senhora dos Dragões - Inverno - Parte 4/5 - Liliana Novais


Aluminir atravessou o portal para mundo exterior e ali estava ela, num penhasco com o mar à sua frente, onde ela estava era impossível chegar a pé, ou mesmo montado em algum animal por mais ágil que este fosse. Apenas voando é que se conseguiria chegar até aquele local.
Ela voou até ao topo do penhasco. De lá podia ver, olhando para o horizonte, uma cidade a Sul, apenas um dragão com a sua visão extremamente apurada é que conseguia ver a essa distância. Cheirou o ar, também estava frio deste lado, também era Inverno. Mas o frio era menos intenso que em Ahelanae.
A Porta Branca ligava Ahelanae a este país no exterior da cortina chamado Indahar. Era improvável que as outras portas ligassem também a este reino, uma vez que os habitantes de Ahelanae vinham de partes diferentes do mundo e tinham diferentes capacidades de mobilidade. Por exemplo, nem as sereias nem os dragões aqua-marina poderiam ter entrado pela Porta Branca.
Preparou-se para voar, esticou as suas longas asas e elevou-se no ar. A sua visão apurada permitia-lhe ver presas que estivessem no solo com clareza mesmo que tivesse de voar a altitudes muito elevadas. Ela tinha de se manter bastante longe do solo para o caso de que se alguém em terra a visse, pensasse que se tratava de um pássaro e não de um dragão, o que era bastante difícil, já que ela tinha dez vezes a altura de um cavalo alto. Tinha de se manter atenta quer a futuras presas, quer aos humanos. Estes eram considerados criaturas vis, sem qualquer respeito pela vida e pelas outras criaturas, apenas pensavam em si e serviam-se se tudo o que existia na Natureza ao mínimo capricho.
Ela tinha 1000 anos e nunca vivera no mundo exterior, sabia o que se passara através dos mais antigos, dos que haviam habitado o mundo exterior. Mas, ela não se podia perder nestes pensamentos, não agora, uma vez que toda a sua família dependia dela para sobreviver. Voltou a concentrar-se na sua caçada. Voava em círculos, procurando o que caçar e também mantendo o olho aberto para os humanos.
Observava a extensa floresta com árvores coladas umas às outras, seria difícil e arriscado caçar ali, poderia facilmente embater contra os ramos e magoar-se seriamente, ficando vulnerável no chão, impossibilitada de voar para junto da sua família. Tinha de procurar uma clareira suficientemente grande para que pudesse aterrar com segurança.
Ao fim de mais duas ou três voltas completamente concentrada na sua busca, encontrou o que queria. Ao longe, a Este, podia ver uma abertura nas árvores, dirigiu-se para lá, sempre voando alto, de forma a não ser detectada antes de estar pronta, alarmando os animais e assim perdendo toda a esperança de caçar algo para levar de volta.
Em Indahar notava-se que a Primavera esta a chegar, a neve já estava a derreter e os rios estavam a engrossar os seus caudais devido à água proveniente do degelo. As árvores que haviam perdido as suas folhas no Outono anterior já começavam a rebentar. A floresta estava de novo a acordar para a vida. O som de pássaros e animais enchia a floresta. Era a altura perfeita para caçar, uma vez que os primeiros animais migratórios já haviam chegado e estavam cansados da longa viagem que tinham feito, fazendo com que eles fossem presas fáceis para Aluminir. Agora só os tinha de localizar e guiar para a clareira. O problema que ela via com aquela clareira era uma estrada que a atravessava, mas ela não tinha outra hipótese, pois não havia outra perto. Tinha de se arriscar, mas antes de o fazer, tinha de se assegurar que o caminho estava livre.
Voou em círculos sobre a clareira durante algum tempo para estudar a estrada e não aparecia ninguém, não devia ser muito usada e grande parte dela estava coberta pelas árvores. Estando satisfeita com as suas conclusões, passou a procurar caça. Sempre voando em círculos, encontrou finalmente o que queria num riacho ali perto, uma manada de veados estava a beber água e descansava da longa viagem, eram mais pequenos que as presas que ela geralmente caçava em Ahelanae, mas para aguentar mais uns tempos serviam perfeitamente. Agora só tinha de os levar para a clareira.
Continua




Bicho Cidrão – No montado 2/5 - Vitor Frazão


O pequeno aglomerado de casas, com telhados laranja e paredes brancas, serpenteado por sinuosas estradas, encontrava-se cercado por uma imensa muralha cinzenta e verde de montanhas titânicos, cuja solidez parecia capaz de o proteger da fúria de todos os oceanos. Se as serras defendiam ou aprisionavam as gentes do sítio ficava ao critério de cada um. Figueiredo que sempre vivera no rebuliço do Porto teria odiado passar a juventude ali fechado. Já Silva não se importaria de assentar por aquelas bandas na reforma, isto, claro, se tal coisa existisse para um Obliterador…
Era nesses montes escarpados, densamente florestados, que Marisa e companhia estavam, quais pulgas no traseiro da proverbial vaca.     
Os tons verde-escuros, entrecortado pelo cinzento da rocha e pela alegria discreta de algumas flores campestres, foram substituídos pelo verde-claro enjoativo dos óculos visão nocturna, perante os olhos de Figueiredo, ao anoitecer. No seu posto de vigia, espingarda pronta, olhos e ouvido bem abertos, agachando nos arbustos, o jovem sentiu a temperatura descer impiedosamente, quando a Sol mergulhou atrás dos montes.
No mato ecoavam muitos sons, o vento a passar por entre os ramos dos pinheiros, fazendo-os bater uns nos outros, a azáfama de dezenas de pequenas criaturas nocturnas, mas não o famoso berro do bicho Cidrão
Apesar de consciente da importância de todas as missões, por insignificantes que pudessem parecer, uma parte dele desejava estar no Funchal, a experimentar essa tal “poncha” que Quim gabava tanto, em vez de ali, a gelar as nádegas, à caça de um Oculto sobre o qual pouco ou nada sabia.
Os sonhos com a poncha foram interrompidos por um estalido metálicos, vários metros abaixo, à esquerda, seguido de um tiro de caçadeira. Se o estalo apenas indicou que algo fora apanhado por uma das armadilhas, o tiro garantiu que seria o bicho Cidrão. Silva e Costa nunca disparariam sem motivo.
- É ele! Dia em dois – gritou Silva através do intercomunicador no ouvido de Figueiredo, que se apressou a desligar e tirar os óculos. Embora pequenos, a meia-dúzia de holofotes que plantaram na área tornaram a noite em dia, libertando um clarão de luz branca. Apesar da distância, na posição em que estava pouco mais via que vultos no arvoredo.   
Outro tiro e, desta feita, o famoso berro do bicho fez-se ouvir, qual matilha de cães a serem queimados vivos. Figueiredo deu a discussão por terminada. Não havia a menor hipótese de um lobisomem gritar daquela maneira.
- Silva, às tuas duas horas! – indicou a voz retorcida de Costa.
- O cabrão é rápido! – protestou o guerreiro, disparando no caos de arbustos a tremer e sombras multiplicadas pelos holofotes.
- Puto, consegues? – perguntou ela.
- Não tenho um tiro certeiro! – respondeu, optimista, pois, na verdade, ainda nem sequer conseguira ver o contorno da animália.
- Cuidado! – avisou Costa, menos de um segundo antes de um dos holofotes se apagar, rapidamente seguido de outros dois, tornando o cenário escuro o suficiente para as sombras provocadas pelos restantes dificultarem a visão, contudo, não tanto que lhes permitisse usar os óculos de visão nocturna.  – Ele vai escapar!
- Não dispares, Marisa. Vai para as tuas nove e entalamo-lo – comandou, ouvindo-se pelo intercomunicador o cartucho a ser expulso da caçadeira e o seu rosto a raspar nos ramos dos arbustos, à medida que corria. – Pedro, sobe. Precisamos de ti no topo, caso ele fuja.
- Mas… – murmurou, nervoso e desorientado.
- Vai! – ordenou a líder.
Tento em conta que ainda nem sequer conseguira ver o bicho, Figueiredo acreditava-se tão útil para aquela operação como um curso de macramé para uma lapa. Não obstante, condicionado pelo treino e pela autoridade dos superiores, apressou-se a fazer o que lhe mandavam, correndo por entre os arbustos até um ponto mais alto da encosta.
Entretanto, os berros do bicho tornaram-se mais frequentes e intensos, penetrando nos ouvidos dos perseguidores com a força de um aríete. O lamento agonizante parecia vir de todo o lado, desorientando-os.
- Tenho! – avisou Silva, deixando transparecer um ligeiro sorriso na voz, que se evaporou quase de imediato – Merda!



Bicho Cidrão – Diabo que não conheço 1/5 - Vitor Frazão


- Pode lá ser!
- Estou-te a dizer – garantiu Joaquim Silva, reposicionando a caçadeira no ombro ao subir a encosta, apontando a boca para o chão. – Pensa bem, o que sabemos sobre o bicho? A lenda fala de um pastor que, angustiado ao perder um cão fiel e estimado, mandou para o ar meia-dúzia de palavras irreflectidas e acabou por selar um pacto com o Tinhoso, sem dar por isso. Pouco depois tem o azar de cair por um desfiladeiro, como o canito, e desde então, volta e meia, ouvem-se os seus berros desesperados no montado. Típicos exageros e mal-entendidos à parte, parece-me a maneira do povo explicar o caso de um homem fundido com um animal. Diz-me lá, isso não te soa a um wendigo?
A inteligência viva e desejo de se afirmar faziam Pedro Figueiredo esquecer o constrangimento de contrariar o Obliterador mais velho, enquanto o seguia entre os arbustos, com passos vigorosos, embora desajeitados.
- Será o wendigo mais pacífico do mundo! Um lobisomem faz muito mais sentido, talvez um pobre desgraçado que tenha sido infectado por acidente.
- Pedro, vamos esquecer o facto de o bicho berrar, não uivar, e a falta de mortes, a lenda é demasiado antiga para o tempo de vida de um único lobisomem e não temos relato de qualquer clã na Madeira – indicou, parando e sorrindo por baixo do bigode. Ainda bem que o miúdo tinha pêlo na venta e não se ficava. Já não estava com paciência para aturar outro palonço como colega, até porque esses não costumam durar muito tempo…  – Numa coisa concordo contigo, é demasiado calmo para um wendigo. Numa ilha deste tamanho já era para ele ter umas quantas mortes às costas. Seja como for, sempre é uma hipótese mais credível que um lobisomem.
- Nunca se ouviu falar de um wendigo em Portugal. Não faz mais sentido…
- O quer que ele seja, não será surdo – sussurrou autoritariamente a líder do trio, agachada alguns metros à frente. – Mantenham as bocas fechadas e os olhos abertos. Não interessa o que o bicho Cidrão seja, apenas que lhe limpemos o sebo.  
- Seria interessante saber com o que contar – cuspiu Silva, conhecendo a sargento há demasiado tempo para se deixar intimidar pela fúria intensa que ela escondia atrás do timbre calmo, frio e contundente.
- Não importa. Wendigo, lobisomem ou qualquer outra aberração, com chumbo suficiente todos acabam por cair – garantiu, voltando a prender os curtos cabelos castanhos e enfiando-os debaixo do gorro negro. – Atacamos e não paramos de atacar até ele deixar de estrebuchar. No final, levamos o que sobrar connosco e os ratos de laboratório que se entretenham a descobrir a resposta.
“Como sempre, elegante como uma marreta, Marisa” pensou o guerreiro mais velho, suspirando perante a lógica simplista da líder.
Vendo bem, a Dona Mau Feitio tinha razão. Não importava o que o bicho Cidrão fosse, desde que o eliminassem e vinham bem precavidos para isso, de tal maneira que o experiente Obliterador duvidava que conseguissem passar por meros caçadores, caso as mochilas fossem revistadas.
Qualquer que fosse a verdade por detrás da sua história triste, o bicho Cidrão era um Oculto, um ser sobrenatural, um monstro cuja mera presença corrompia o mundo. Cabia a guerreiros como eles proteger o Homem de aberrações como aquelas.
A noção que este Oculto em particular escapara impunemente durante todas aquelas décadas, porque as evidências não tinham sido convincentes o suficiente para a chefia levar a lenda a sério, insuflava ainda mais a habitual paixão que a Marisa Costa nutria pela causa. No ver de Silva, ele tinha ainda mais motivos do que ela para levar aquele trabalho a peito, pois a última equipa enviada para verificar a lenda, há quase quarenta anos, fora chefiada pelo seu pai. Os predecessores voltaram de mão a abanar, convencidos, após várias noites no local, que a lenda não passava disso mesmo. Apesar de dedicarem a vida a caçar criatura que a maioria apenas acredita existirem em pesadelos, os Obliteradores sabem também que nem todos os monstros que povoam as histórias do povo são reais, por isso, o pai de Silva ter voltado de mãos a abanar em nada prejudicara a sua reputação. A situação mudou há uma semana, quando um Colector encontrou vestígios que provavam, não só, que a criatura existia, como também, que não era uma alma penada, como algumas versões da lenda indicavam, mas antes um Oculto de carne e osso, de espécie indefinida. 
Era impossível Silva não pensar naquela missão como uma oportunidade para redimir a honra manchada do falecido pai, não sendo por isso que obcecava com ela, como a sargento Costa. Não passava de um trabalho como qualquer outro e, como sempre, não falharia.   

Werewolf Blood by William Wraithe

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