Crónicas Obscuras: Dança do Corvo (2/8) – O mais poderoso – Vitor Frazão

Disparadas da segurança da copa das árvores, pelos assimétricos yumi dos tengu, com uma força impossível a qualquer arco de fabrico humano, as flechas não só são extremamente rápidas, como invisíveis ao Pulsar. Felizmente, os ouvidos de Eleanora foram treinados para detectar o menor sinal de disparo e os seus reflexos são sobrenaturais. Desvia-se do primeiro projéctil, que se vai espetar no solo remexido, e move-se ligeiramente para levar com o segundo no peito em vez do ombro. Consciente que uma flecha nas articulações lhe toldará os movimentos, tornando-a um alvo fácil, dá-se ao trabalho de fugir de projécteis que não a podem matar ou sequer provocar dor. 



As vagas de ataques tornam-se mais intensas, obrigando-a a mover-se freneticamente em redor, saltando, rodando sobre si mesma e rebolando pelo chão, por entre uma cacofonia de metal a cantar de encontro a metal. Nem todos os golpes são desviados ou aparados, cortes nas vestes e pele multiplicam-se. Onde outros contemplariam uma situação cada vez mais desesperada, Eleanora vê oportunidades. Três soldados de infantaria, dois arqueiros, cinco atacantes, ou seja, muitas falhas na rede. E estavam a ficar cada vez mais descuidados… 



Eleanora volta a atirar-se ao chão, rebolando para o lado e aproveitando para agarrar um punhado de terra, que lança ao tengu mais próximo, ao levantar-se, fazendo-o falhar o ataque e quase não conseguir defender o contra-ataque. O tengu da katana afasta-se, executando um voo muito mais largo do que o habitual, enquanto esfrega os olhos. Ao mesmo tempo, a vampira desvia-se de uma investida e corta a ponta da lança do adversário seguinte, que é forçado a uma manobra de emergência para evitar despenhar-se. O terceiro yokai quase lhe arranca a katana das mãos com a naginata, mas as suas forças acabam por provar-se demasiado equilibradas para uma se sobrepor à outra. 



Recebendo mais duas flechas nas costas, enquanto vê os inimigos voarem para longe, de modo a ganharem balanço para as investidas seguintes, Eleanora não se sente aliviada com as tréguas, pois sabe que ainda lhe falta enfrentar o mais velho, perigoso e poderoso dos yokai voadores. Ele encontra-se perto, nas sombras, à espera da altura certa para atacar… Todos eles eram fulminantemente rápidos e furtivos, mas Hayato fazia os demais parecerem folhas a cair com indolência numa brisa outonal. Ao senti-lo aproximar-se por trás, atacando de um ângulo impossível, Eleanora apenas tem tempo de tirar a mão esquerda da katana enquanto se vira. Um golpe. Tudo ou nada, num único movimento. Sem espaço para errar.






Parte 8:
Parte 7:
Parte 6:
Parte 5:
Parte 4:
Parte 3:
Parte 1: 

Paixão 4/4 - Liliana Novais

Os Eraks foram apanhados desprevenidos pelas hordas furiosas que procuravam sangue. A paixão de Tobi foi a desculpa perfeita para aqueles que odiavam os Eraks e que esperavam que algum deles cometesse um erro para soltar a sua ira contra toda a população. A sua sede de vingança era enorme e todos sofreram. Armaram-se de paus, pedras, bastões. Tudo servia para infligir dor, já que não os conseguiriam matar com aquelas armas. Os Eraks feridos eram rapidamente transportados para os curandeiros. Felizmente as hordas não tinham em sua posse uma Kaleth, a única arma que conseguia matar Eraks e retirar-lhes o poder. Estas tornaram-se raras após a grande guerra e apenas alguns mercenários as possuíam e felizmente não havia nenhum na cidade. 

Os que ainda se encontravam aptos reuniram-se na cabana do oráculo. Tinham de fazer algo para que as hostilidades parassem. 

- A culpa disto tudo se estar a passar é do Tobi. – começou um deles. Fazendo com que este se sentisse ainda mais culpado. 

- A culpa não é dele! – Defendeu-o Orak. – Tal como qualquer um de nós, ele apaixonou-se… 

- Mas mais nenhum de nós se apaixonou por quem não devia! 

Orak abriu a boca para responder, mas Tobi interrompeu-o. 

- Eu sei que me apaixonei. Mas eu pergunto-vos: qual de vocês consegue dizer ao vosso coração o que fazer? Por quem se apaixonar? Eu sei que não consegui. O amor tem vontade própria e ninguém o controla. Amo a Athena e faria tudo por ela. Só lamento ter-vos arrastado para o meio da confusão. Nunca vos quis fazer mal. Mas a verdade é esta: quem são eles para nos mandarem fazer algo? Quem nos pode dizer que uma pessoa não se pode apaixonar por outra? Não devíamos ser livres de escolher o nosso próprio futuro? Temos de lutar pelo que acreditamos, pelo que amamos! Já pagamos muito pelos erros dos nossos antepassados. Durante cem anos mantivemo-nos nas sombras, chegou a altura de dizermos basta! 

O discurso de Tobi incendiou os corações de todos os que o ouviam. Todos sentiam o mesmo que ele e sabiam que aquela era a altura certa para agir. Mostrar que não iam tolerar mais a descriminação. O fim estava próximo. Ou venciam ou morriam a tentar. 

Orak informou o seu amigo que o Lord Huntington ia enviar a sua filha novamente para longe, para a casa de uma tia e que também havia chamado alguns mercenários para a protegerem. Ele era benevolente com os Eraks, mas que os deuses o livrassem de a sua preciosa filha se envolver com um deles! 

O plano era simples, interceptar a carruagem onde Athena seguia de modo aos dois poderem fugir. Seria uma vida complicada, sempre com medo, mas ao menos estariam juntos. Todos os que apoiavam Tobi se prepararam, ali, naquela pequena terra do norte, a revolução ia começar… 

*** 

Esconderam-se no estreito de Gordan. O local perfeito para uma emboscada. Aguardavam em silêncio, ocultos pela densa floresta. A carruagem aproximava-se rapidamente. Uma árvore caiu impedindo a passagem, forçando-a parar. Os homens que a protegiam ficaram alerta temendo uma emboscada. 

Ramos de árvores controlados pelos Eraks derrubaram os mercenários dos seus cavalos. As plantas rasteiras agarram alguns deles e envolveram-nos, restringindo-lhes os movimentos. Animais da floresta assustaram os cavalos que fugiram para longe. Os mercenários colocaram-se em defesa, os Eraks não os podiam matar mas podiam incapacitá-los e levar a sua carga preciosa. Num abrir e fechar de olhos estavam rodeados por centenas de rebeldes. 

Athena espreitou pela sua janela curiosa, o seu coração acelerou quando viu Tobi no meio da multidão. Ele tinha ido salvá-la. Afinal amava-a tanto como ela a ele. 

O confronto tomava agora proporções mais elevadas. Bolas de fogo foram lançadas para separar a carruagem dos seus protetores. Árvores altas nasciam do solo e cresciam a velocidades espantosas criando o caos. Tobi corria para a carruagem de encontro ao seu amor. Do seu interior saiu o Lor Huntington. 

- Se pensa que vai levar a minha filha está enganado. Ela nunca vai ser sua. Deixe-nos passar. 

- Mas eu amo-a. – replicou Tobi. 

- Eu tratei-vos sempre bem e é assim que me retribuem? – gritou o Lord. – Vão pagar com a vida! 

Por trás deste saiu um homem monstruoso. Na sua mão trazia uma enorme espada e na outra uma Kaleth. Este avançou em direção ao Tobi, não lhe era necessário chegar até ele. O fogo que a Kaleth libertava queimava a magia dos Eraks e sem magia eles morriam. Com um movimento brusco, o homem lançou uma primeira vaga de fogo, a qual falha Tobi por pouco. Ele cai no chão desamparado. Sem qualquer hipótese de defesa, uma segunda labareda de fogo é lançada. Athena, que havia abandonado a carruagem sem ninguém a ver, grita: Não! E atira-se em frente deste tentando proteger Tobi. Infelizmente a chama era maior do que a anterior e consome-os os dois. Lord Huntington a ver o que causara entra em desespero e chora pela sua filha. As hostilidades terminam naquele momento e todos olham para os corpos sem vida dos dois jovens amantes… 

*** 

O enterro dos dois amantes foi de acordo com os costumes do seu povo, mas ambos ficaram lado a lado para que pudessem passar a eternidade juntos. Lord Huntington viu a hipocrisia do seu ato ao tentar separá-los e utilizou a sua raiva e dor para acabar com as estúpidas leis que limitavam a vida dos Eraks. Ainda tinham um caminho longo a percorrer, mas um dia todos seriam tratados como iguais.


Parte 3:
Parte 2: 


Crónicas Obscuras: Dança do Corvo (1/8) – Asas na escuridão – Vitor Frazão

O vento desliza pelos ramos, fazendo estalar as folhas ao luar. Pés pequenos, envoltos em waraji esmagam o solo amolecido pela chuva, ao adoptarem uma posição sólida, em preparação para a batalha. Uma mão pálida, aparentemente delicada, ergue-se para agarrar a bainha negra à cintura, atada com firmeza de encontro ao hakama, enquanto outra atravessa diante da barriga, pousando sobre o punho da katana desprovida de guarda. 

Entre árvores milenares, cuja altura parece desafiar o Céu, envolta em sombras que enegrecem a sua palidez sobrenatural, está uma pequena guerreira loura de feições cheias, quase angelicais. Os seus olhos azul-esverdeados brilham a cada mudança de luz. 

O silêncio e o negrume escondem uma paz falsa. Ela sabe que não está sozinha. Sente o bater dos corações e, pelo canto do olho, consegue ver os inimigos moverem-se entre as copas. À distância que estão, o sangue que lhes corre nas veias, que devia ser para ela como fogo na escuridão, não passa de uma faísca fugaz. Conhecendo bem a rapidez dos adversários, a filha da noite não se deixa enganar pela ilusória segurança que o espaço entre eles proporciona. 

Procurando suprimir o nervosismo, a vampira passa a língua pelos caninos. Nesse exacto momento, um dos corações bate mais depressa, fazendo-a virar para o atacante, que voa na sua direcção, batendo as asas ruidosamente, naginata em mãos. 

“É uma distracção” apercebe-se, sacando da espada e preparando-se para atacar o outro inimigo que plana na sua direcção, vindo de trás. Vê-o, ficando impressionada por constatar que se encontra tão relaxado, que o coração bate como se estivesse sentado a beber chá e não no coração de uma batalha. Não fosse pela sua experiência, a vampira nunca o teria sentido aproximar-se. Infelizmente, também ele era um engodo. 

Mesmo com Pulsar, Eleanora quase não detecta a tempo um tengu que cai do céu em voo picado, directamente sobre a sua cabeça, qual falcão-peregrino a tomar partido do ângulo morto, sendo apenas graças aos seus reflexos sobrenaturais que consegue evitar ser empalada pela longa lança. Desviada pela katana, a lâmina dupla da lança limita-se a rasgar de alto a baixo a manga esquerda do quimono masculino, enquanto Eleanora recua, saindo do caminho do Oculto voador, na esperança que ele se despenhe ao falhar o alvo. Demonstrando uma incrível perícia física e agilidade mental, o yokai voador recupera de imediato, planado graciosamente para longe, sem sequer tocar no chão. A vampira sente as penas das asas do inimigo no rosto, mas não reage a tempo de lhe acertar. 

Quase de imediato, vê-se obrigada a usar a katana para desviar a lâmina de outro tengu e depois a rebolar sobre o ombro para fugir à naginata de um terceiro, aquele cujo coração batia com o poder de ondas a esmagarem-se contra penedos. A mortal dança prossegue. Os três yokai voadores, rápidos e precisos, acossam-na em círculos cada vez mais apertados, em vagas que a impedem de concentrar-se num alvo. A vampira baixa-se e, em vez de ficar sem pescoço, é-lhe cortado o rabo-de-cavalo louro, preso no topo da cabeça. Rolando para a frente desvia-se de uma arma e, dessa posição vulnerável, deflecte outra com a katana. Os cabelos soltos caem-lhe sobre o rosto ao erguer-se, sendo então que os arqueiros atacam.


Parte 8:
Parte 7:
Parte 6:
Parte 5:
Parte 4:
Parte 3:
Parte 2:

Devorador de Mundos - Liliana Novais

Estava um dia horrível. Chovera a noite toda e a rua estava alagada. Arranjar um táxi naquele tempo era algo de impossível. E para onde ia o tempo ainda estaria pior, previam um nevão iria atingir a cidade de Genebra. Fernando tinha de estar no aeroporto dali a uma hora. Esperavam-no no CERN para dar início à sua experiência de colisão de partículas. Ele estava ansioso, toda a sua tese de doutoramento dependia dos resultados que obtivesse. Depois de muitas tentativas telefónicas, finalmente conseguira um táxi que o deixaria mesmo a tempo à entrada do aeroporto. 


A viagem foi um pouco turbulenta, com poços de ar que obrigavam o avião a dar solavancos. Fernando saiu do avião todo dorido, o que lhe valia era que apenas tinha de se apresentar no laboratório no dia seguinte. 

Deitado na cama do seu quarto, Fernando, verificava os dados da sua experiência para o dia seguinte. Reviu os cálculos. Tinha que estar tudo perfeito, teria apenas uma oportunidade para testar as suas teorias. Ele já tinha tido sorte em conseguir aquela vaga, que era muito difícil de obter. Estava na hora de descansar, esperava-o um dia longo. 

A neve caía grada naquele primeiro dia de inverno, mas Fernando estava quente no interior do laboratório. Olhava para os técnicos que inseriam os seus valores e aguardava ansiosamente enquanto eles faziam todos os procedimentos para iniciar a primeira colisão do dia. 

O coração de Fernando acelerou. No interior do anel, as partículas moviam-se a velocidades estonteantes percorrendo-o inúmeras vezes, até atingirem a velocidade pretendia e colidirem. E finamente uma enorme quantidade de novas partículas encheu os detetores. Um resultado inesperado que encheu a sala de excitação pela primeira vez desde que descobriram o bosão de Higgs. Um micro-buraco negro formou-se como resultado da experiência. Era a primeira vez que tal era observado experimentalmente. A sala estava em festa, os técnicos abraçavam-se, congratulavam Fernando pelo seu feito, como se este fosse digno de um Nobel. A alegria reinava e um deles saiu para ir buscar uma garrafa de champagne para comemorar aquele feito. Queriam descobrir tudo acerca deste. Começaram a bombardeá-lo com partículas, tentando estimar o seu peso e as suas dimensões. Mas, mais importante ainda, queriam saber quanto tempo demoraria a dissipar-se. 

As horas passavam e nenhuma alteração ocorria. A excitação deu lugar à preocupação. O micro buraco-negro continuava a sugar tudo em seu redor, cada vez mais depressa, aumentando gradualmente de tamanho. Eles sabiam que tinham de fazer algo para o travar senão estavam a condenar a humanidade à extinção. Primeiro a Terra seria engolida depois todo o sistema solar se não o travassem em primeiro. 

Com o nervos à flor da pele, cada um gritava por cima dos outros tentando encontrar uma solução. Não se conseguiam entender nem chegar a uma solução. A situação estava a ficar demasiado complicada. Tinham de resolver o problema antes que tudo se tornasse demasiado complicado e irreversível, isto se não tivesse já passado esse momento. Fernando gritou para todos se calarem. Ele tinha uma sugestão, um segundo buraco-negro que anulasse o anterior. 

Recriaram a experiência, passo-a-passo, sem se enganarem. O resultado foi o mesmo. Um segundo micro Buraco-negro formou-se perto do primeiro. Mas esperanças foram rapidamente logradas, os dois fundiram-se e criaram um maior e o apetite deste era voraz. 

Quando a notícia chegou à comunicação social a gerou-se o caos. Sem saber do que falavam, os jornalistas criaram o pânico na população. O medo gerou-se nas ruas enquanto as pessoas se convenciam que o mundo iria acabar nesse dia, ao invés do dilatar do tempo que o buraco-negro ia criar, e o tempo que demoraria a consumir toda a Terra. Inicialmente não se iria notar nada, só muito mais tarde é que a Terra se fraturaria com a força gravítica do buraco-negro. 

As grandes capitais pareciam campos de batalha entre polícia, exército e população. Todos queriam viver os últimos momentos das suas vidas com as coisas que não eram suas e que nunca teriam possibilidade de ter de outra forma. Rebentavam com montras de joalharias, para roubarem as peças raras e caras. Iam às grandes lojas de alta-costura e saíam com roupa para todos. Destruíam a propriedade pública e achavam-se no direito de o fazer. 

Enquanto jantava, Fernando olhava incrédulo para a televisão. Sempre pensara que quando o fim estivesse próximo a Humanidade se unisse e alcançasse um plano mais elevado de existência. Mas a realidade era o contrário, esta estava a regredir para um estado animal. E era tudo culpa sua... Ele via e revia os resultados mas nada fazia sentido. Os buracos-negros deviam ter-se extinguido mas isso não acontecera. Estavam a lidar com uma física que ultrapassava a sua compreensão. 

O fim do mundo, o Apocalipse, começara a 21 de Dezembro de 2012, não por uma mão divina mas pela mão do homem na sua busca incansável pelo conhecimento. Já nada se podia fazer a não ser ver o fim aproximar-se enquanto o buraco negro crescia. Tudo o que o rodeava era engolido fazendo-o crescer ainda mais. O devorador de mundos crescia e dominava. 

O CERN foi abandonado. Os cientistas e os trabalhadores partiram para junto das suas famílias, de modo a poderem enfrentar o que iria acontecer. Aos poucos a população abrandou, resignando-se com a realidade, o último Natal da humanidade foi passado em harmonia e calma. 

E, assim, o mundo fica regido pelas leis de Einstein, o tempo dilata e o fim nunca mais chega, o relógio quase que para. A Humanidade fica presa no tempo e no espaço sem escapatória possível. Será que algum dia conseguirão fugir, ou a força gravítica será tão forte que transformará todos os seres humanos em esparguete?


Paixão 3/4 - Liliana Novais

A cada passo que dava, Tobi sentia-se cada vez pior, não era a sua intensão deixar Athena para trás, mas não havia nada que pudesse fazer. Tinha de arranjar onde se esconder para organizar as ideias. Não podia regressar a casa, aí seria o primeiro lugar onde o procurariam. 

O que é que eu fiz? Pensou Tobi. A minha pobre mãe… O que é que ela vai pensar de mim? Deixei-a desamparada. 

Percorreu a floresta cegamente. Exausto, caiu de joelhos e verificou que se encontrava em frente da cabana do oráculo. Este aguardava-o em frente desta, sorrindo. 

- Anda jovem Tobi. – Disse-lhe. 

- Não me devia proteger. Só lhe vai trazer problemas. – Explicou-lhe Tobi ofegante. 

- Não tenhas medo. Ninguém me vai fazer mal. – Acalmou-o colocando-lhe a mão no ombro. – Entra e descansa. 

Tobi receava trazer problemas para o Oráculo mas não tinha outro lugar para onde ir. Sentou-se à mesa e rapidamente uma malga de caldo estava à sua frente. 

- Come alguma coisa. Vai-te fazer bem. Tiveste uma noite agitada, não foi? 

- Sim, foi um pouco. Não sei o que fazer. 

- Tem calma. Uma boa noite de descanso sempre foi boa conselheira. Eu também o sou. Sei o que te aflige. Tens medo pela tua mãe e pelo teu amor. Pensas que lhe podem fazer mal. 

- Mas como é que?… 

- Eu sou capaz de muitas coisas, vivi muitas vidas. É a minha maldição. Domino artes que poucos conseguem. 

- O que é que é que eu posso fazer? Sou um fugitivo. 

- Meu jovem, és um dos eraks mais poderosos que conheço. Sempre tiveste medo de usar o teu poder, de o explorar… Agora é a altura certa para o fazeres. 

- Mas o senhor sabe tão bem quanto eu que não podemos utilizar a nossa magia contra nenhum ser vivo, nem mesmo se for para nos salvarmos. 

- Nós sabemos, mas eles não. Esse é o nosso segredo melhor guardado. Podes bem simular tudo, só tens de assustar quem tem de ser assustado. 

- Eu sou apenas um homem contra o mundo. 

- Um homem pode mudar o mundo. Pensa nisso enquanto descansas. 

*** 

Tobi foi acordado por alguém que batia insistentemente à porta. O seu coração acelerou. Já o tinham descoberto. Preparava-se para se defender com um pau quando o oráculo surgiu para atender. Ele reconheceu imediatamente a voz da sua mãe. Esta estava preocupada com ele. 

- Mãe, como é que me descobriu aqui? 

- Eu sempre soube que virias para aqui. Parece que te esqueces do meu poder. 

- Sim, eu sei mãe. Não consigo ver o que fazer de seguida. – desabafou, tentando saber mais acerca do que a visão da sua mãe mostava do seu futuro. 

- Tu sabes que as coisas que vejo não surgem quando eu quero nem sobre o que eu quero. O teu futuro é-me vedado a partir deste momento. Não te posso ajudar nesse sentido. Apenas o posso fazer enquanto mãe. 

- Sabes alguma coisa acerca da Athena? 

- Apenas sei que o pai a tem fechada no quarto e a vai mandar novamente para longe. 

Tobi sentiu-se desesperado. Tinha de fazer algo, se ele a deixasse partir nunca mais a veria. A sua mãe garantiu-lhe que arranjaria quem o auxiliasse a recuperar a sua amada. A notícia dos acontecimentos espalhou-se rapidamente, Tobi era agora procurado pela guarda. Dizia-se que havia desonrado a jovem Athena. A população insurgia-se contra todos os eraks. Grupos de encapuçados entravam pelo gueto batendo em todos os que viam, como se todos eles fossem os culpados pelo erro de um. Ao final daquele dia, o sangue voltava a correr pelas ruas como havia sucedido há muito tempo atrás.


Parte 4:
Parte 2: 


O documento (humildade) - Ana Ferreira

Neste momento, um autor acaba de escrever o seu texto. Não se senta à frente de uma máquina de escrever com tabaco ao lado e com a injecção de morfina. O ópio fica esquecido nas folhas dos livros antigos, nas estantes e a vodka é trocada por uma chávena de café. A ideia do escritor solitário, a escrever isolado do mundo, já não existe. A visão de um autor que mal acaba de produzir a sua obra numa assentada, não passa de uma lenda que nos é contada para que continuemos a alimentar um sonho de perfeição. Neste momento, o autor que acaba de escrever o seu texto, procura por editoras para enviá-lo. O seu livro não estará muito tempo perdido nas pastas de escrita do seu computador. Não é preciso. Tudo o que escrever terá de servir para publicar. Afinal de contas para que se quer um brinquedo, se não podemos brincar com ele? O autor envia o seu livro para a sua editora para ela avaliar. O seu orgulho promete-lhe que este livro será aceite por uma editora. Tem todos os ingredientes para isso e passou três meses a escrevê-lo. Afinal, se Kafka escreveu a sua Metamorfose numa noite e o Álvaro de Campos nunca revia os seus textos, em três meses algo de bom teria de sair daquela cabeça. Nem tudo eram ilusões na cabeça do autor. Sabia bem que cativar a audiência seria difícil. Não se pode agradar a todos, mas se vendesse bastante já deveria chegar. O nosso autor também tinha plena consciência de que viver como autor não passava mesmo disso, uma ilusão. Se conseguisse chegar à segunda edição seria uma vitória. Mas afinal isso seria fácil com uma editora grande. A sua editora mais tarde dir-lhe-ia o que era preciso ser alterado. Nunca contratara uma editora antes. Todos os grandes escritores pareciam ter um. O seu telemóvel vibrou. 

- Estou? Olá Sofia, então como vais? 

A voz do outro lado soluçava. 

- Não consigo, Miguel... Não consigo escrever... 

- Então, que se passou? O que aconteceu àquela ideia que tinhas? – Um silêncio e depois a mulher voltou a falar. 

- Não sei... está uma merda! Tudo uma merda. – Outro soluço. – Não posso enviar isto ao meu editor. Ninguém vai querer ler isto. 

Ele suspirou. 

- Posso ler? Queres enviar-me por e-mail? 

- Vais dizer que está horrível! 

- E depois? Antes eu que o mundo inteiro. – O choro parou. – Anda lá, eu acabei de te enviar tudo, tenho tempo para ver o teu livro. Não vás abaixo. Conseguiste planear tudo num ano e só estás há dois a tentar escrever. 

- Se não pensarmos nos cinco anos que tive para aprender a escrever alguma coisa minimamente decente... 

- Só começou a contar quando escreveste a primeira frase. 

- Miguel, é a terceira vez que reescrevo o início do livro... Nunca vou acabar esta merda! – O choro voltou. 

- Pára com isso... manda-me isso e eu depois vejo, ok? Não demoro muito tempo. Depois se formos os dois aceites e publicados, eu faço-te o jantar. Soja como tu gostas. Combinado? 

A mulher esforçou-se para sorrir enquanto as lágrimas caíam. Na sua secretária um maço de tabaco e chocolate quente acabado de fazer. 

- Até já... 

Pousaram os telemóveis. Miguel voltou-se para o computador para fazer refresh na conta de e-mail à espera do manuscrito. Bebeu um gole de chá. A miúda não podia desistir naquele momento. Demorara muito tempo até conseguir elaborar a sua história... tinha a certeza que iam conseguir publicar. Na sua Caixa de entrada caiu um e-mail com o assunto: A desgraça. Miguel sorriu. Raios partam a miúda. Abriu o documento e começou a ler. O início não lhe parecia mau. Como sempre ela estava a exagerar com os seus devaneios. Um dia, enquanto bebiam os dois um chocolate quente no café, Miguel perguntara-lhe porque é que não se tornava editora em vez de escritora. Sofia respondera-lhe que era ambos. Era possível ser ambos e ela seria a prova disso. Claro que era alheia a estes ataques de raiva, em que a sua editora interior tratava de querer apagar tudo o que tinha escrito. Olhou para o relógio. Três da manhã, tempo de ir recarregar baterias. 

*** 

Duas semanas depois acordou com o som da campainha. No chão estava uma caixa dos correios com o seu manuscrito anotado. Sofia tinha escrito as anotações a azul e as mais graves sublinhou com caneta fluroscente. Sentou-se na poltrona a ler as modificações. Nada de grave. Uma alteração de cenário no primeiro capítulo, algumas alterações sintáticas. Foi aquecer água para um chá. A meio do manuscrito a sua cara ficou séria... Estás a gozar comigo, miúda? Sofia pedia-lhe para matar uma personagem, mudar o final e ainda fazer umas quantas alterações no seu worldbuild. Os olhos de Miguel incharam de raiva. Matar aquela personagem? Caramba, de todas as que podia ter pedido, para matar, tinha de ser mesmo aquela? Rebolou na cama. Não! Não, não, não podia matar a Cybil! A Cybil era a sua personagem favorita. Ia doer demasiado. Ela representava a sua amada. Impossível. A Sofia que fosse dar uma curva. Ligou o computador para escrever um extenso e-mail, onde justificava o porquê de não poder mudar certas coisas. Se fosse correcção de português ainda entendia. Ele era um autor! Tinha publicado um livro e este era o seu segundo trabalho. A Sofia estava há cinco anos a tentar acabar um livro, o que sabia ela de escrita? Nem por sombras! Ela não sabia o quanto custava apegar-se às personagens. Ele era um autor e ela não... Das duas uma: ou arranjava um novo editor ou então enviava assim para a editora. Lamento, Sofia. 

*** 

Sofia abriu o documento de word com todas as justificações... Suspirou. Ai, ai Miguel. Quando é que vais entender que o orgulho de autor não te leva a lado nenhum. Encostou a cabeça no sofá. Só porque recebeu críticas positivas do seu primeiro livro, não implicava que este não tinha falhas. Um ego de autor inchado é do pior que pode haver. Pegou num cigarro. Kill your darlings... Always kill your darlings. Aquela personagem que mais parecia uma Mary Sue não ia a lado nenhum. Precisava de sofrer, de apanhar porrada. Arranca-lhe um membro ao menos. Os leitores precisam de sentir que ela é humana. Um autor com ego era uma coisa horrível. Miguel tinha de entender que Sofia queria que ele passasse de um autor pouco conhecido, para aqueles autores, cujas críticas apareciam nos jornais e nas revistas. Queria o seu livro à venda em todo lado e com críticas positivas de críticos conhecidos. Para isso teria de mudar muitas coisas... se o seu ego o permetisse. 

*** 

Miguel abriu a caixa de e-mail. Não se entendiam quanto ao livro. Miguel ia agora enviar o seu manuscrito para outro editor. Verificou o documento mais uma vez e começou a ler os capítulos. O seu coração acelarou. Pegou no telemóvel com as mão trémulas. 

- Miúda, tu não vais-te acreditar no que aconteceu... 

Do outro lado, Sofia abria a porta do fogão para colocar o macarrão lá dentro. 

- Podes tentar chocar-me... – O seu tom de voz reflectia a tristeza do seu rompimento como editora do Miguel. 

- O meu texto não é o meu texto! Tipo abri o documento, o livro, e tipo o que está aqui escrito não fui eu! Isto não é a minha versão! 

- Que alterações tem? 

- A que tu escrevestes. Mas é impossível, as tuas estavam à mão e isto está no word... Como raios é que isto aconteceu? 

- Karma can be a bitch, uh? – Sofia carregou nos botões. – Olha lá, não queres vir cá jantar? Já que estou de tacões e a fazer um tabuleiro mais vale ter outra pessoa a comer comigo. 

- Estou mais preocupado em saber como é que isto aconteceu. 

- Fine. Vens cá, trazes a pen, bebes um copito. – Miguel concordou. –Agora que tens as minhas alterações vais publicar? 

- Nem penses. Isto não é meu, Sofia. Até já. Sofia repetiu a despedida e desligou o telemóvel. Enquanto esperava por ele, sentou-se com o portátil no colo da sala. Abriu o seu texto. O seu editor tinha-lhe enviado as alterações e estava agora a alterar consoante as suas indicações. Séria, a beber um pouco de chá preto, via as alterações sendo introduzidas automaticamente no programa. A sua editora elogiou o seu trabalho e já tinha três editoras interessadas após as alterações serem feitas. Miguel não tinha recebido qualquer resposta dos outros editores. O coração de Sofia apertava-se cada vez mais. Não compreendia a sua atitude. Uma editora nunca queria o mal do autor, o seu sucesso era o sucesso dela. Adicionou uma palavra à lista das qualidades dos autores: humildade. Todos os editores sabem que um bom autor em busca de sucesso deverá estar preparado para ouvir críticas.


Corpo, Alma e Coração (caridade) – Carina Portugal

O ribombar de um trovão tomou os céus e a terra, e a página voltou-se por si só. Também esta causou um estrondo que me fez estremecer, o mesmo que faria o bater de pedra contra pedra. No entanto, o livro era feito com pouco mais do que papel. 

Engoli em seco, ao ver um traço de luz percorrer os arabescos que nunca aprendera a ler. Retorcia-lhes a tinta, esmagava-os, mutava-os a seu belo prazer, exibindo crueldade. Dentro da minha cabeça, as letras gritavam de dor e pânico, desejando saltar do papel enquanto se contorciam. Ou seria só um reflexo do ribombar do trovão? 

Quando o traço atingiu o fim da última linha, outro estrondo abalou o Templo da Vida, ameaçando a segurança das colunas de suporte. As tochas que cercavam a sala extinguiram-se em simultâneo. Fiquei sem enxergar por segundos, até os olhos se habituarem ao luar que entrava pelos recortes do tecto, criando todo um jogo de luz e sombras. 

O solo oscilou sob os meus pés. Os vermes que se escondiam dos olhares dos predadores guincharam, apesar de não terem voz, e fugiram dos interstícios que os ameaçavam esmagar nas suas próprias casas. Com um impulso de vida imprevisto, nasceram à superfície, por entre as lajes carcomidas pelo tempo, qual plantas daninhas. Um desses bichos emergiu por entre os meus dedos dos pés. Saltei e recuei vários passos, sem largar o livro. E outra página voltou-se. 

Do que supus serem as cabeças dos vermes, ramificaram-se múltiplos membros que se alongaram numa altura acima da cintura de qualquer humano de estatura média. Ninguém os via, porém estavam lá, implantados nas extremidades: receptores sensoriais que buscavam alimento, farejando cada partícula de ar para rapidamente absorver as que lhes interessavam. Seguiam o trilho sensorial, sem hesitações. E eu próprio não compreendia como o conseguia perceber. 

A última página voltou-se, e o livro encerrou-se com um estrondo que ecoou até nos ossos. 

Aos meus olhos pareceu tudo tão lento, mas na verdade não demoraram mais do que um instante de segundo. Os bichos precipitarem-se sobre os sacrifícios. Com rostos que exibiam sorrisos idiotas, fora-lhes roubado o medo, o egoísmo, qualquer instinto de sobrevivência; quase tudo fora arrancado de raiz, deixando para trás somente bondade, generosidade… caridade cega. 

Dos membros tentaculares brotaram múltiplas pequenas mandíbulas que perfuraram e se afundaram nos corpos. Os gritos toldaram o ar com a sua intensidade, enquanto as entranhas lhes eram sugadas. 

Não podiam fugir, pois tinham sido atados às pedras de sacrifício que pejavam o templo. No entanto, se tivessem essa possibilidade, também não o fariam, porque o único desejo que se lhe implantara na mente ficava honrado em alimentar os Vermes do Mundo com tudo o que tinham. 

Não demorou muito até, sobre os altares, sobrarem somente órgãos pulsantes. Um fio muito ténue erguia-se dos corações, ligando-os a uma forma espectral, qual cordão umbilical. Eram almas, ainda ligadas à vida. 

Já vira imagens delas, desenhadas em livros antigos, porém nunca acreditara na sua existência. Lembravam alguém que passara por todas as prostrações do mundo. As cavidades oculares vazias eram tão profundas quanto fossas abissais; o fantasma de uma boca semi-aberta mexia-se como quem quer falar; e o que antes fora a pele do corpo repuxava-se, revelando o contorno das costelas através das quais se via o outro lado da sala. 

Engoli em seco e dei novamente outro passo à retaguarda. Com o pé descalço, esmaguei parte do corpo de uma daquelas coisas, arrancando-lhe um guincho, não tanto de dor, mas de ultraje. Vários tentáculos voltaram-se para mim, exibindo as mandíbulas das quais pingava sangue. Desperdício. Aqueles vermes malditos desperdiçavam resquícios das vidas que lhes tinham sido oferecidas. 

Foi então que o livro estremeceu nas minhas mãos. Os dedos não se mexeram quando tentei largá-lo e, do seu interior, a linha de luz precipitou-se de entre as páginas para a minha mão esquerda, cauterizando a pele enquanto subia pelo interior da manga. 

– Larga-me! – ordenei, bracejando compulsivamente. – Sai de mim, demónio! 

Por entre o tecido negro da túnica, um fumo impregnado com fedor a pele queimada rodeou-me. Contorci o corpo selvaticamente, ao tentar livrar-me daquilo, acabando por tombar para trás. Quase não senti o impacto, e os gemidos que soltava eram todos devido à queimadura que agora me subia pelo pescoço, trepava para o rosto, e parava mesmo junto ao olho, desvanecendo-se. 

Fiquei muito quieto, com os tentáculos debruçados sobre mim. Pareciam aguardar outro sinal, enquanto uma pergunta óbvia me pairava na mente: porque razão não me atacariam, como tinham feito com os outros humanos? 

O corpo ardia-me de dor e calor, e o suor começava a manchar-me a roupa. Inspirei e expirei, pensando em cada movimento. Só não pensei no bater do coração, porque o meu facilmente era abafado pelos que, estranhamente, pulsavam ainda sobre os altares. 

Levantei-me um pouco a medo, tentando não tocar nos tentáculos que me seguiam os movimentos. Como reflexo da minha deslocação, as almas contorceram-se e levaram as mãos a elas próprias. Crisparam os dedos translúcidos no corpo e começaram a arrancar pedaços de si, num ataque compulsivo. As zonas arrancadas ganhavam uma estranha densidade que as impedia de levitar e caiam, sendo devoradas sem demora. 

Quando nada mais havia para arrancar, o cordão que as ligava ao coração desapareceu, e eu estremeci de medo. No meu rosto, a luz renasceu devagar, o calor intensificando-se e entranhando-se na carne. 

– Não… tira-a de mim, tira! – gritei, batendo com o livro na cara, esperando que este apagasse a luz, ou a recolhesse no seu conteúdo amaldiçoado. 

De nada me valeu. A luz queimou-me o olho e infiltrou-se por detrás do globo ocular, incendiando-me os nervos ópticos num trilho que a levou até ao cérebro. E se eu já pensara sentir uma dor excruciante, nada me preparara para a sensação que me fulminou. Um fogo invisível imolou-me o corpo, consumindo cada órgão vital, cada membro, até me transformar completamente em cinzas, ou quase. Deixei de ver, contudo, do que conseguia sentir, ainda tinha corpo. A consciência comprimia-se num invólucro apertado e a única forma de me mover era rastejando. Por isso rastejei. Escondi-me numa daquelas fendas entre as lajes e procurei um interstício onde me abrigar dos predadores. Era assim que o instinto me comandava. Agora o verme era eu, a aguardar por devorar aqueles que tinham só caridade. 

Sob os altares, como reflexo do último movimento da Luz, os corações liquefizeram-se e foram absorvidos pela pedra, numa entrega total de si mesmos ao Mundo. 

E eu sorvi esse fertilizante que era vida.


O paciente é o mais forte (paciência) - Pedro Pereira

Ormim Endyere era conhecido por todo o reino como sendo o mais poderoso feiticeiro vivo. O mago ganhara a sua fama ao longo de várias décadas. Contavam as histórias que nunca ninguém o fora capaz de derrotar em duelo. 

Agora, já com mais de oitenta anos, Ormim optara por se retirar para as solitárias montanhas de Ruos, na zona norte do reino. Nunca gostara das luzes da ribalta embora a sua aptidão para a magia sempre o tivesse colocado em posições de destaque. As inóspitas montanhas permitiam-lhe ter uma vida mais calma, pelo que rapidamente fez delas a sua casa. Ali podia instruir os seus discípulos sobre as artes ocultas sem interferências do mundo exterior. 

Ormim passou as mãos pela longa barba branca enquanto observava os seus alunos. Encontravam-se nas margens de um lago escondido por rochedos. Os seus alunos punham em prática o encantamento que lhes acabara de ensinar: como transformar água em gelo. 

– Dradel, respira fundo e concentra-te – declarou Ormim. 

Dradel era um dos seus alunos com maior potencial, mas era demasiado impulsivo, o que lhe dificultava a mestria das artes ocultas. 

– Lembra-te, a água turva não mostra peixes ou conchas, o mesmo acontece com uma mente nublada. Tens de manter a calma e a concentração quando executas o encantamento, ou o resultado não será o esperado. 

– Sim, mestre… 

Continuou a observar os seus alunos com atenção. Ainda tinham muito que aprender e ele muito que lhes ensinar… 

Uma figura coberta por um manto negro surgiu por entre as rochas da encosta. Com passos decididos, encaminhou-se para a margem do lago, onde Ormim e os seus alunos se encontravam. Era raro cruzarem-se com outras pessoas naquelas passagens. Por vezes encontravam alguns pastores, mas Ormim conhecia-os a todos. Aquele homem não era nenhum pastor. 

O desconhecido aproximou-se do mago e parou. 

– Ormim Endyere, pelo código dos magos e pelos deuses antigos, eu, Taird Aughad da casa de Tasygh, desafio-o para um duelo – declarou o homem. 

Taird não devia ter muito mais de trinta anos. Ainda era jovem e dificilmente teria conhecimentos e poder suficiente para derrotar Ormim. Contudo, ditava o código dos magos que não se podia recusar um pedido formal de duelo. Era a forma habitual pela qual os jovens feiticeiros ganhavam fama, mostrando as suas capacidades contra outros mais experientes. 

– Aceito o teu desafio, Taird Aughad da casa de Tasygh – respondeu Ormim, levantando-se da rocha onde estava sentado. 

Todos os alunos pararam com os seus exercícios para assistirem ao confronto. 

Antes que Ormim pudesse mover um único musculo, Taird lançou uma tempestade de chamas contra o mago, envolvendo-o em fogo azul. Mas as labaredas não chegaram a atingir o feiticeiro. Concentrando toda a sua atenção nas defesas, o mago mais experiente fez com que estas se afastassem do seu corpo. 

Taird cessou o ataque de fogo e lançou vários raios na direção de Ormim. Tal como as chamas, estes embateram na barreira invisível que o mago erguera à sua volta. 

Irritado, o jovem feiticeiro lançou uma nova vaga de ataques, mas o resultado foi sempre o mesmo. 

O duelo manteve-se por quase duas horas. Taird atacava Ormim, mas este nem mexia um único músculo nem mostrava intenções de atacar. Limitava-se a permanecer no mesmo local e a focar a sua atenção na sua barreira protetora. 

Sentindo-se exausto e humilhado, Taird deu-se por vencido e retirou-se, deixando o velho mago novamente a sós com os alunos. 

– Mestre, como conseguiu aguentar as defesas por tanto tempo? – questionou Dradel impressionado com a prestação do mestre. 

– Com uma mente calma e limpa. Só assim consegues manter o nível de concentração necessário para bloquear os ataques. 

– Mas mestre, o duelo durou quase duas horas… Como é que não perdeu a calma e a concentração durante tanto tempo? 

– A paz interior depende unicamente de ti. Ninguém te pode tirar a calma a menos que tu deixes – respondeu Ormim. – A paciência e a perseverança são as melhores amigas de um mago. Lembra-te sempre disso.


Diligência - Carlos Silva

Uma nova vergastada cortou o ar, emitindo o seu terrível silvar. Uma linha fina de sangue rasgou-se nas costas de Semião entre os sulcos vermelhos das vergastadas anteriores. O jovem guerreiro cerrou os dentes, quase cortando a língua, absorvendo no seu silêncio a dor lancinante. O mundo estava turvo. Mesmo assim, conseguia ver os olhares fixos e inexpressivos dos restantes recrutas que assistiam ao castigo. 

- Diligência! – berrou o instrutor, demorando-se em cada sílaba. – Acima de tudo, diligência! 

Semião acenou com a cabeça, aceitando o castigo. Era preciso estar alerta, constantemente de sobreaviso, sempre pronto a actuar. Era treinado para atingir o ideal de soldado, que ao mínimo sinal se transmutasse numa máquina de matar, sem reflexão nem ponderação, apenas acção. Uma nova vergastada caiu sobre as costas de Semião, fazendo algumas gotas de sangue cair no chão. O instrutor parecia satisfeito com o castigo e deu ordens para dispersar. Como um só corpo, o batalhão afastou-se do palanque onde agora Semião jazia no chão, ao lado do toro. 

Um par de braços arrastou o corpo inconsciente do soldado castigado de novo para a caserna, deitando-o numa cama. 

Quando Semião voltou a abrir os olhos, já a noite ia alta. As costas ainda latejavam de dor, avisando-o do que aconteceria se ele se tentasse mover. Do exterior, abafados pela grossa muralha e pela distância, conseguiam-se ouvir os gritos de guerra dos seus companheiros e os guinchos dos ferradentes que, mais uma vez, atacavam a cidade. Semião daria tudo para estar a combater lado a lado com os seus colegas, a proteger a cidade, a cumprir o destino que desde criança escolhera. Tentou levantar-se, mas a dor sobrepôs-se à vontade. Diligência! Repetiu para si e fez uma nova tentativa, erguendo-se num movimento desengonçado. Conseguia agora espreitar pela janela, onde o céu nocturno se iluminava de clarões das rajadas de magia que os magos atiravam contra os ferradentes. 

Todas as noites a história repetia-se, tal como sempre fora desde que havia registo da civilização. Assim que o breu cobria a terra, os ferradentes saíam dos seus covis sedentos de carne humana e lançavam-se num ataque selvagem à cidade mais próxima. Alguns povos isolavam-se em cidades subterrâneas, outros viviam em cidades flutuantes, mas a cidade de Semião, dependente da agricultura, apenas podia erguer muralhas e organizar turnos para que em cada ataque os ferradentes encontrassem a morte nas armas e feitiços em riste. 

O combate duraria, vaga após vaga, até ao sol nascer. Os ferradentes recolheriam para a floresta, levando consigo para comer os seus irmãos caídos em batalha e, se tivessem sorte, algum humano que tivessem conseguido capturar. 

Semião suspirou, pensando nos seus colegas. Aquela era a noite em que o seu batalhão ia ser levado, pela primeira vez, a assistir à defesa da cidade. Não era raro os batalhões em treino serem requeridos para a batalha na sua primeira noite de observação. Semião cerrou os dentes de frustração. Não conseguia suportar a ideia de poder estar a perder uma oportunidade única de despedaçar os monstros que tinham morto o seu irmão mais velho, em vez dos fantoches de treino. Como ansiava ferrar as mãos na sua lança e empalar três e quatro ferradentes de uma só vez. Aprendi a lição. Disse para si. De ora em diante, serei o soldado mais diligente de todos. 

A porta da caserna abriu-se num estrondo, fazendo Semião saltar dolorosamente de susto. O perfil de um soldado recortou-se entre o exterior e o interior. Movia-se com dificuldade, com uma mão a segurar algo contra a barriga. Foi ao ver o sangue a pingar sobre o chão que Semião se apercebeu que estava ferido. Bradou por um mago hospitalar e acorreu ao colega. Não era do seu batalhão, era muito mais velho, provavelmente um veterano que não se conseguira afastar do clamor da batalha. Guiou-o até à sua cama, onde o estendeu. O soldado veterano não respondeu a nenhuma das perguntas que Semião lhe fizera, apenas grunhia sons incompreensíveis motivados pela dor. Semião clamou de novo por um mago hospitalar, mas não obteve qualquer resposta. 

De repente, um segundo homem abeirou-se da porta. Era o seu instrutor, arfando, de espada em punho, procurando algo como um louco. A armadura estava coberta de sangue que se mesclava com o vermelho da capa, mas o seu dono não parecia estar ferido. Colérico, o instrutor apontou para o soldado caído e gritou, projectando fios de baba em todas as direcções:
- Mata-o, Semião! Mata-o! 

Semião olhou para o seu instrutor, olhou para o homem ferido e de novo para o instrutor. Porque é que ele lhe pediria isso? Que se passaria com ele? Que teria feito aquele soldado de tão mal que merecesse a morte? Estaria o instrutor louco? Não podia matar assim sem mais nem menos! 

O recruta ouviu algo a rasgar atrás de si. Quando se virou, apenas teve tempo de ver uma forma negra e esquelética a irromper do soldado moribundo, espalhando carne sangue em todas as direcções. Os olhos amarelos da criatura fitaram os de Semião, arrancando as últimas réstias de coragem do recruta cujas pernas tremiam sem controlo. O instrutor rodou a espada sobre si e desferiu um golpe no ferradente, cortando-o ao meio, não sem antes a criatura abrir com um golpe a garganta de Semião. 

Os dois corpos caíram em uníssono no chão, mesclando os seus sangues avermelhados. O instrutor abanou a cabeça condescendente. Não se podia demorar muito mais ali, os seus recrutas precisavam de si na frente de batalha. Saiu porta fora, deitando um último olhar ao último folgo de Semião. 

- Diligência… Diligência acima de tudo, Semião.


Mensagens mais recentes Mensagens antigas