Crónicas de Amarílis 3/3 - Sara Farinha


“E quando chegar a hora de pagar pelos meus erros a ti te prometo, meu irmão, que não hesitarei. A justiça será cega, rápida e apropriada.” Excerto do diário de Ivan Fallon.

A essência das flores de Amarílis povoava os túneis que ligavam a prisão subterrânea ao salão nobre do Palácio. O aroma fresco dos milhares de bolbos plantados espalhava-se pelos cantos mais recônditos. De mãos atadas, Ivan foi empurrado pelos labirínticos corredores. O julgamento aguardava-o no salão principal, um último ardil na tentativa de justificar o injustificável.
Entrar novamente no palácio de Amarílis era um choque para os seus sentidos, a luminosidade e os cheiros tão familiares pareciam tirados dos seus sonhos mais saudosos. Milhares de flores cobriam as paredes, os seus bolbos alojados em todos os nichos num jardim vertical, o odor intenso acompanhava o pulsar da magia que vivia livremente em cada recanto daquele reino.
Banhado por uma claridade natural, Caio parecia distraído, acariciando suavemente o trono como se acariciasse um animal de estimação enquanto Allure se pavoneava entre as dezenas de homens e mulheres ali presentes.
Ivan foi levado para o centro do salão, as quatro rochas no chão demarcavam o sítio onde a cela de contenção mágica estava já preparada para o receber. O escudo azul envolveu-o assim que a prece foi proferida, os seus carcereiros ocupando posições estratégicas pela sala.
Allure rumou ao seu lugar, no trono à direita de Caio, sorrindo profusamente na direcção de Ivan. A sua visível satisfação como combustível para o ódio do prisioneiro.
– Vamos dar início ao julgamento público de Ivan Fallon. – A voz grossa do meirinho ribombava pelo salão – Filho de Amarílis, por seu pai Jack e sua mãe Miriam, da Linhagem Fallon. Pela sua posição de herdeiro do trono e pela Lei que os consagra, aqui pergunto: Quem o indicia?
– Eu, Caio Fallon. – Declarou, levantando-se do trono e avançando até parar em frente a Ivan.
– Crime e punição? – O meirinho pressionou.
– O assassínio dos meus pais, Jack e Miriam Fallon. Punição… a morte. – Caio afirmou, sem desviar os seus olhos de Ivan.
A plateia murmurava, enquanto os procedimentos eram executados, conspiravam em surdina enquanto as linhagens reais eram declamadas e as alegações firmadas. Nenhum daqueles rostos era familiar para Ivan. As Famílias Herdeiras substituídas por populaça comum e aliados de outros reinos. Amarílis entregue a estranhos, usurpadores da magia alheia, enquanto os seus legítimos descendentes jaziam em parte incerta.
– Ivan Fallon, honre a sua linhagem com a verdade. – O meirinho afirmou, silenciando o burburinho.
– Das nove linhagens herdeiras, a única presente aqui é a Fallon, os únicos dois membros vivos de qualquer uma das famílias somos nós, Caio. – Ivan começou, sem desviar o olhar do seu irmão – Todos eles morreram naquele dia. Todos!
– Verdade. – Caio murmurou.
– Caio! – Allure ginchou.
– Ele tem o direito a falar. – Caio rosnou, sem desviar os olhos dos do seu irmão.
– Ela matou-os a todos e tu deste-lhe o trono. – Ivan gritou.
– Não! – Caio retorquiu, enquanto Allure se precipitou para o lado dele.
– Não tive de esperar muito. Seis anos e tudo isto passou a ser verdadeiramente meu. – Allure respondeu, enrolando a sua mão no antebraço de Caio.
– Caio?! Foi a isto que te reduziste? – Ivan bramiu.
Allure deu uma gargalhada, puxando Caio para trás, enquanto dava ordens para prosseguirem com o julgamento.
– Eu sou o herdeiro legítimo. Ivan Fallon, o primogénito, o mais velho descente vivo com direitos. Por sangue e pela magia, estou aqui para reclamar o trono. – Ivan evocou, projectando a voz pelo salão.
A intenção proclamada vibrou através de toda a matéria, a declaração fora aceite pelos poderes de Amarílis, o trono reconhecia o seu rei. A magia de Amarílis rodopiou num arco-íris de cores enquanto a barreira de contenção caía.
Naquele momento o caos irrompe, as pessoas dispersam em direcção à saída, e os soldados desembainham as suas espadas. Allure murmura uma prece impelindo remoinhos de vento negro a avançar sobre Ivan. O choque entre a luz e a escuridão alastrava e subia, formando uma cúpula que os isolou dos restantes. Caio desembainha o seu punhal e coloca-se entre ele e Allure.
Ivan deflecte o golpe do punhal do irmão com facilidade deixando Caio prostrado à distância. Allure, de olhos fechados e braços abertos, continua a murmurar feitiços.
Mas Ivan recebera a magia de Amarílis, absorvera-a como um soro curativo, era agora uno e indivisível com os poderes do trono, o último auxílio do reino, protegido por este.
Uma prece de Ivan e os remoinhos negros explodem, dissolvendo-se no ar, pequenas partículas que desapareciam como se sugadas pela luminosidade do salão. Allure gritava, tentando repor o seu domínio mágico, quando é atingida por uma onda de magia que a derruba.
Caio precipita-se sobre Ivan, de punhal em riste e ódio no rosto. Ivan, agarrando-o pelo braço que segurava a lâmina, roda sobre si mesmo recuperando o punhal enquanto impulsiona o corpo de Caio sobre as suas costas.
Na posse do punhal, Ivan avança sobre Allure. A concretização da vingança a escassos centímetros de si com a assassina da sua família ao alcance da sua lâmina.
Caio intercepta-o, tenta afastá-lo de Allure, mas a vingança não podia ser-lhe negada. Amarílis emanava o odor da retribuição, clamava por vingança, fortalecia Ivan nos seus intentos.
O antebraço de Ivan enrola-se no do Caio, o embate físico coloca-os em desequilíbrio, precipitando-os para o chão. O punhal na mão de Ivan encontra o seu alvo ao perfurar a caixa torácica de Caio.
A lâmina cravada no seu peito sugara todos os ruídos do salão, o silêncio anunciando a derradeira transformação enquanto Ivan, de joelhos, paira sobre o corpo do seu irmão. A sua mão fundida no cabo do punhal enquanto a camisa de Caio absorve lentamente o sangue que flui, até não mais o poder conter e transbordar para o chão.
– Imbecil! – Allure grita.
Despido de qualquer raciocínio, Ivan alcança Allure, torcendo-lhe o pescoço num movimento demasiado rápido para qualquer tipo de retaliação. Em poucos segundos Amarílis livrava-se da usurpadora do trono e perdia o penúltimo dos seus descendentes reais. A Ivan já nada restava para perder.

Fim



2 comentários:

Carlos Silva disse...

Fez-me lembrar uma cena do "Jonahtahn Strange & Mr Norrel" em que os dois magos arranjam uma maneira de toda a natureza saudar um rei.

Tinha-se aqui bom material para algo épico e avassalador em vez da luta final.

Ana C. Nunes disse...

Li o ebook com as três partes deste conto e deixo o meu comentário:
Este conto começou com muita exposição. A autora quis contar-nos tudo sobre o protagonista e sobre a sua situação, acabando por tornar o texto demasiado informativo na primeira parte. Felizmente, assim que passamos para a segunda parte, isto deixa de acontecer.
Gostei bastante da prosa da autora, na segunda e terceira parte, onde algumas frases estavam belíssimas e muito evocativas. Gostei também do facto de as descrições serem suficientemente visuais, mas não demasiado carregadas de informação, e só estranhei o facto de não ter descrito Allure (eu pelo menos não vi).
Gostei muito do Ivan e gostaria de ler mais histórias com ele. E o conceito da magia de Amarílis parece-me boa matéria para muitas outras histórias.

No geral fiquei bastante satisfeita com a história e o seu desfecho, embora o conto tenha terminado de uma maneira que quase faz parecer que ficou a meio de uma frase, que ficou algo por dizer.

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