Indivíduo 103 (2/3) - Pedro Pereira

Despertei lentamente do meu sono e apercebi-me de que aquelas mentes primitivas continuavam a partilhar o laboratório comigo. Pareciam estar mais calmas. Não se aperceberam de que eu tinha acordado. 

Mantive-me imóvel e com a mente calma, livre de perturbações. Talvez assim conseguisse enganar a máquina que me monitorizava. 

Duas das criaturas falavam no seu idioma primitivo. Estavam suficientemente próximas para eu ouvir a sua conversa. 

– Depois de quase vinte anos, finalmente conseguimos! Clonámos um Inai com sucesso! Temos de avisar o Supremo Sacerdote, ele vai querer saber as notícias. 

– Mas doutor, não acha que ainda é cedo? Será que ele está estável? 

– Pela primeira vez conseguimos acordar um indivíduo. Não nos limitámos a clonar tecido, este desenvolveu consciência! Parece-me um motivo mais do que suficiente para informar o Supremo Sacerdote. A Igreja investiu muito nesta investigação, há muito em jogo… 

– E o que vai dizer ao supremo sacerdote? Ele quer um clone de um Inai puro, esta aberração não passa de um mestiço. 

– Clir Lorek, já trabalhas comigo há dois anos neste projeto. És um dos geneticistas mais promissores que Sython já viu. Sabes perfeitamente porque é que não é possível clonar um Inai puro… 

– O corpo do espécime original tinha milhares de anos e, apesar de bem conservado, o ADN deteriorou-se, ficou incompleto… 

– E por isso mesmo, de todos os indivíduos que gerámos até agora, nenhum sobreviveu mais do que algumas horas. Só quando começámos a alterar o genoma do Inai, adicionando-lhe características de outras criaturas para o completar, é que começámos a obter resultados. 

– Não me parece que o Supremo Sacerdote vá gostar da ideia de termos conspurcado o ADN do seu precioso Inai com o de outras criaturas. Os Inai são os deuses da Igreja, as crenças estão bem enraizadas no povo. Além disso, são a base de toda a civilização moderna, toda a tecnologia que possuímos resultou de engenharia reversa dos vestígios que os Inai deixaram no nosso planeta. Clonar um destes seres e alterar o seu ADN não vai contra todas as crenças e ensinamentos da Igreja? 

– Agora é que estás preocupado com moral?! Não sejas hipócrita, Lorek! Aprecia o momento. Graças a este nosso feito vamos ficar para a história! E quanto ao Supremo Sacerdote, ele não precisa de saber todos os detalhes… Afinal, o Inai é o brinquedo dele, a ferramenta ideal para controlar as massas e dar mais poder à Igreja. 

Brinquedo?! Clone?! Aberração?! O que queria isto dizer?! Quem se julgavam estas criaturas para me usarem a seu bel-prazer?! Eu não sou escravo de ninguém! 

– Doutor, as ondas psíquicas! 

– Rápido, adormeçam-no! E coloquem uma dose de sedativo mais forte desta vez! A máquina detestou o meu descontrolo emocional. Em fúria, tentei libertar-me da minha cela, mas em vão. O tranquilizante foi inserido no tanque numa questão de segundos. A névoa regressou e eu caí novamente num sono sem sonhos…


Parte 3:
Parte 1:

Indivíduo 103 (1/3) - Pedro Pereira

Sinto o corpo a aquecer. Os meus músculos contraem-se com espasmos e experiencio o picar da dormência nos membros. Conforme recupero a sensibilidade, apercebo-me de que estou submerso num líquido viscoso. 

Abro os olhos. Luz. A claridade fere-me a vista e impede-me de ver o que quer que seja. 

A minha mente começa a recuperar da sonolência. Parece que dormi uma eternidade… Consigo sentir a presença de várias mentes primitivas em meu redor. Não estou sozinho. Oiço vozes. O dialeto é primitivo mas simples de entender. Aprendo rapidamente aquela língua rude através dos pensamentos das criaturas. 

– Doutor, as medições dos níveis psíquicos estão a aumentar! 

– Não é possível! Ele está?... 

– Ele está a ganhar consciência, doutor! 

– Ao fim de tantos anos, finalmente conseguimos! 

A excitação daquelas mentes primitivas é notória. 

Aos poucos, os meus olhos habituam-se à claridade e recupero a visão. Dou por mim fechado numa sala branca, repleta de instrumentos brilhantes. Estou aprisionado numa espécie de tanque. 

Um estranho ser bípede aproxima-se de mim e olha-me através do vidro. Consigo perceber que ele é o líder. 

– Fantástico… Indivíduo 103, és um sucesso! Vais-me valer uma boa promoção! 

Indivíduo 103? Onde estou? Quem são estes seres? 

Já com o controlo completo dos membros, começo a bater contra o vidro com os meus quatro braços. O ser bípede afasta-se repentinamente. Continuo a bater contra o vidro, tentando libertar-me, mas os meus membros estão presos por vários tubos que saem do tanque, condicionando-me os movimentos. 

– Metam-no a dormir! Já!

Sinto que um líquido é injetado no tanque. Continuo a debater-me, a tentar libertar-me, mas o meu corpo começa a ficar mole. As mentes que me rodeiam parecem ficar cada vez mais distantes. Já não oiço vozes, já não sinto a presença das criaturas. Uma névoa cobre-me os pensamentos e tolda-me a mente. Contra a minha vontade, fecho os olhos e caio num sono profundo.


Parte 3:
Parte 2:

O Cálice de Prata (5/5) – Sara Farinha

– Corvo! – André Beaumont gritou, enquanto descia o leito do rio. O estreito curso de água agora relegado a um precioso fio que cirandava através das pedras musgosas. 

Certo de que se encontrava no sítio onde sucumbira à sua ganância, voltou a gritar, recebendo em troca o som de inúmeras asas que levantavam da copa das árvores em voo desenfreado. Passou as costas da mão pela testa, limpando as gotas de suor, e perscrutou as margens. A floresta era uma presença viva em seu redor mas do encurvado velho, de milhentas rugas no rosto, não havia sinal. 

– Não quer o cálice de volta? – André continuou, empunhando o recipiente acima da cabeça. 

– Vens devolver o que roubaste? – os olhos negros do velho vibravam de satisfação. Tão perto de André que o fez dar um passo atrás e lançar a mão sobre o punho da espada. 

– Assustei-o? 

O rosto enrugado, os cabelos cinzentos quase azulados e o aspecto andrajoso permaneciam tal como André se lembrava. 

– O que me fez você? – André bramiu, agarrando o homem pelo colarinho da sebosa camisa castanha e levantando-o do chão. 

– Avisei-o. – O velho murmurou. 

– Amaldiçoaste-me. Isso sim! Não sabes o que fiz… – André deixou morrer a frase, à medida que pousava o homem no chão molhado, e os seus olhos se turvavam com as memórias que o atormentavam. 

– Veio devolvê-lo? – o velho perguntou, com um sorriso fino nos lábios. 

– Sim. 

– Agora é tarde! 

– O que dizes? Não o queres? – André atirou, voltando a agarrá-lo pelos colarinhos da camisa, mas sentindo uma pequena chama de esperança a queimar dentro do seu peito. 

– Foste escolhido. – o velho murmurou, olhando para trás de André. 

Largando-o com um empurrão, André voltou-se para o sítio onde os olhos de Corvo haviam divagado, desembainhando a espada. 

Elisabetta, num brilhante vestido prateado, era um reflexo da lua. O enorme traje composto por milhares de fios de prata enredados num espartilho e numa saia de cauda, emitia um brilho etéreo, que viajava até às retinas e as cegava a qualquer outro corpo ou cor. Os seus cabelos, antes de tom cobre, eram agora prateados como a luz da lua em pleno breu. O sorriso era pura luz, brilhante e assombroso, cegando tudo à sua passagem. 

– Vês? Ela já não me quer. – Corvo murmurou, numa pilha de ossos e pele enrugada que caiu sobre o pequeno curso de água. 

– Estou aqui. – André afirmou, a sua voz tremendo perante a imagem de Elisabetta. 

– Bem vejo. Entrega o cálice ao Corvo. – Elisabetta ordenou. 

Embainhando a espada, André ajoelhou-se à frente do velho. 

– Não! – Corvo bramiu, as lágrimas escorrendo pelas rugosas faces, e embatendo na puída camisa castanha. 

– Chegou a hora de um novo equilíbrio, Corvo. – Elisabetta declarou. 

– Senhora… – Corvo assentiu, agarrando o pé do cálice que lhe era oferecido. 

O toque de ambos sobre o recipiente arrancou um grito ao velho, cujo rosto se encarquilhou, até nada mais ser o que uma fina camada translúcida sobre protuberantes ossos. Uma rajada de vento erodindo pele e ossadas, o corpo dele desfez-se perante o olhar assustado de André. O cálice reluziu um intenso arco-íris antes de voltar a assumir os negros, azuis e cinzentos que emitiam nas mãos dele. 

– Beaumont, trazes contigo dois objectos de valor. – a voz de Elisabetta soou, fazendo-o olhar para o sítio onde ela pairava sobre a floresta. 

André deitou a mão à tira de couro que lhe apertava o, cada vez mais sujo, manto e retirou o cilindro que transportava. Os seus dedos tremeram ao desenrolar o pergaminho, arfando ao vislumbrar os selos do Grão-Mestre e do Senhor daquelas terras, que cobriam a margem inferior da mensagem. Absorveu as palavras com um pânico crescente, olhando para Elisabetta ao som das suas palavras seguintes. 

– És o novo portador do Cálice da Vida. 

– Não… – André murmurou num tom implorante. 

– Tarde demais. – ela retorquiu com um sorriso, o seu corpo transformando-se em bruma, que encheu o cálice de pó prateado, sendo absorvido em seguida pelas côncavas paredes. 

As mãos que seguravam o cálice eram de um velho enrugado. Passou a mão pelo rosto, cheio de protuberâncias que não tinha há pouco tempo atrás, sentiu-se definhar até ser um velho tal como aquele cujo corpo acabara de ruir à sua frente. Era um velho, mas na sua mente, tinha todo o Saber do Mundo. Ele era Vida e Morte, Bem e Mal, Tudo e Nada. Ele era o Corvo, o frágil repositório do Equilíbrio. O portador do Cálice da Vida.


Parte 4:
Parte 3:
Parte 1:


Fome - Liliana Novais

Salvador percorria as ruas desertas da cidade, àquela hora tardia. Os seus músculos encontravam-se entorpecidos pelos séculos de descanso. Despertara faminto. As roupas que envergava haviam sido suprimidas roubadas de um qualquer estendal, uma vez que aquelas com que ele se recolhera há muito que haviam sido devoradas pela passagem do tempo. 

Ele tentara, em vão, forçar a sua entrada numa casa próxima do local onde dormira. Mas as portas estavam bem fechadas e as janelas cerradas, o que o impedia de hipnotizar alguma vítima incauta. Ele sabia que se não se alimentasse não recuperaria a sua força. Avançou, dominado pelo impulso, pela necessidade de sangue que o cegava. 

O som de centenas de corações a bater enlouquecia-o. Ele não os conseguia alcançar. O seu desespero era tal, que até um pedinte qualquer caído na beira da estrada serviria para aplacar a sua sede. Mas o azar perseguia-o, pois não se vislumbrava vivalma. Estava sozinho e perdido numa cidade que lhe era estranha. 

Cambaleou. Sentia-se muito fraco e vulnerável. Apoiou-se numa parede para não cair. Apenas conseguia pensar em sangue. Era uma necessidade que crescia e que o estava a começar a dominar, em breve deixaria de raciocinar e abandonaria toda a prudência. 

Com os seus sentidos ao máximo, procura um indício de vida, de uma refeição. A brisa de Verão transportou até si, o som de passos longínquos. Pela sua experiência, concluiu que se tratava de uma mulher que percorria as ruas sozinha. Movimentou-se rapidamente para a conseguir alcançar, sem desperdiçar energia, pelo que não podia utilizar a sua super-velocidade para a alcançar. 

Parou a poucos metros dela. Ele conseguia sentir o seu perfume intoxicante. Desejava o seu sangue como nunca havia desejado ninguém anteriormente. Queria agarrá-la naquele lugar, ignorar o bom senso. Tomá-la nos seus braços, e fazê-la sua. Tinha de se conter, uma vez que alguém o podia ver. 

Parou em frente a uma montra fingindo estar a olhar para esta. O coração dela a acelerou, devia tê-lo ouvido. Tinha de se afastar e segui-la com o uso dos seus sentidos apurados até um lugar mais propício. Na sua mente já conseguia saborear o seu sangue. Imaginava uma explosão de sabores que o invadiria e salivava. 

Salvador seguiu-a até um beco deserto e aí viu a sua oportunidade de atacar, tinha de ser rápido e ágil. Aquele era o momento, reuniu as últimas forças que tinha e agarrou-a. Cravou os dentes com força no pescoço da rapariga e tapou-lhe a boca com a mão. O sangue começou a jorrar e a saciar a sede. Era espesso e doce. Ele sentiu o seu corpo a entrar em frenesim. As suas energias estavam a restaurar-se, a cada gota que bebia sentia-se mais forte. Agarrou-a com mais força, sentia o calor dela no seu corpo. Quanto mais bebia, mais se sentia atraído por ela, era o efeito do sangue. Desejava o seu corpo. Ela debatia-se contra o abraço mortal do vampiro. Era uma lutadora, o que o levava a sentir-se ainda mais atraído por ela. Se não tivesse acabado de acordar, ainda poderia ponderar transformá-la. A sua mão livre acariciava o corpo dela. Era dele naqueles breves instantes que partilhavam. A cada gota que bebia sentia a vida dela a esvair-se rapidamente, o seu coração abrandava. E em breve, estava morta. Ele olhou para o corpo inanimado que tinha nos braços com indiferença, era apenas mais uma em muitas que matara, era alimento. Apenas servia para o manter forte. Atirou-a ao chão, pronto para prosseguir a sua busca por uma nova vítima.


O Cálice de Prata (4/5) – Sara Farinha

A lâmina cortou o ar com um silvo. A cabeça do tocador de harmónica desapegou-se do pescoço e rolou pela relva. Com o retinir dos gritos da mulher nos ouvidos, André bloqueou um golpe directo, da espada do outro homem. 

Cego, digladiou a sua arma, empurrando o homem para trás e bloqueando os seus fracos ataques. O sangue envolvia-o como uma mortalha conspurcada, impelindo a sua consciência a sair do seu corpo, isolando-o das consequências dos seus actos. Três estocadas e o homem tombava sobre uma pedra, o fogo iluminando os seus olhos esbugalhados e lábios ensanguentados, enquanto André descia a ponta da sua lâmina sobre o coração do desgraçado. 

O pisar de folhas secas fê-lo procurar o último alvo, puxando-o através do negrume florestal, como se seguisse um incontornável desígnio superior. O viscoso líquido vermelho, tão semelhante à tonalidade da cruz cosida no seu peito, pendia da sua lâmina e manchava o manto branco. André avançou por entre as árvores, cheirando o ar que o circundava, deixando que a ténue brisa matinal o guiasse até ao aroma doce da mulher. 

Embrenhou-se na vegetação, cego pela escuridão que o envolvia, e pelas vontades que o tomavam. O som de um pássaro assustado que levantava voo, o resvalar de pedras e esmagar de folhas, a coruja que cessava o seu monótono canto, impeliram-no a descer a encosta. A escassos passos, um vulto negro agachava-se atrás de uma das enormes pedras musgosas. Contornando o calhau, André fechou a sua mão calejada sobre a garganta da mulher, levantando-a e encostando as costas dela ao seu peito. 

– Nunca correr das feras enraivecidas. – André murmurou-lhe ao ouvido, arrancando-lhe um gemido. 

Sem largar o pescoço, afastou-a de si, atirando-a contra a rocha. Olhou-a no rosto enquanto sentia o oxigénio a rarear nos pulmões da sua vítima. Os seus olhos castanhos quase saíam das órbitas enquanto as lágrimas corriam copiosamente pelas faces. Manteve-se imóvel, segurando-a pelo gasganete, dividido entre a vontade de apertar a garganta até que nem um sopro de ar passasse, e o impulso de tomar o seu corpo e estraçalhá-lo com o peso do seu. 

As sombras estremeciam à frente dos seus olhos e a camponesa simplória ganhou a forma de numa bela mulher de pele alva, olhos verdes e cabelo cor de cobre. A atormentada expressão facial da sua presa substituída pela placidez de Elisabetta. 

– Impossível… – André murmurou, observando enquanto os trajes acastanhados assumiam matizes douradas e depois um brilhante prata, cobrindo a esguia figura com um manto que se colava ao seu corpo. 

Largou-a e deu dois passos atrás. Ali, à sua frente, Elisabetta sorria profusamente. Os seus olhos verdes tomando os seus, fixando-os com desdém. 

– O que fazes, cavaleiro? 

– Como? – André balbuciou, deixando cair a espada ao seu lado. 

– Que mal é que eles te fizeram? – ela perguntou, indicando com uma mão a pilha de corpos estraçalhados que jazia aos seus pés. 

A visão do emaranhado de membros arrancou-lhe um vómito que o prostrou de joelhos. A enorme túnica branca, manchada de vermelho escuro, alguns tons mais fortes do que a cruz pregada no seu peitoral esquerdo. “Casto, sem luxo nem vaidade” já não se aplicava a ele. Ali jaziam os corpos de inocentes. Aqueles, que sem a justificação da guerra, haviam visto o fim chegar pela lâmina dum cavaleiro ao serviço de Deus. 

– O que fiz eu? – André Beaumont murmurou. 

– Mataste. Tomaste algo que não te pertence. Que não era teu por direito e que não pode ser devolvido. – Elisabetta entoou, a sua voz assumindo uma delicada cadência cantada. 

– Verdade. – André sussurrou, escondendo o rosto nas palmas das mãos. 

– Mas ainda tens algo que não te pertence e que tem de ser restituído. 

André enfiou a mão pelas vestes manchadas de vermelho e retirou o cálice de prata do bolso interior. 

– Devolve-o ao Guardião do Bosque. – Elisabetta ordenou, o verde dos seus olhos chispava brilhante em aprovação. 

– Assim farei. – André assentiu, enrolando o punho à volta da taça e apertando-a até os nós dos dedos, brancos e espetados, perderem toda a semelhança com carne humana. 

Elisabetta desvaneceu-se entre fetos e carvalhos enegrecidos pela noite. 



André carregou o amontoado de membros, para a vala comum, perto do leito do rio. A terra escurecida manchava-lhe a pele, cobrindo o sangue seco que lhe adornava os dedos e a alma. A fome chicoteava-lhe o estômago, mas ele não comeria. O calor inchava-lhe os membros, mas ele recusava-se a despir o seu manto. O desejo queimava-lhe as entranhas, mas ele não o aliviaria. A sede estreitava-lhe a garganta, mas não iria saciá-la. Aliviar o que o consumia enquanto aqueles, deitados ali na terra, já nada sentiam… Não era benesse que pudesse reclamar. 

Cobriu o último pedaço de carne humana com pesar, deixando-se cair sobre a terra molhada do leito do rio. Retirou o cálice de prata e tombou-o no curso de água enchendo-o até à borda. Observou deslumbrado a miríade de azuis, cinzentos e negros que bailavam na superfície prateada. Nada restava do arco-íris que emergira na primeira submersão ainda nas mãos de Corvo, o velho, à beira do riacho. Apenas as cores escuras dançavam sobre a prata, espalhando a ausência de cor à sua volta. 

Inclinou o cálice encostando-o aos seus lábios gretados e bebeu sofregamente, o precioso líquido escorrendo pela garganta áspera e acalmando tudo em seu redor. Olhou-o de novo, já sem líquido, e sem qualquer emanação luminosa. Encostou-o ao peito e perguntou-se como iria se separar daquele estranho objecto? No seu íntimo, André Beaumont sabia… Deixá-lo ir seria abjurar da sua vida. O monte de terra escura, onde depositara os corpos, enquadrou o seu olhar. Enterrando o cálice no bolso do manto, tomou uma decisão. Outros haviam sido privados, ele seria capaz de renunciar de livre vontade. Levantou-se e, com ímpeto renovado, trilhou o caminho de volta através do leito do rio.



Parte 5:
Parte 3:
Parte 1:


Crónicas Obscuras: Dança do Corvo (8/8) – Despedidas – Vitor Frazão

- Quando partes? – pergunta Hayato, largando o cachimbo e passeando os olhos pela linha de árvores, onde os seus guerreiros aguardavam ordens. 

- De imediato – responde a vampira, agarrando a katana e erguendo-se. – Dentro de 4 dias será Lua Cheia, espero chegar à costa antes disso. 

- Esperam-te? – questiona, levando a taça de sake aos lábios, por entre as barbas brancas. 

- Cada Lua Cheia, na praia onde cheguei – afirma, encaixando a espada entre o cinto e o hakama, recordando o acordo que fizera com Miguel, na noite em que fora traficada para o país, dentro de um barril. Ao mesmo tempo procura esquecer que teria de voltar a atravessar o oceano, tentando esconder de Hayato o seu medo patológico de grande superfícies de água. 

- Durante mais de 30 anos? – admira-se o velho tengu, suspendendo a ingestão do sake e olhando de soslaio para os olhos azul-esverdeados da vampira. – Tens amigos estranhamente leais, Eleanora-chan. 

- Assim o espero – alega, sorrindo perante a lembrança dos belos olhos azuis e caracóis louros de Miguel. Sentia falta dele… 

- Não tens o salvo-conduto contigo – constata, pousando a taça e perscrutando a amiga com os penetrantes olhos pretos. – Irás buscá-lo? Oh… Estou a ver… 

- Far-lhe-á mais falta a ela do que a mim – defende, desviando o olhar, não se sentido confortável a discutir o tema. Tomara a decisão quando partira, não podia dar-se ao luxo de revisitá-la. Ou, pelo menos, não o queria… 

- Então irás sozinha? Ela sentirá a tua falta… 

- É melhor assim – reforça, tanto para si, como para o mestre, fingindo não ouvir a censura na sua voz. Sobre aquela questão não admitia o parecer de ninguém, nem mesmo dele. 

Memórias insistem em surgir, ameaçando minar a sua resolução. Olhos amendoados, castanho-esverdeados, que desaparecem atrás das pálpebras quando a faz gemer de prazer. A sua mão a passar pelos longos e lisos cabelos negros, antes de desaguar na curvatura sinuosa de costas nuas. Lábios finos, pintados vermelhos pelo sangue fresco, que lhe acariciam o mamilo duro, antes de rodar a língua nele… 

Eleanora expulsa as recordações, temendo o seu poder. Fizera a sua escolha. Nada ganharia em mudar de ideias. Era melhor assim… 

- Sabes que se não levares o salvo-conduto será difícil regressar. Talvez até tenhas de voltar a enfrentar as mesmas provações – adverte o velho tengu. – Não podes contar que todos aqueles que se lembram de ti sobrevivam até lá… 

- Hayato-oji, viverás mais anos do que aqueles que já vi. O próprio Deus da Morte não te quer! – brinca a vampira, rasgando um riso malicioso, aproveitando para afastar o que a atormentava. 

- Ah! Verdade! Verdade! – concorda, batendo com a palma da mão no joelho. Via bem que algo consumia a amiga, porém, respeitando a escolha dela em não falar sobre o assunto, assim como, não querendo embaraçar-se perante a despedida, aceita a oportunidade para aligeirar a conversa. – Tentarei manter as coisas organizadas por aqui, enquanto espero a desforra, Eleanora-chan. A propósito, se vais sem salvo-conduto seria melhor teres companhia até à costa, não? Shou-kun poderá levar-te. Shou-kun, vem cá! É grosseiro, mas uma jóia de moço. 

- Eu sei – reconhece, vendo o jovem tengu de asas castanhas e naginata cortada, voar na sua direcção. – Hayato-sama, obrigado! A vénia é profunda, abarcando muito mais do que o agradecimento pela escolta e o mestre retribui o grau de reverência. Pela primeira desde que qualquer um dos jovens guerreiros se lembra, a testa de Hayato-sama toca no solo. Então souberam que a Oculta os superara, tornando-se não só uma verdadeira yokai, como um dos Corvos.


Parte 7:
Parte 6:
Parte 5:
Parte 4:
Parte 3:
Parte 2:
Parte 1:


O Cálice de Prata (3/5) – Sara Farinha

O cheiro da palha nas suas narinas confirmava a proveniência das picadas por todo o seu corpo. Abriu as pesadas pálpebras franzindo os olhos com a claridade. No céu azul, o sol ia alto, e o calor abrasava a pele do seu rosto. 

Sentou-se devagar, atento ao que o rodeava. O riacho corria a alguma distância das suas botas. Nas suas costas, o monte de palha que servira de leito ao seu sono pesado. Assaltado pelas memórias da noite anterior, levantou-se num pulo, balançando como um tufo de ervas ao vento. 

Aos seus pés, o cálice prateado jazia abandonado sobre a relva, sem qualquer réstia de cor reflectida na sua superfície. André apanhou-o e desceu em direcção ao curso de água. Encheu o recipiente, apreciando os azuis e cinzas, que voltaram a bailar no frio metal. Inclinou-o sobre os lábios e verteu o líquido na sua boca sequiosa. 

Satisfeito com o acalmar da sede passou o polegar pela lateral côncava do cálice, recordando a sofreguidão e a incapacidade da apaziguar, da noite anterior. A memória arrancando-lhe uma gargalhada que lhe fez vibrar o peito. Repudiou aqueles pensamentos, apertando o objecto contra o seu peito, desejando protegê-lo do olhar alheio. 

– Sente-se melhor? – uma suave voz feminina perguntou, fazendo-o dar um salto e rodar sobre si mesmo. 

A alvura da sua pele brilhava sob o sol glorioso, uns intensos olhos verdes devolviam o ar de espanto, coroados com um impressionante cabelo cor de bronze que lhe chegava à cintura e balançava solto ao vento. 

André sentiu o seu âmago comprimido desabrochar perante a esguia figura à sua frente. Estacando de lábios entreabertos, pupilas dilatadas e concentração férrea na beleza feminina, com uma miríade de desejo e contenção, que se elevava para lá do que sofrera na noite anterior. 

– Cavaleiro? 

– Estou bem. – André murmurou. 

– Folgo em saber. Até mais... – a mulher declarou, com um sorriso, enquanto o seu comprido vestido dourado revelava a renda brocada do espartilho que lhe cobria as costas. 

– Espere! – André bramiu, apertando o cálice de prata contra o seu estômago, e avançando uns passos. 

Os verdes olhos voltaram e incidiram sobre André. Percorreram-no de alto a baixo, fixando-se no cálice por um momento para voltarem, em seguida, à sua face. 

– A sua graça? 

– Elisabetta. 

– André Beaumont. – Declarou, com uma vénia que arrancou um sorriso a Elisabetta. 

– Encantada. – ela retorquiu, seguindo caminho. 



Observou o longo vestido amarelo desaparecer para lá da colina antes que as suas pernas obedecessem a qualquer comando mental. Correu atrás de Elisabetta, determinado a não a deixar partir sem mais. Estacou ao deparar-se com o burburinho natural das pessoas da aldeia, sem qualquer vislumbre do vestido amarelo, ou dos longos cabelos cor de bronze. Resignando-se, André trotou pelas ruas estreitas, rumo à casa senhorial. 

Aromas de pão acabado de cozer, carnes variadas e fruta arrancavam-lhe ferozes rugidos internos. O cheiro da adocicada pele humana provocava-lhe as narinas. A visão das mulheres, jovens e não tão jovens, remexia-lhe o cérebro e as suas partes baixas. A sede que arranhava as paredes da sua garganta ameaçava atirá-lo para o fundo do poço da praça central. O choque exercido sobre os seus sentidos acicatava-o a conquistar, a tomar aquilo que aplacaria os seus desejos. 

André trancou-se nos seus aposentos durante o resto do dia combatendo os constantes assaltos à sua sanidade mental. Combateu vontades com uma prece nos lábios e os joelhos enterrados em carvão quente. Mesmo na dor as ânsias brotavam, tomando-o e submergindo-o, num lago de exaustão e cobiça. As suas forças rareavam quando foi chamado ao salão principal para receber a resposta à missiva. 



– Vá! Entregue a mensagem ao Grão-mestre sem demora. – o nobre ordenou, voltando à perna de perú que roía com satisfação. 

– Parto imediatamente. – André retorquiu, assentindo com a cabeça. 



Montou Blanche Croix, sacudindo as rédeas e rugindo a ordem de marcha, embrenhando-se na floresta, confiando que os sentidos apurados da sua montada o guiariam através da escuridão. Parou quando se tornou óbvio que o breu o engoliria, a ele e ao seu cavalo, e o fundo de alguma ravina os abraçaria sem pudor. Amarrou a sua montada ao tronco de uma árvore, e procurou um canto para descansar, recostando-se numa enorme pedra coberta de musgo. 

O riso masculino despertou-o dum sono perturbado. Num pulo acocorou-se atrás do calhau e desembainhou a espada. Rastejou através das sebes altas, procurando a fonte das vozes humanas. 

Dois homens e uma mulher sentavam-se, à volta de uma fogueira, esperando a madrugada que não tardaria a desabrochar. O cheiro do vinho chegou-lhe às narinas, acompanhado das conversas desconexas dos três estranhos. O ritmo pulsante daquelas presenças cativou André como pouca coisa o havia feito até ali. Os primeiros sons da harmónica forçando-o a esfregar o rosto e inalar uma golfada de ar pelos lábios entreabertos. Levantando-se do tronco, a mulher meneou o corpo ao ritmo das vibrações melódicas do instrumento. Com a raiva a tomar as rédeas e o desespero no seu encalço André avançou, de espada em riste, sobre o trio desavisado.


Parte 5:
Parte 4:
Parte 2:
Parte 1:


Crónicas Obscuras: Dança do Corvo (7/8) – Uma nova Era – Vitor Frazão

Hayato repôs o cachimbo na boca, balançando-o pensativamente. Não sabia o que o seu povo decidiria, nem lhe interessava. Ele não iria abandonar o mundo e recolher para uma aldeola perdida nas montanhas, onde passaria os seus últimos dias como um qualquer velho caduco e aleijado. Os tengu e os yokai em geral ainda precisavam da sua espada e, enquanto tivesse força para a erguer, viveria segundo ela. 

Abolida a sakoku humana, agora, mais do que nunca, crescia o risco dos Ocultos estrageiros invadirem solo nipónico, corrompendo-o com os seus conflitos, que dilacerariam o modo de vida dos yokai. Isto para não falar do risco crescente de entrarem no país Obliteradores, soldados dessa gigantesca sociedade secreta cujo único propósito parecia ser exterminar seres paranormais. Foram as histórias de Eleanora sobre o horror desse flagelo que atormentava as espécies sobrenaturais além-mar, que insuflaram em Hayato a necessidade de manter-se vigilante. Ironicamente, a única Oculta que desejava conservar no país, era aquela que não conseguia. 

- Os yokai têm muito para decidir sozinhos e esses são debates em que não me quero envolver – justifica Eleanora, passando as mãos pelo cabelo, procurando verificar se ele regenerara o suficiente para voltar a ser preso. 

- Sentes falta do que deixaste, não é? – inquire, tão perspicaz como sempre, enchendo a taça com sake e tragando-o de um gole, antes de voltar a equilibrar o cachimbo na boca. 

- Sim – confirma, prendendo os cabelos e sendo incapaz de evitar um sorriso perante as memórias das terras e gentes que conhecera do outro lado do mar. – Além do mais, não consigo afastar esta ideia, talvez utópica, de o resto do mundo usufruir do mesmo que vocês criaram. A comunidade yokai pode não ser perfeita, mas sempre é melhor que o caos generalizado que há lá fora! Talvez com ela tivéssemos hipótese de enfrentar os Obliteradores, de viver algo parecido com uma existência livre, sem olhar constantemente por cima do ombro. Não sei… se calhar é uma tarefa demasiado grande para uma simples vampira… 

- Bah! Também o é manter escumalha Oculta longe desta terra – atira Hayato, batendo com o metal do cachimbo no cinzeiro, para se livrar dos restos carbonizado, enquanto lançava à vampira um sorriso que tinha tanto de troça como de encorajamento – mas a ideia é, justamente, não teres de o fazer sozinha. Eleanora-chan, enfrentaste a justiça yokai e ganhaste, quão difícil poderá ser combater milénios de ódios para unir todos os Ocultos e exterminar os Obliteradores? Caso para se resolver numa estação, certamente, não? 

- Ah! Ah! Mais uma vez dá-me mais crédito do que mereço, Hayato-san – agradece, rasgando um imenso sorriso e fazendo uma pequena vénia. – Tentarei não desiludir. 

Apoio não era algo que o velho tengu desse à toa. Por ligeiro e informal que fosse o seu tom, a força e confiança patente nele era suficiente para dispersar as dúvidas que enublavam a mente de Eleanora, pelo menos, durante algum tempo. A vampira batia-o em idade e vira muito mais do que ele, todavia, por algum motivo, a sabedoria simples e a autoridade sólida do ancião, confortavam-na, como se viessem de alguém muito mais velho, cujo saber assentava nas raízes do Tempo. Hayato desejava que ela ficasse, porém, compreendia porque é que ela tinha que partir. Tal como ele não se sentia capaz de aceitar o exílio numa aldeola perdida nas montanhas, vendo o mundo passar, Eleanora não conseguiria ficar escondida entre os yokai, enquanto lá fora os Ocultos continuavam a ser exterminados pelos Obliteradores. Nenhum deles era capaz de cruzar os braços.


Parte 8:
Parte 6:
Parte 5:
Parte 4:
Parte 3:
Parte 2:
Parte 1:



Crónicas Obscuras: Dança do Corvo (6/8) – Entre velhos amigos – Vitor Frazão

A única coisa que Hayato, como todos os da sua espécie, odiava mais que caminhar em vez de voar, era ter um tecto sobre a cabeça. Espaços fechados eram para vermes, seres que não conheciam a glória e liberdade de planar pelos céus. Excepto durante tempestades, escolhia sempre estar ao ar livre, por isso a pequena celebração que mandara preparar para Eleanora ocorrera sob as estrelas e a Lua. Nada de muito elaborado, pois o velho tengu era um guerreiro simples, pouco dado a luxos. Apenas uma toalha vermelha, numa clareira limpa, sobre a qual fora colocada uma mesa baixa, com sake e sushi, enquanto, para a vampira, fora reservada uma bela e pálida mulher, de longos cabelos negros, vestida apenas com um fino quimono íntimo, branco como a mais pura das neves. 

A refeição aproxima-se do fim. Hayato, sentado na toalha, de pernas cruzadas debaixo do corpo, fuma o seu delgado e longo cachimbo, lançando anéis de fumo, enquanto Sora e Shou levam a mortal drenada pela vampira. Apesar de completamente desidratada, a sua expressão é tranquila, como se tivesse adormecido pacificamente, para nunca mais acordar. 

O velho tengu vê Eleanora repor o haori negro desprovido de emblemas sobre o ombro, cobrindo o braço decepado. Levará tempo, mas voltará a crescer. Ela afirma-o e ele sabe que assim é, lembrando-se perfeitamente da noite, há quase 30 anos, em que lhe cortara um braço e quase a matara. Trocar o privilégio de caminhar sob o sol por imortalidade, a capacidade de curar feridas num piscar de olhos e insensibilidade à dor, parecia um bom negócio a Hayato. Pudesse a sua espécie executar tal transformação e ele não hesitaria, por impuros que os vampiros fossem considerados pelos yokai. 

Foram tais poderes que deram a vitória à vampira, embora de pouco lhe tivessem servido no passado. Hayato e Eleanora tinham o mesmo peso e força muscular, mas a velocidade superior dele tê-la-ia fulminado se ela não usasse o próprio braço com escudo, abrandando o golpe da katana do tengu por uma fracção de tempo tão pequena que era impossível de medir. Um batimento de coração. Um piscar de olhos. Quantas vezes a vida de um guerreiro era decidida nessas meras fracções? 

“Um bom combate” pensa Hayato, sorrindo com o cachimbo nos lábios, lamentando apenas não poder repetir a experiência tão cedo. 

- Ajuda este velho tolo a entender, Eleanora-chan – pede, afastando o cachimbo e voltando o rosto para os lábios da convidada, pintados com sangue fresco. – Decides colocar pé nestas terras numa época em que a tua presença era ilegal, tanto pela lei humana como yokai. Sofreste e passaste todas as nossas provas pelo direito a ficar, recebendo dos yokai o salvo-conduto que te permite caminhar entre nós. Privilégio conquistado por poucos Ocultos, devo acrescentar. Escapaste também à justiça humana, para a qual eras um alvo tão fácil, com os teus cabelos louros e redondos olhos claros, tão vincadamente estrangeiros. Mantiveste-te entre nós durante os turbulentos dias do fim da Era Tokugawa. Agora, com sakoku abolida há quase vinte anos, em que o teu aspecto já não é motivo para perseguição humana e que a Bakumatsu acabou, dando-nos algo parecido com paz, é que desejas partir? Sei que esta Era Meiji ainda tem muito que provar, mas já estiveste ao nosso lado durante pior. 

- Hayato-san – retorque, acariciando a bainha negra da sua katana desprovida de guarda, que lhe jazia junto ao joelhos – se é verdade que uma parte de mim deseja ficar e que os dias que se avizinham aparentem ser mais pacíficos que os anteriores, especialmente para uma Oculta estrangeira, também é inegável que, com o fim da Guerra do Ano do Dragão, os yokai se vêem, cada vez mais, obrigados a tomar importantes decisões sobre o seu lugar no mundo dos homens. Tokugawa acabou. Bom ou mau, o tempo dos Meiji não será igual. Hayato sabia-o bem. A abertura aos estrangeiros, que ele defendera como uma das razões para Eleanora permanecer, obrigara, e ainda obrigava, a mudar séculos de tradicional interacção entre os yokai e os humanos daquele país. Ao contrário dos oni, cuja tolerância e colaboração com os humanos variavam de indivíduo para indivíduo, durante séculos os tengu tinham lutado lado a lado com os samurais, aliando-se aos clãs dos senhores feudais que conquistavam o seu respeito. Agora, com a queda da nobreza feudal, erguiam-se vozes dissonantes. Alguns defendiam que deviam retirar-se completamente do mundo humano, procurando refúgio nas suas aldeias nas montanhas, tal como, segundo as lendas, os seus parentes do continente fizeram, há milénios atrás. Outros afirmavam que o melhor seria camuflarem-se na sociedade humana, tal como alguns Ocultos ocidentais. Eleanora tinha razão, cada espécie, cada indivíduo, teria de escolher como enfrentar aquele mundo em mudanças.


Parte 8:
Parte 7:
Parte 5:
Parte 4:
Parte 3:
Parte 2:
Parte 1:


Mensagens mais recentes Mensagens antigas