A Floresta da Morte (4/4) - Pedro Pereira

O lobo fechou os dentes em torno da garganta de um dos mercenários, arrancando-lhe a traqueia numa cena que mais parecia retirada de um filme de terror. 

Boris e os restantes capangas dispararam sobre o animal. O lobo saltou em direção a Boris e abocanhou o cano da arma, partindo-a em duas. 

Boris recuou atabalhoadamente e sacou da faca de mato. O lobo voltou a investir, mas o mercenário desviou-se com um movimento rápido, espetando a lâmina no flanco do animal. 

Ivan verificou por duas vezes se os seus olhos não o enganavam. Do flanco da criatura escorria sangue azul. 

Ferido, o lobo recuou e curvou-se sobre si mesmo. 

Boris celebrava já o golpe desferido quando o físico do animal começou a mudar. Aos poucos, o pelo que lhe cobria o corpo começou a ganhar uma tonalidade verde e a transformar-se em vegetação. O focinho da criatura encolheu e adquiriu um aspeto quase humano, revelando um rosto de pele azulada e longas barbas compostas por lianas. 

A criatura ergueu-se na sua forma humana. Devia ter uns dois metros de altura e parecia irritada. Com a mão direita, arrancou a faca de mato do dorso e atirou-a para o chão, lançando um grunhido aterrador. 

– Um Leshy! – exclamou Dimitri, que juntamente com Boris e os restantes mercenários se colocou em fuga. 

A tentativa de fuga não passou disso mesmo, de uma tentativa. Como que por magia, a vegetação e as árvores pareceram ganhar vida, rodeando os humanos em fuga. 

Imobilizado pelo medo, Ivan assistiu impotente aos seus companheiros a serem esventrados por ramos de árvores. Os gritos de dor preenchiam o natural silêncio da floresta. 

Quando os gritos cessaram, a criatura avançou para Ivan. 

– Eu avisei-te para deixares a floresta em paz, humano – declarou o Leshy com uma voz profunda. 

– O quê?! 

Diante dos olhos de Ivan, a criatura voltou a mudar de forma, desta vez para uma mais familiar. 

– Você?! 

– Sim, eu – respondeu Petrovitch. – Eu avisei-te e tu não me deste ouvidos. 

– Quem é você?! 

O Leshy voltou a assumir a sua verdadeira forma. 

– Eu sou Yaren, o senhor da floresta. Com um único golpe, O Leshy arrancou a cabeça de Ivan, fazendo-a rebolar pelo chão manchando-o de vermelho. A sua floresta estava a salvo, pelo menos pro agora…


Parte 3:
Parte 2:
Parte 1:

A Floresta da Morte (3/4) - Pedro Pereira

Os trabalhadores regressaram na manhã seguinte, mas negavam-se a trabalhar enquanto o gigantesco lobo andasse em liberdade na floresta. Ninguém se queria arriscar a ser a próxima vítima. 

Perante as reivindicações dos trabalhadores, Dimitri convencera Ivan de que não tinha outro remédio senão chamar um grupo de caçadores furtivos. Tratava-se de um grupo de ex-militares, os compinchas de copos de Dimitri, que tal como o colega, eram encorpados e de cabelo cortado à escovinha. 

– Tens a certeza de que isto é boa ideia? – questionou Ivan ao lançar um novo olhar aos quatro indivíduos. 

– Não te preocupes, eles tratam do serviço – assegurou Dimitri. 

– Disso eu não duvido… Pensei que tinhas falado em caçadores, não em mercenários. 

Um dos homens começou a distribuir armas de fogo de grande calibre pelos companheiros. De certeza que não podiam ser legais. 

– Era uma urgência e tu querias os melhores. Aqui os tens. 

– Vocês os dois, então prontos ou quê?! – chamou um dos homens. 

– Mais que prontos, Boris – respondeu Dimitri. – Fica perto de mim. 

Apesar de a ideia não lhe agradar, Ivan acabou por concordar. Para os trabalhos recomeçarem tinha de se ver livre do lobo, e aqueles tipos pareciam ser a solução mais rápida. 


*** 


Ivan perdeu por completo a noção do tempo e da distância que já haviam percorrido no interior da floresta. Munido de uma faca de mato, Boris liderava o grupo e abria caminho por entre a vegetação enquanto seguia o rasto do lobo. 

– Raios! – protestou Boris. 

– O que se passa? – questionou Ivan. 

– O rasto do lobo desaparece aqui… 

O grupo estava junto a uma enorme árvore, numa zona com pouca vegetação. 

– Desaparece como?! Estamos numa zona praticamente sem vegetação e você disse que o rasto estava fresco! 

– Eu sei o que disse! 

– Boris, isto não tem lógica nenhuma – concordou Dimitri. – Ele teve de ir para algum lado. 

Uma estranha sensação na parte de trás da nuca fez Ivan olhar para cima. O seu coração gelou. Lá estavam aqueles aterradores olhos amarelos. 

Num abrir e fechar de olhos, o enorme lobo saltou do topo da árvore e lançou-se sobre o grupo. O predador acabara de virar presa…


Parte 4:
Parte 2:
Parte 1:

O Primeiro Voo - Liliana Novais

O coração de Aluminir batia acelerado. Aquele seria o seu primeiro voo sem a companhia dos pais. A ideia da independência excitava-a e amedrontava-a de igual modo. Aquele era o maior acontecimento da sua vida, pelo menos até aquele momento. O sangue corria-lhe quente pelas veias e os primeiros raios de sol da manhã faziam as escamas prateadas brilharem. Estendeu as asas e com apenas um impulso elevou-se no ar com a ajuda das correntes ascendentes. 

Pela primeira vez na curta vida sentia-se completamente livre e queria apenas explorar os seus limites. Elevou-se cada vez mais, subindo acima dos cumes das montanhas Farlan, a enorme cordilheira norte de Ahelanae. Subiu bem acima dos pássaros, deixando de os ver. A sua respiração tornou-se pesada e difícil, como se tivesse um peso a contrair-lhe os pulmões. Nem mesmo assim desistiu, prosseguiu com a subida. A visão começou a ficar turva e o ar que entrava nos seus pulmões não era suficiente.Perdeu os sentidos. Aluminir caía descontroladamente, aproximando-se cada vez mais depressa do solo. O chão estava ameaçadoramente próximo. Finalmente abriu os olhos. Teve apenas tempo de reagir e raspar na encosta de um dos picos mais altos, arrastando várias pedras. Sentiu-as a cortar a pele. Uivou de dor quando uma pedra embateu numa das asas. As suas garras raspavam na encosta, numa tentativa de abrandar, mas não conseguia agarrar-se e continuava a embater contra a parede da montanha. Finalmente conseguiu fincar as patas traseiras e abrandar a queda, acabando por se imobilizar. 

Suspirou, nunca mais faria o mesmo. Aprendera com o erro, quase perdera a vida. 

Esticou a asa.Sentia uma pontada de dor mas era suportável, felizmente não a tinha partido. Retomou o voo. Teria de ser mais cautelosa. Apenas queria sentir o vento sob as asas. Sobrevoou as montanhas em direcção à Floresta de Holvar. Acompanhou os pássaros, voando ao seu lado, pairando sob os altos picos. Fazia corridas com as velozes águias Tiran, as quais tinham metade do seu tamanho. Ria-se. Entendera, finalmente, o significado de ser livre, de poder voar. Estava feliz. 

Uma sombra tapou-lhe o sol. Assustada, olhou para cima. Um segundo dragão prateado surgiu no céu. Aluminir não estava à espera de companhia no seu primeiro voo. 

Iniciaram numa graciosa dança alada,como se duma corte se tratasse. Faziam piruetas, voos rasantes, em torno um do outro. Aluminir não queria admitir, mas estava a divertir-se com aquele dragão desconhecido. Estava curiosa, sem contar com os seus pais, nunca vira outro dragão. Queria falar com ele, conhecê-lo melhor. 

Ela olhou para baixo, já não estavam sob as montanhas, a verdejante floresta estendia-se agora por baixo deles. À frente, um enorme lago alongava-se, o lago Tadal. Ela começou a descer em direcção a este. O outro dragão entendeu e seguiu-a. 

Aluminir tentou aterrar o mais graciosamente que conseguia, queria fazer uma boa figura para o seu companheiro. Virou-se e ficou a observá-lo. Ele era um grande macho prateado. Os seus olhos verdes, raros na sua espécie, fitavam-na com a mesma curiosidade que sentia. Começaram a andar um em torno do outro, observando-se mutuamente. Ele não era muito mais velho do que ela, teria mais cem anos no máximo. Ela queria tocar-lhe, falar-lhe mas não sabia o que dizer. Queria saber mais sobre ele. O seu coração batia mais depressa. O sangue nas suas veias fervia e não compreendia a razão. 

- Olá! Eu sou a Aluminir. E tu, quem és? – Perguntou ela, disfarçando o nervosismo. - Eu sou o Seneth.


Percepção - Túmulo 62 - Sara Farinha

Mark agachou-se atrás de um bloco de pedra massivo, no topo de um dos montes que delineava a zona aberta ao público do Vale dos Reis. Lá em baixo, o último grupo de turistas era encarreirado para um atrelado de metal branco com bancos de plástico amarelos, sem portas ou janelas, que os levaria de volta à recepção. 


Procurou um recanto com sombra onde pudesse sentar-se. Acabou encostado ao enorme calhau, de calças assentes na areia grossa, mais terra do que areia, que cobria todo o vale. Passou o antebraço pela testa, limpando o suor que se aglomerava, fechou os olhos e abriu os sentidos ao que o rodeava. Inspirou fundo, absorvendo o burburinho de sentimentos que pairava no Vale dos Reis. 

Um grupo bastante numeroso emitia a excitação da descoberta, o cansaço da viagem e a necessidade de saciar as necessidades mais básicas. Espalhados pelos recantos do Vale, um grupo de homens emitia outros sentimentos, alguns tão estranhos como o idioma que falavam. Raiva, aborrecimento, ganância e uma violência que nunca desapareciam por completo. Desde que Mark entrara no avião em Paris e desembarcara no aeroporto do Cairo, que um nojo quase palpável, permeava o ar. 

Fechou a mente o melhor que pôde, poupando as forças para o desafio pendente, e contou as várias assinaturas mentais que distinguia. À entrada dos túmulos visitáveis dos Faraós Egípcios, diversos guardas deambulavam pela paisagem árida, depois de emergirem do confinamento diário. Por baixo das suas túnicas de tons crus, diversas armas eram ocultadas dos estrangeiros, emanando uma presunção que só os que andam armados são possuidores. 

Carregar uma arma de fogo no Egipto era equivalente a calçar um par de sapatos em Nova Iorque. Não havia qualquer dúvida que os detectores de metais à entrada dos diversos pontos turísticos eram uma protecção podre que servia para criar uma cortina de medo constante, adensando a ansiedade nos turistas. 

A noite tardava a cair no deserto. Tapava devagar a claridade esbranquiçada, que quase cegava, com várias tonalidades rosadas, até as areias serem tomadas pelo breu indistinto. Mark esperou, procurando manter a cabeça baixa e o traseiro fora do radar dos guardas dos túmulos. 

Três guardas recolheram-se debaixo do telhado de madeira, que ladeava o túmulo de Ramsés IV, desenhado para proteger os visitantes do sol abrasador. Ao anoitecer a zona era limpa da escumalha estrangeira e os locais divertiam-se a murmurar histórias sobre os euros que arrancavam aos que eram separados dos grupos dentro dos túmulos. Não havia negociações que subsistissem num povo tão rico em cultura, mas tão rude nas suas vivências, pelo que Mark vira-se arrastado para um pequena expedição fora do conhecimento das autoridades. 

Esperou pela cobertura da noite, observando os homens de túnicas brancas reunirem-se na única estrutura de madeira que se assemelhava a uma casa. Composta por dois pisos, o telhado de chapa assentava em barrotes de madeira, sem qualquer parede que separasse o espaço do mundo exterior. A excepção eram duas salas, nos limites do piso térreo, pequenos abrigos que os protegiam das intempéries do deserto. 

Em breve os homens de vestes típicas foram enxotados pelos de uniforme castanho que guardavam o exterior. Mark observou-os abandonar o vale, deixando para trás alguns homens fardados. Voltou a sondar o local, deixando que as assinaturas mentais voltassem à sua consciência, e identificou seis pessoas nas imediações. 

Encoberto pela escuridão do deserto, deslizou pela colina íngreme, procurando manter-se silencioso. Abrigou-se ao lado do muro de pedra, que marcava a descida para o túmulo de Ramsés IV e esperou. Escondeu-se, durante o que lhe pareceu uma eternidade, agachado no sítio onde podia ver o caminho para o túmulo que era o seu destino final, o sessenta e dois. 

Dois guardas partiram a pé na direcção da saída do Vale, deixando os restantes abrigados dentro da cabana. Dali para a frente teria de fazer uso dos seus outros sentidos, relegando a visão para as brumas em que se encontrava. Enquanto os homens rezavam, desentorpeceu os músculos com cuidado, e preparou a investida. Aquilo que comprara estava a poucos passos de distância, a prova de que nem todas as escavações no Vale dos Reis eram de conhecimento público. 

Ao longe, os murmúrios distantes de uma mesquita forneciam a pausa que Mark ansiara. Em silêncio, deslocou-se pelo pátio de areia à sua frente, atento às assinaturas mentais daqueles que o rodeavam, ainda absortos nas suas rezas. 

Ao lado do pequeno portão de ferro, fechado a cadeado, uma placa de cor mostarda ostentava o número 62. Por cima, as letras Tomb of Tut Ankh Amun e os caracteres árabes anunciavam a túmulo do jovem faraó. Saltou por cima da barreira de metal e desceu as escadas, acobertando-se por baixo da placa de cimento branco que protegia a entrada. 

A escuridão era um manto frio que o isolava do exterior. Com todos os seus sentidos em alerta era impossível conter o temor que se alastrava. Era como se as paredes estivessem ensopadas em emoções poderosas. Emanadas pelas muitas pessoas, que por ali passavam todos os dias, e ajudada pela ambiência de mortos e dos seus corpos decadentes. Mark abanou a cabeça com vigor, esforçando-se por sair do turbilhão de pensamentos gélidos, retirou do bolso das calças uma pequena lanterna e dirigiu-se para o armário castanho que cobria uma das paredes. Tapou o foco da pequena lanterna, com a palma da mão, deixando escapar uma escassa luminosidade. Acocorou-se e apalpou o fundo da estrutura em madeira, que servia de bengaleiro, e vasculhou a fila mais próxima do chão. 

Colado ao painel traseiro da estante, num dos cantos inferiores, um pequeno tubo cilíndrico de metal esperava por ele. 

Vozes masculinas, o som de motores, e passos apressados ecoaram pelas dunas. Mark sentiu um choque de adrenalina a espalhar-se. A sua presença já não era segredo. 

Fez deslizar a lanterna de volta ao bolso e enfiou o cilindro num buraco no forro do casaco. De repente, foi invadido por uma pressão imensa entre os olhos, como uma dor de cabeça repentina. Esfregou a cana do nariz e resistiu a sondar o espaço. Algo empurrava a sua consciência, como um encontrão abrupto no meio dum corredor apinhado de gente. Expirou fundo, procurando controlar a vontade de ceder ao empurrão mental. 

Deslizou para as escadas que acediam ao portão e deitou-se de bruços, observando a confusão. Não conheciam a sua localização exacta, mas era óbvio que sabiam que ele estava ali, e com reforços de outro tipo. 

O edifício de madeira estava apinhado de guardas. Todos carregavam armas e tochas acesas. Um deles gritava ordens indiscerníveis, distraindo a multidão o suficiente para que Mark pudesse saltar o muro e aterrar na areia gelada. Rastejou dali para fora, tão inconspícuo como havia entrado, mas com dezenas de homens armados no seu encalço. Trepou uma das colinas e correu para a moto 4 estacionada nas imediações. 

A pressão dentro da sua cabeça aumentou. O seu perseguidor tentava apoderar-se e subjugar. Um poderoso empurrão mental e Mark sentiu os seus joelhos embater no cascalho, no segundo em que um projéctil roçava o ombro. 

A dor física arrancou-o do início da clausura e fê-lo recuperar um ténue controlo sobre a sua consciência. Precisava escapar. Reuniu dores e raiva, medo e confusão, e empurrou-as na direcção do seu adversário. Projectou no plano mental aquilo que o consumia no físico. Um grito lancinante emergiu sobre os ruídos da perseguição e Mark foi libertado dos grilhões mentais que o toldavam. 

Precipitou-se sobre a moto 4 e acelerou com fervor. As balas choviam na sua direcção, enquanto uma voz masculina ecoava pelo deserto. A distinta pronúncia americana bramia – Cobarde! Vais fugir para sempre? Com as fotografias em segurança e a meio caminho do rio Nilo, Mark constatou que não. Não iria fugir para sempre…



A Alvorada - Pedro Cipriano

A artilharia dos defensores rugiu mais uma vez, despejando a sua letal carga ao acaso. David sabia que os defensores já tinham perdido toda a esperança, São Petersburgo cairia dentro de algumas horas. A guerra mundial que já durava há oito anos e fora combatida nos seis continentes estava perto do fim. O conflito pelo maldito petróleo já reclamara quase meio bilião de vidas e felizmente nenhuma nação usara o seu arsenal nuclear. 

O interior do tanque tipo Roosevelt, por não estar equipado contra aquele nível de humidade, cheirava a mofo. Percorrer milhares de quilómetros naquela lata de sardinhas com um comandante com feitio difícil estava a dar cabo dos nervos a todos. 

– Alvo às quatro horas, a duas milhas – anunciou o comandante. 

A escuridão da noite nórdica obrigou David a procurar o alvo com os sensores térmicos. Era uma bateria anti-tanque, mas não havia nada a recear. 

O frágil equilíbrio entre as facções foi desfeito na maior batalha aérea da história da humanidade. Milhares de caças lutaram durante horas sobre a Europa de leste. Quando se silenciaram os céus, o domínio aéreo pertencia às forças Ocidentais. Era hora de preparar a invasão terrestre. 

Os radares foram destruídos pelos bombardeiros há um par de horas. Sem eles, os sistemas de defesa estavam cegos, mas nem por isso deixavam de disparar. A cidade resistira ao mais longo cerco da história durante na última guerra mundial, atestando a teimosia russa. 

Pediu uma munição explosiva e o sistema de ataque do blindado trancou o alvo. Ajustou as protecções dos ouvidos, inspirou e premiu o botão. Quando recuperou do estrondo do disparo, viu que a bateria estava irreparável. Nesse momento, os bombardeiros passaram por cima dos tanques destruindo a barricada mais à frente. 

– Avancem, estamos a pouco mais de três de milhas da Praça do Palácio. 

David estremeceu de excitação, pressentido que o fim da guerra estava próximo. Com a captura da praça central a resistência dos habitantes sofreria um duro golpe na moral. Dois soldados saíram de outro tanque para confirmar se a ponte estava armadilhada. Assim que se confirmou que estava limpa, o veículo de David avançou lentamente. Agarrou-se aos comandos com receio, detestava atravessar pontes. 

Pareceu passar uma eternidade até chegarem ao outro lado, numa avenida cujo nome começava por “Bo” e era seguindo por mais dez caracteres que não conseguia pronunciar. Os tanques seguiram pelas quatro faixas em direcção à Catedral. 

As ruas estavam desertas. Não se ouviam nem disparos nem explosões. Parecia que os russos tinham desistido de lutar. 

– Onde raio se meteram os russos? – ouviu pelo rádio com um sotaque fortemente alemão. 

Sorriu, pensando o quanto os alemães e os franceses estariam a apreciar a ironia do momento. 

– Daqui tenente Jarnot, acabámos de capturar a estátua do cavaleiro. Não há qualquer armadilha nem resistência neste sector. 

O anúncio foi seguido por outros semelhantes, os lugares simbólicos estavam a ser tomados sem resistência. Talvez a guerra estivesse perto do fim, pensou. 

Os blindados americanos pararam à entrada da praça. 

– Toda a gente lá para fora, temos de ver se não há minas – ordenou o comandante. 

À semelhança dos outros soldados, David cumpriu as ordens contrariado. Detestava sair da protecção dos doze centímetros de aço do blindado. Os atiradores furtivos eram o pesadelo de qualquer artilheiro. 

Encostado às lagartas, olhou em frente. A iluminação escassa da lua permitia distinguir os contornos do lugar. À excepção do monólito gigante protegido por sacos de areia, a praça parecia deserta. Não se viam capacetes a espreitar por cima dos sacos nem artilheiros nos canhões anti-blindado. 

– Olhem! – exclamou o condutor, apontando para ocidente. 

Uma luz brilhante tornou a noite em dia. Não se ouviu nenhuma explosão. David deixou-se cair no chão, percebendo logo o que acontecera. As lágrimas escorreram-lhe pela face. Nunca pensou chorar assim no fim deste maldito conflito. A imagem do seu filho e esposa vieram-lhe à memória, dava qualquer coisa para estar com eles. 

Na face dos seus compatriotas via-se a mesma consternação. Ao seu lado o comandante ria-se, quebrando o silêncio. 

Um pelotão de russos saiu de um edifício adjacente. Apontaram-se algumas armas, mas ninguém disparou. Os adversários fitaram-se mutuamente. Via-se igual resignação e cansaço em ambos os lados. 

– Não vale a pena – alguém gritou. 

Alguns soldados atiraram as armas para o chão e o exemplo foi seguido pelos restantes. Pedidos de desculpa foram lançados em várias línguas. O céu voltou a ficar iluminado. 

– E é assim que acaba! 

Os clarões sucediam-se com maior frequência e pareciam vir um pouco de todos os lados. A expressões de desolação transpareciam o destino que os esperava. Restavam-lhe minutos, ou talvez segundos. 

Caminhou para o russo mais próximo e num impulso abraçou-o. 

– Desculpa o que fiz ao teu país – disse-lhe e olhos do que fora o seu oponente mostraram-lhe que percebera a intenção. 

– Já não faz diferença – respondeu-lhe o russo, com um forte sotaque. 

Todos sabiam que assim era. 

David foi ofuscado por um clarão e sentiu-se arrastado por uma força imensa. Para ele, o mundo acabara.


A destilação do absurdo - Carlos Silva

Tal como todas as manhãs, Filipe Freire saiu cedo de casa, ainda o sol não raiava sobre Urbania. Debaixo de um dos braços, um banco dobrado, do outro, o farnel. Havia-se despedido da esposa com um beijo na testa e dos filhos a dormir com um olhar terno, para agora dar os bons dias à luz que penetrava entre os prédios. 

Sozinho, abraçado pelo frio da manhã, atravessou a cidade, recusando os serviços dos ensonados condutores dos riquexós a pedais, até chegar à borda, onde as ruas acabavam e o nevoeiro negro que rodeava a cidade começava. Abriu o banco e sentou-se de frente para as brumas e ficou a observá-las como sempre fazia. Observou como os farrapos de neblina negra rodopiavam e se entrelaçavam para de novo desaparecer na escuridão sem fim, reconhecendo os padrões que o tempo lhe havia ensinado. 

Estava para breve, mais para breve do que pensara. 

Eram aquelas brumas que davam a Urbania o epíteto de "a sempre em movimento", da "nunca igual", engolindo lenta e constantemente a parte velha da cidade, ao mesmo tempo que recuava no lado oposto, revelando novos arruamentos e edifícios à cidade. Eram aquelas brumas que absorviam a atenção de Filipe Freire durante horas as fios, revelando aos poucos os seus segredos, como uma mãe ciosa. No entanto, naquela manhã de inverno, a parede de neblina negra estava silenciosa, o que em si era um sinal para quem lhe conhece as manhas. 

Uma pequena folha emergiu das trevas, bailando no aragem, tentando Filipe a levantar-se do banco, mas este sabia que estava a ser testado. Teria de ser paciente se queria que a folha não voltasse a desaparecer, soprada por uma qualquer rajada oportuna. Fechou os olhos, concentrando-se no assobio do vento e assim ficou durante minutos, numa batalha de paciências que acabou por ganhar sob a forma do pousar lento da folha sobre o seu colo. Pegou nela, com os dedos brutos e levou-a ao olhar. Era uma folha de carvalho, crescida o suficiente para pertencer a uma árvore adulta. Filipe dobrou o banco, virou costas ao nevoeiro e rumou a casa, não sem antes lhe dizer: 

- Estava a ver que não, amigo. 

A família Freire era a melhor e mais antiga produtora do famoso licor de Urbania de nome Reductio Ad Absurdum. O processo, herdado dos seus antepassados, era secreto e só mesmo o chefe da família conhecia todos passos e ingredientes. A produção do licor era um negócio de família, empregando desde a mulher aos filhos, passando pelos tios e sobrinhos, cada um com uma tarefa vital na concepção da preciosa bebida. Nenhum pormenor era descurado, até as garrafas eram especiais. Tinham de ser de cristal, para não corromper os delicados aromas nelas contidos, e de tal esguia forma que os vapores não se escapassem mal se tirasse a rolha. Todavia, o que tornava o Ad Absurdum da família Freire tão especial era a frescura da selecção de flores destiladas a frio, de modo que apenas os aromas mais leves conseguissem escapar para o interior do néctar de outras tantas plantas que ninguém sabia quais. O trabalho de Filipe era montar guarda à muralha de brumas negras, perscrutando a sua escuridão o dia em que as flores iriam chegar. 

Quando o chefe de família chegou a casa, já todos os seus ocupantes estavam despertos, ocupando-se dos seus afazeres diários. A um canto da cozinha, a filha mais velha e a esposa picavam o gelo que iriam colocar sob o alambique; o filho varão preparava-se para sair, para ir buscar as garrafas que o tio tinha produzido no dia anterior; os dois filhos mais novos brincavam com os materiais que tinham sobrado da destilação anterior, atirando pétalas de rosa negra um ao outro, rindo-se como só as crianças conseguem. Assim que Filipe passou o umbral da porta, todos se levantaram expectantes. 

- Já, meu amor? Tão cedo? 

- Sim, até hoje à noite Urbania ganhará uma floresta. – respondeu Filipe, abraçando a mulher - Prepara os cestos. Amanhã por esta hora, Urbania terá o mais fino Ad Absurdum que alguma vez provou. 

Alegremente, a família atravessou a cidade, seguindo os passos de Filipe, balançando os cestos, rindo-se quando os ardinas anunciavam a notícia de última hora: Urbania iria ganhar uma floresta. Ao ouvirem as notícias, as lojas apressaram-se a encomendar toalhas de pique-nique, machados e espingardas de caça, de modo a satisfazer os novos desejos que certamente surgiriam assim que as primeiras árvores surgissem. Todos pareciam contentes com as novidades, com a excepção de um grupo de engenheiros da câmara, que tinham fé que as brumas fossem revelar um novo tribunal para compensar o velho que havia absorvido há um mês, obrigando-os a mudar as audiências para o auditório do palácio da presidência. 

Durante toda a tarde a família Freire vagueou pela floresta, avançando cada vez mais para o seu interior, à medida que as brumas a iam revelando, enchendo os cestos de plantas que iam esvaziando quando encontravam exemplares mais perfeitos. Ao surgir da lua no horizonte, todos regressaram a casa, excepto Filipe, e reuniram-se em torno do alambique, desfolhando as flores, largando as pétalas uma a uma para o interior do vaso de destilação. O chefe de família puxou do banco desdobrável e sentou-se em frente às brumas, quase não conseguindo distingui-las da escuridão em seu redor. Na destilaria, o filho mais velho começou a dar ao fole, fazendo o ar frio penetrar nas pétalas, arrastando os aromas, borbulhando-os no líquido açucarado que fazia o corpo do licor. As brumas quebraram o silêncio, falando uma vez mais com Filipe, contando-lhes o seus segredos. O licor foi mudando de cor, ganhando reflexos madrepérola, transformando-se aos poucos no Ad Absurdum tanto apreciado. Filipe semicerrou os olhos tentando discernir as imagens que as brumas lhe davam, reconhecendo nelas o passado e os futuros de Urbania embrulhados em indefinição. O filho primogénito suava em bica, castigando o fole sem tréguas até que toda a essência passasse da origem para o receptáculo. Filipe levantou-se e tropeçou numa raiz, caindo para lá das brumas. Quando se levanta, já não sabe se está em Urbania se dentro do nevoeiro negro. Lembra-se das histórias que lhe contaram sobre os que haviam entrado e nunca saído e a pele arrepia-se. Houve os gritos das criaturas que habitam a escuridão, reclamando pelo seu quinhão. Está dentro! Sem pensar na direcção, corre, confiando que longe daqueles sons terríveis está a sua casa. Este as mãos, mas não toca em nada. Está perdido. As criaturas aproximam-se cada vez mais. Os tendões gritam de dor e Filipe sabe que não pode parar de correr. Um a um, todos os elementos da família Freire vão dormir, encerrando o Ad Absurdum num enorme vaso de cristal à janela, onde poderá maturar à luz da lua. Sem acordar ninguém, ofegante, Filipe entra dentro de casa e vai para a cozinha, contemplar o trabalho que a sua família faz há gerações. Ignorando as regras que ele próprio instituíra, destapa o vasilhame e espreita para o seu reflexo no líquido estagnado. Não se reconhece. Não sabe a quem pertence aqueles olhos encovados e cara pálida sulcada de rugas. Conheceria melhor se fossem as brumas com que fala todos os dias. Seria muito mais familiar se fossem farripas de negrume. Ri-se. Ri-se descontroladamente até que as lágrimas lhe vêm aos olhos, rolando pelas faces, caindo dentro do licor. O último ingrediente secreto fora adicionado: as lágrimas de um homem louco.


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Apocalipse - A queda de Berlim - Pedro Pereira

O sol nascia no horizonte e afastava as sombras que cobriam as ruinas da metrópole. Tal como a maioria das cidades, Berlim não era mais do que um vislumbre daquilo que tinha sido. As ruas estavam desertas, repletas de escombros e carros abandonados. Eram ladeadas por edifícios desocupados e em risco de ruir, conferindo um ar fantasmagórico à cidade. Era a típica imagem de uma grande metrópole desde que os demónios tinham sido libertados no mundo dos humanos, reduzindo a civilização a cinzas… 

No topo de um dos edifícios devolutos, uma esbelta figura feminina, quase demasiado perfeita para parecer real, observava a paisagem. Leviatã passou os dedos pelos longos cabelos lisos de uma cor azul eletrizante. Aguardava pelo momento certo. As ordens do Senhor das Trevas tinham sido bem claras, tinha que tomar a cidade, criar uma distração para que Belphegor pudesse quebrar o véu entre dimensões. 

Um demónio abriu a porta que dava acesso ao telhado e encaminhou-se para a mulher. A criatura tinha a pele encarnada e dois chifres de bode na testa. A barba e o cabelo eram negros, tal como a armadura ou como o tufo de pelo no qual terminava a sua cauda. 

– Estás pronto? – questionou Leviatã na sua voz fria e sem emoção, muito antes de Belphegor a ter alcançado. 

– O cetro está pronto. Desde que mantenhas os humanos ocupados, eu e as minhas tropas tratamos do resto. 

– Nesse caso sugiro que te metas a caminho, o Reichstag fica do outro lado da cidade. E não te preocupes com os humanos. Eu ocupo-me deles. 

Sem aguardar resposta, Leviatã fechou os olhos e enviou o sinal telepático às suas tropas. 

Respondendo ao apelo da líder, centenas de demónios saíram das ruínas que os escondiam e invadiram as ruas da cidade. 

Leviatã deixou que os subordinados espalhassem o caos livremente. Não tardou que o objetivo fosse alcançado. As tropas humanas que patrulhavam as ruínas da cidade soaram o alarme. Desde o aparecimento dos Escolhidos que os humanos julgavam ser capazes de derrubar os demónios e recuperar o controlo do mundo. Leviatã não foi capaz de conter um sorriso de desdém. Não passavam de criaturas idiotas. Meros insetos prontos a serem esmagados por Lúcifer, o Senhor das Trevas. 

– Não devias estar com as tuas tropas a transportar o cetro? – questionou com irritação ao aperceber-se que Belphegor continuava a seu lado. 

– Sim, claro. 

Carrancudo, o demónio de pele encarnada abandonou o telhado, deixando a figura feminina a observar o caos gerado pelos lacaios. 

Pelas ruas já se podia ouvir o som dos disparos. As tropas alemãs estavam a retaliar. Vários tanques blindados acompanhados por soldados percorriam agora as ruas de Berlim. A rapidez da resposta não deixou de espantar Leviatã. Os humanos apresentavam agora um grau de coordenação que não possuíam há meses atrás. 

Um pouco mais à frente do edifício onde se encontrava, um tanque armado com lança-chamas e alguns soldados encurralaram um pequeno grupo de demónio num beco sem saída. Apanhados de surpresa, as criaturas foram carbonizada. 

Leviatã saltou do topo do edifício de cinco andares diretamente para o asfalto a rua. Focada no alvo, encaminhou-se a passo acelerado e convicto para o tanque. 

Os soldados que acompanhavam o veículo blindado deram o alerta. Leviatã ergueu as suas barreiras protetoras. Numa questão de segundos, começaram a voar balas em direção à esbelta mulher. Estas faziam ricochete nas defesas da demónio. Quem se julgavam aquelas criaturas para lhe ousarem fazer frente?! 

Leviatã esticou a mão direita em direção e lançou um raio de energia contra o veículo. 

A explosão do tanque matou três dos soldados humanos e projetou outros dois pelo ar. Apesar da queda violenta contra o asfalto, estes ainda se encontravam com vida. Movimentando-se com uma rapidez sobrenatural por entre os escombros, arrancou a cabeça de um dos sobreviventes com as próprias mãos quando este se tentava levantar. 

Uma expressão de terror apoderou-se do rosto do segundo sobrevivente. Não querendo tornar-se na próxima vítima, levantou-se atabalhoadamente e começou a correr. 

Leviatã apanhou uma barra de metal de entre os escombros e lançou-a em direção ao humano em fuga. O soldado caiu. A barra de metal trespassara-lhe o peito perfurando um dos pulmões. Aproximou-se do homem que jazia em convulsões. Com um sorriso no resto, colocou a bota em cima da cabeça da vítima e esmagou-lhe o crânio. 

Ficou parada por alguns instantes enquanto comtemplava com orgulho a matança. 

O som de dois aviões de combate a sobrevoar a cidade interrompeu a linha de pensamentos de Leviatã. Os humanos estavam a ficar cada vez mais atrevidos… 

Fechou os olhos e deixou que a transformação tivesse lugar. O seu corpo começou a contorcer-se e a mudar de forma. Também o seu volume aumentava a um ritmo frenético. Não foi capaz de conter os gritos de dor que aquela transformação lhe provocava. Seus ossos partiam-se em milhares de locais para assumirem uma nova forma. O corpo contorcia-se com as transformações e o crânio tomava uma forma achatada. 

A figura feminina assemelhava-se agora a uma gigantesca serpente alada, com um par de asas membranosas nas costas e quatro minúsculas patas que lhe saiam do ventre. A pele fora substituída por uma camada de escamas de um azul eletrizante, contrastando com os olhos de um violeta vivo. Com o seu tamanho atual, mal cabia na apertada rua. Na sua verdadeira forma ninguém ousava fazer frente a Leviatã. Chegara a hora de tomar Berlim e vergar as forças dos humanos…


Vamos Pintar os Franceses de Carmin - Ana Ferreira

Um conto de Adosinda Gonçalves 
Escrito por Ana Ferreira 

1. Liberté, Fraternité e um tiro nos franceses, por favor! 

Porto, 1809 

As ruas do Porto enchiam-se de posters com gravuras do rei D. João VI e D. Maria I a pedir recompensa dos seus pescoços. “Se viu estes traidores, queremo-los vivos ou mortos. A recompensa: restaurar a honra da pátria.” Adosinda despregou um poster da parede e admirou a pintura básica do rei. Se não pagam, não quero, pensou. Entrou numa tasca e desencantou mais uma vez o papel. Tinham a certeza que aqueles na imagem eram mesmo membros da realeza? D. João VI parecia mais magro e a D. Maria não tinha o cabelo arranjado, como costumava. Bem, de qualquer forma, os tipos estavam no Brasil a comer à grande a à francesa, enquanto a Junot ameaçava entrar no Porto. Pediu um copo de vinho e a carcaça com chouriça que veio a fumegar. O relógio de bolso indicava que ainda tinha vinte minutos até chegar à estalagem e encontrar o general Beresford. O vinho sabia a ranço, mas tanto o cheirinho vindo do pão com o paladar do chouriço eram motivos para ela querer lutar por este país desgraçado, com a monarquia entregue aos franceses. Os trabalhadores voltavam do trabalho, arrumando o farnel. Um olhou para o poster. 

“É uma daquelas que vai atrás do rei?” Perguntou o homem já gasto pelo tempo. Adosinda acendeu um cigarro. 

“Porquê? Vai-me pagar a passagem até ao Brasil?” 

O homem mandou um murro à mesa. “Está a brincar com a nossa cara? Estes filhos da puta merecem ser enforcados pela sua covardia!” 

“Concordo.” Adosinda sorriu, exibindo os dentes um pouco amarelados pelo fumo. “Mas, se tivermos em consideração que os nossos governantes, são, como disse, uns cabrões, e estão a milhas de distâncias, separados por mar, não vejo qual a pressa de os ir buscar. Ou estão com saudades deles?” 

O homem exibiu um canivete. “Eu se fosse a si tinha cuidado com o que dizia, condessa! O povo portuense está farto de vocês, mouros ricos que vivem às nossas custas!” 

Adosinda retirou uma pistola do coldre. “Deixe-me fazer apenas um reparo.” O homem ao ver o revólver deu um salto para trás. “Não sou condessa, sou duquesa. Eu sei que para vocês é, como diriam os nossos cabrões-mor franceses tout lá meme chose, mas não é. Eu tenho mais dinheiro que uma condessa. Um conde tem um condado, um duque tem um ducado. Para uma condessa estar no mesmo patamar que eu teria ainda de passar por marquesa.” O homem deu um passo em direcção à porta e o som da arma a ser pronta para disparar ecoou. “Não vá a lado nenhum que eu ainda não acabei, bom homem! Bem, trate-me então por duquesa, se fizer a fineza.” Levantou-se. “Ah e tem a minha bênção ou o caralho que nós duquesas vos damos para matar os franceses.” Nesse momento entrou um homem com uma farda vermelha. Ao ver a mulher com a arma apontada a um operário parou. 

“Miss Gonçalves?” Ela acenou sem virar a arma. “General Beresford, at your service, madam!” Adosinda desarmou a pistola e guardou-a. 

“I see my husband has already informed you the details?” O homem pareceu confuso, não só pelo aperto de mão forte, mas pela observação. 

“Details, madam?” 

“Well but of course. You are at my service, General Beresford!” 


2. Um plano para a Invicta 

“Portanto, precisamos de um plano!” Adosinda observou com os dois pés em cima da mesa. O general tinha pedido uma chávena de café, ao que ela simulou um riso quase genuíno e deu-lhe duas palmadas nas costas. “Você tem piada! É mesmo disso que eu preciso! Ó Jacinta, traz aqui dois copos de um bom verde para o general, que ele está aqui para matar franceses!” 

“Do you have a plan, madam?” 

“É claro que tenho um plano, criatura. Não o chamaria sem um. Mas vá, aqueça a garganta antes de eu lhe explicar. Tudinho!” 

O general levou o vinho à boca e saboreou. 

“I will only ask you to speak slowly, as I have not yet learnt Portuguese fully, in order to have a conversation.” 

“Não há problema, eu falo devagarinho como você quer, explico-lhe tudo e se quiser até traduzo no fim! O meu plano é simples: você mata franceses, yes?” O general acenou. “Eu também mato franceses com você, ajudo-o, yes?” O homem concordou. “Damos um pontapé no Junot and then you, my friend will be president of the North!” O homem não acenou. 

“President?” 

“Sim, você sabe, quem manda e tal. O nosso rei deu de chispes para o Brasil e aqui no Porto a gente é muito simpática e precisamos de um rei or something like that. Mas vocês lá na Bretanha fazem as coisas mais civilizadas que nós! Que acha? Aceita?” 

O homem ficou embasbacado. 

“But… but I am not Portuguese? Why would your people accept me as their ruler?” 

“Oh general, não se preocupe com o facto de não ser inglês. Se der um pontatpé nos franceses até pode ser galego. Quer dizer galego não, que a gente dá-se mal com Espanha… Nem podia ser lá do Brasil, que senão também lhes davam cabo do canastro. Enfim não tem nada a ver consigo! Se fizer o seu trabalho, tem um país seu. Imagine só, general Beresford.” 

O homem não tinha bigode para coçar, senão estaria naquele momento a pensar enquanto afava o bigode. A proposta não era má do todo, mas porque raios queria aquela mulher dar-lhe o governo do país para o colo? I will be damned, pensou, se esta mulher me está a enganar! O que ganharia ela com isto? 

“What it is for you, miss, once I am in charge?” 

“Eu não quero nada, general…” Voltou-se para o prato onde descansavam as beatas dos cigarros. “Quer dizer, querer, querer, of course que quero algo.” 

“You should name your price.” 

“Well, o meu preço é apenas um. Ficar com o Junot depois da batalha!” O general falhou em conter uma gargalhada. 

“That is mostly peculiour, madam. Why would a married woman like you, want a smelly French general for?” 

Adosinda aproximou-se dele e segredou. “Sabe, general, existe uma recompensa, a reward de dois mil reais para quem entregar as ceroulas do Junot. And as you are informed, dois mil reais é bem mais do que Portugal vale neste momento.” 

“That much? Well then you shall have your money and I, my own country…” Virou-se para o balcão e esforçou-se por soltar uma frase em português. “Jacinta, pór fabor, trága two cops de vinho, for us. To celebrate!” 


3. Vamos pintar os franceses de carmim 

Os soldados franceses manchavam a terra de vermelho. O exército do general Beresford era eficiente e o povo do Porto ajudou à causa. Mais valia ter um britânico a lutar pelo país, que um rei covarde. O general armou as mulheres e os homens contra os invasores. Adosinda não se cabia de contente. Sempre que encontrava um francês com o fato manchado de vermelho sabia bem que eram franceses vampiros. Ainda bem que a Maria Adelaide tinha feito o seu serviço! Vampiros e franceses era uma sorte dos diabos poder matá-los a todos com a caçadeira. Um vampiro francês morto, dois vampiros franceses mortos, três vampiros franceses mortos. Todos rebolavam para o Douro, o rio enchia-se de corpos e flutuar. 

“Madam, you have to pay some attention.” O general Beresford cavalgou até ela. 

“Cuidado porque raios?” Limpou a arma. 

“You are attracting too much attention!” Adosinda não via onde é que atrair atenções era mau. Para além dela não saber quem raios era o Junot. Tudo bem talvez fosse o moçoilo jeitoso que estava em cima do seu cavalo todo cheio de condecorações. Já te apanhei, meu cabrão! “Now, miss I ask you to be discreet.” 

“Discreta? But General I am just painting the French red!” 


4. E assim nasceu a Inbicta 

Junot acordou de pernas para o ar, amarrado com as partes de baixo desnudas. Uma mulher estava sentada no que parecia ser uma mesa rasca. Adosinda começou a mascar o charuto. Que merda, não era fluente a francês, e agora, como raios ia explicar o porquê de ele estar ali de pernas para o ar com o, bem era pequenino, à mostra? 

“Je suis desolée pour cette situation… Comprenez-vous portugais, général Junot?” O homem acenou. “Ai que rico moço! Bem era só para o avisar que sou eu que tenho as suas ceroulas.” 

“Pourquois voulez-vous ma cullote?” 

“As suas ceroulas são famosas, caro Junot! Ai se você soubesse quanto elas valiam até você as dava.” 

“Madame, je ne comprend pas pourquoi mes culottes sont importants?” 

“Ó criatura não são as ceroulas. É por causa de você! Ora bem, você foi capturado, vocês perdem, os ingleses ganham. Guerra é guerra, senhor Junot.” O francês mostrava claros sinais de cansaço e inquietação. “Senhor Junot, as ceroulas provam a sua derrota. Dois mil reais para os meus bolsos pela sua cabeça. Sabe o que vou fazer com este argent, general?” O homem abanou a cabeça. “Non? Quel dommage! Com os reais, je vai comprar o Porto a Portugal et sendo a nova dona de um pays, je vai denominá-lo de Inbicta. Que acha, general? C’est mangnifique, non?” 

O General abanou a cabeça. 

“Mais vous êtes folle?” 

“Qual louca! Não gosta do nome? Que pena. Pense assim, general a sua derrota vai ficar para a história! A derrota do general francês originou a criação de um país independente, a Inbicta, onde os franceses foram pontapeados e nunca mais voltaram! Et Voilà, Ça c'est Histoire, mon petit général!” A porta abriu-se, deixando passar um faixe de luz. 

“Ele ainda está vivo?” 

“Ah Adelaide, eu nunca falho um compromisso. Prometi-vos o general vivo e aqui o tendes. Já estava farta de falar francês. Como está o Beresford?” A mulher sentou-se ao lado de Adosinda. 

“O povo adora-o. É visto como o salvador do Porto, except he is broke.” Adosinda sorriu. 

“Not anymore, my darling.” Olhou para o Junot. “Ah mas este general é feito de ouro.” Um vampiro entrou no casebre. Cabelo preto amarrado, vestido com fato militar. “Olha-me esta, sim sra, o duque de Aveiro em pessoa aqui, vê general como a gente gosta de si! A sua sorte é alguém dos Távora ser vampiro e viver o suficiente para presentear-nos com a sua presença.” Adosinda esboçou um sorriso amarelo. O vampiro pegou na sua mão direita e beijou-a. 

“Soube que foi um sucesso a matar os vampiros franceses.” 

“A gente cá luta pelo que é nosso. Quando temos franceses, consigo tolerar-vos.” Levantou-se a aproximou-se do general, dando-lhe uma palmada no traseiro à vista. “Sejam simpáticos. Olhem que o general aqui vem de um Império e não está habituado a parvónias!” Saiu do casebre e fechou a porta. Em direcção à estalagem pensou que seria boa ideia deixar o homem com dois vampiros. Encolhou os ombros. Já tinha a prova que merecia o seu dinheiro e ainda tinha dado uma coça aos franceses. Qual viva lá liberté, bom era ver os portuenses separados de Lisboa e com um homem de armas a chefiá-los. Na estalagem mandou recado para estarem prontas cinco malas para uma viagem longa. Chegou ao porto da Foz de carruagem. 

“Ouve lá, porque raios pediste isto?” Afonso, um homem alto com uma barriga generosa, esperava-a de barba aparada e também ele com as malas a seu lado. Adosinda beijou-o e abraçou-o. Fez sinal a um senhor que estava perto. 

“Desculpe, mas esta embarcação vai para o Brasil, certo?” O homem acenou. “Vês, vamos para o Brasil! Consegui duas passagens para nós os dois.” 

“Porque é que vamos mesmo para o Brasil?” 

“Ora, saiu hoje um pedido de que quem encontrasse a peruca do D. João VI ganharia seis mil reais! Isto ainda é maior que as ceroulas do Junot e escuso de ver El-rei com o mastro a badalar!” Afonso abraçou-a. 

“Para o Brasil?” 
“Mais oui, monsieur. Vamos pintar os brasileiros de carmim!”


O Canto da Ninfa - Carina Portugal

Inspirou fundo, lançando um olhar à Deusa Lua que crescia nos céus, antes de as pálpebras se fecharem e o seu espírito se preparar para entrar em meditação. 

Sem aviso, uma série de salpicos frios atingiu-lhe o rosto, quebrando-lhe a concentração. Estremeceu e piscou os olhos, enfrentando o luar que se reflectia no Lago Sagrado. As águas ondulavam, perturbadas por algo que o elfo não conseguia ver. Talvez uma pedra, talvez um peixe… olhou em volta, contudo o bosque parecia imperturbável. 

Era ainda demasiado cedo para a maioria dos habitantes acordar. Não havia razão para estar ali mais alguém. 

Suspirou e encolheu os ombros, voltando a fechar os olhos. E, mal o fez, foi novamente atacado por uma onda de salpicos. 

– Hey! – protestou, abrindo os olhos, a tempo de ver desaparecer na água um rosto feminino, enquanto uma gargalhada divertida se diluía no ar. 

Descruzou as pernas e debruçou-se sobre o lago, tentando ver para além do espelho que reflectia um rosto intrigado. Levou a mão à água e tocou na superfície instável. Tão depressa que não lhe deu tempo para se afastar, o rosto voltou a surgir muito perto do seu. Dois braços saíram da água e entrelaçaram-lhe o pescoço, puxando-o. 

O elfo caiu de cabeça dentro das águas profundas. Esbracejou e esperneou para voltar à superfície, em busca de ar, e, quando a cabeça furou a água, lançou um olhar atarantado à sua volta. 

– Quem está aí? – quis saber, ofegando. Afastou o cabelo do rosto, com uma mão. – Isto não é muito simpático de se fazer, sabias? 

Ao seu lado, a corrente sofreu uma ondulação atípica, e as águas redemoinharam, até formarem um corpo delgado, feminino, cujos olhos o espreitaram à superfície, arrependidos. Ele conseguia ver-lhe a silhueta desnuda, através da ondulação do lago, tão perfeita e líquida quanto uma filha das águas poderia ser. 

Não conseguiu evitar um sorriso compreensivo. No final de contas, muitas ninfas viviam solitárias ou perdiam-se na corrente, vogando pelos trilhos incertos da água. Não constava que alguma habitasse as Lágrimas da Deusa, por isso esta deveria ter chegado há pouco tempo. 

– Chamo-me Ilnosianar e sou um dos habitantes de Nelgadir, a terra onde estais – informou, tentando esquecer a frieza que se entranhava no corpo. – Donde vindes e qual o vosso nome? 

A ninfa abriu muito os olhos e abanou a cabeça, enquanto as faces ganhavam um rubor súbito, como se ele lhe tivesse feito uma pergunta indecorosa. Mergulhou e desapareceu, sem lhe permitir dizer mais nada. O elfo piscou os olhos, atordoado com a timidez dela. Chamou-a uma, duas, três vezes, porém ela não voltou a surgir ou sequer a atirar-lhe água. 

Acabou por se içar para terra firme, com um gemido. Depois de relancear o lago uma última vez, afastou-se para o palácio, pensativo. A túnica e as calças deixaram um trilho de pingos de água. 

Todas as noites, Ilnosianar regressava às margens da Deusa. Por vezes encontrava dois olhos a observá-lo, contudo a ninfa não se atrevia a aproximar, como se ele lhe tivesse feito algum mal ao perguntar-lhe o nome. Numa tentativa de se mostrar mais amigável, conversava, apesar de não obter respostas, contava-lhe história, e chegou mesmo a levar uma flauta e tocar para ela. 

Sete noites depois, a ninfa voltou a acercar-se, enquanto ele tocava uma melodia cujo som se harmonizava com o pio esporádico de uma coruja e com o ramalhar nocturno. Apoiou os braços na margem e deixou a cabeça repousar neles, enquanto o observava. Um sorriso de agrado despontou nos lábios do elfo, contudo não interrompeu a melodia, com medo que ela voltasse a fugir. Quando por fim terminou, baixou a flauta e soltou um suspiro satisfeito. A ninfa levantou a cabeça e bateu palmas, entusiasmada. 

– Muito agradecido, bela donzela. Fico feliz por ter sido do vosso agrado. 

A ninfa fez um aceno rápido e impulsionou-se um pouco mais para fora de água, só para lhe chegar ao rosto e lhe depositar um beijo rápido nos lábios, antes de se desfazer em mil gotículas. Espantado, Ilnosianar levou uma mão à boca, onde ficara um resquício de humidade. Um calor breve corou-lhe as bochechas. 

Nessa noite, a ninfa não voltou à superfície, e o jovem príncipe quedou-se a mirar as águas onde se reflectia a Lua Cheia. Sorria para si, com o rosto de um tolo que se enamorara pela curiosidade, timidez e simultâneo atrevimento daquela bela criatura. 

A partir desse dia, a ninfa ganhou coragem para se sentar ao lado dele, sem se importar com a nudez, observando-o e bebendo-lhe as palavras das histórias, sem nunca articular uma sua. 

– Gostava de te ouvir falar – confessou ele. Achara por bem deixar as formalidades de lado. – Poder chamar-te pelo nome. 

Por vezes a pele da ninfa ondulava, instável como a água, e os olhos lembravam pequenas lagoas azuis. Foi o que aconteceu, quando ela levou ambas as mãos à boca e abanou a cabeça. O elfo quase se sentiu a mergulhar nos orbes pesarosos dela. 

– Não volto a insistir – garantiu, desviando a atenção para o mar de estrelas. 

A ninfa mordeu o lábio inferior e, numa decisão súbita, abraçou-o contra o corpo húmido, beijando-lhe o rosto inúmeras vezes, em forma de perdão. O toque dela era tão meigo que Ilnosianar não conseguiu ficar-lhe indiferente. Retribuiu o abraço, esperando que ela não se diluísse e fugisse dos seus braços, e uniu os lábios aos dela, provando a sua doçura e desejando-a para si. 

A filha das águas acabou por se afastar, com um sorriso, e deslizou para dentro da água. Uma pontada de desilusão assaltou-o, porém os braços dela esticaram-se para si, chamando-o. Depois de se despir, Ilnosianar juntou-se à ninfa, deixando-se levar num jogo de carícias fugazes e beijos líquidos, sob o olhar da Deusa, cujo astro minguava no céu. 


Nessa noite, com a chegada da Lua Nova, o luar extinguira-se. Ainda assim Ilnosianar conseguia perscrutar o caminho que o levava até ao lago, apressando-se com a ânsia de enamorado a bater-lhe no peito. Na mão levava três jóias-da-deusa que desabrochavam durante a noite. Viu a sua ninfa, quando estava já perto do lago – esperava-o em terra firme, com um sorriso, e quando o viu correu para ele, abraçando-o. 

Recebeu-a com um espanto mudo. Era a primeira vez que a via completamente fora de água. Abraçou-a com umas das mãos e tomou-lhe os lábios. O corpo da ninfa estava mais quente e menos húmido. 

– Não devias ter abandonado a água. É o teu elemento, pode fazer-te mal estares longe dele. 

– Não me fará mal – murmurou ela, num tom melodioso que lembrava o canto das aves. 

Ilnosianar arregalou os olhos. Ela falara, por fim! E a sua voz era tão bela, tão doce, tão nítida como o vento… imaginara-a mais líquida e fresca, na verdade, e isso revolveu-lhe a alma, sem saber porquê. 

– Porque é que não falaste antes? – perguntou, ansiando uma resposta que o serenasse. 

A ninfa encolheu os ombros. 

– O que interessa? Não devemos desperdiçar este tempo precioso – murmurou, contra os lábios dele. 

A voz dela embargava-lhe a mente de tal forma que aquela resposta foi suficiente para apagar receios ou suspeitas. Era como se lhe ciciasse uma música de embalar. O elfo vacilou e as flores escorregaram-lhe das mãos. 

– Deitemo-nos, meu amor – disse-lhe, pousando-lhe uma mão no peito. – Estás tão cansado… 

Ele começava a acenar, quando olhou de relance a superfície do lago. Dois orbes espreitavam, arregalados. 

– Espera – pediu, tentando perceber de quem eram aqueles olhos, se a sua ninfa estava ali, junto a si. Talvez a falta de luar lhe estivesse a ludibriar a vista. Ou talvez… 

– Deita-te – repetiu, num sussurro já perto do ouvido. – Cantarei para ti, meu príncipe, e embalar-te-ei. 

O sono apossava-se dele, como uma doença galopante. As pernas cederam e ele caiu de joelhos sobre a erva. A cabeça pendeu para a frente, encostando-se ao ventre nu da ninfa. Com carinho, ela afagou-lhe o cabelo, cantando baixinho numa língua obscura. 

O chapinhar de água passou-lhe completamente despercebido e só percebeu que algo se passava quando a música de embalar cessou abruptamente. Forçou-se a abrir as pálpebras e levantar o olhar. Quando o fez, uma gota de água atingiu-o na fronte, provinda da mão que agarrava a ninfa pelo pescoço. Seguiu o pulso e o braço com o olhar, e encontrou uma réplica perfeita da sua donzela. 

Quando os olhares se cruzaram, a segunda ninfa esboçou um sorriso de lamento, antes de abrir a boca e deixar escapar um gorgolejo cristalino que ecoou por todo o bosque. 

Ilnosianar despertou de súbito, como se lhe tivessem dado um banho de água fria, e pôs-se de pé com um salto. Afastou-se vários passos e mirou as duas ninfas. O som de água continuava a ecoar, invocando as ondas do mar, o grito das cascatas, o movimento dos glaciares. 

No momento em que a primeira ninfa esboçava um esgar de raiva que revelava dentes afiados, e dos dedos lhe cresciam unhas tão mortais quão estiletes, ambas explodiram – uma em múltiplas gotículas de água, outra desfazendo-se em partículas negras que caíram sobre as ervas, corroendo-as e deixando no ar um fedor que Ilnosianar reconheceu das descrições dos livros. 

Aquela criatura estava muito longe de ser uma ninfa. Era, sim, um devorador de almas, que se aproveitara do decair do luar e do consequente fraquejar das protecções mágicas daquela terra para se infiltrar. E estivera tão perto de o devorar. 

Contemplou o solo, que agora sorvia as gotas de água da sua ninfa, e mordeu o lábio inferior, por impulso, impedindo-o de tremer. Acocorou-se. 

– Obrigado – sussurrou, afagando a terra, esperando que ela ainda conseguisse sentir o seu carinho. As lágrimas correram-lhe pelo rosto e juntaram-se à ninfa que se sacrificara para o salvar. – Odorhonirien ë lio emos, calyahne sa juved sise niadin’se. (1)

Desse trágico dia em diante, Ilnosianar não passou uma noite sem se sentar à beira do lago, esperando-a, pacientemente. Um dia, cada uma daquelas gotículas reunir-se-ia para a reconstituir, e talvez a ninfa vogasse até às Lágrimas da Deusa, para se voltarem a abraçar. 



1 - Aguardarei o teu retorno, além da vontade dos deuses.


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