Crónicas de Amarílis 1/3 - Sara Farinha



 “Quando todas as promessas foram quebradas e as esperanças aniquiladas o futuro torna-se doloroso e previsível. Se eu pudesse voltar atrás e corrigir o que fiz…” Excerto do diário de Ivan Fallon.

Ivan agachou-se na pequena plataforma de pedra, aguçou os seus sentidos e esperou. A lama espalhada pelos seus cabelos loiros e a roupagem escura ajudavam a escuridão da noite a encobri-lo dos olhos da sentinela de vigia.
O dia chegaria em breve e Ivan tencionava aproveitar o céu vermelho da aurora para distribuir mais um pouco dessa cor… espalhando-a pelo chão com a ponta da sua espada.
Os seus olhos azuis cobalto perscrutaram o acampamento improvisado, identificando o local onde os guardas dormiam e onde a sentinela lutava contra o sono de uma madrugada emergente. A sentinela que não passava de um miúdo, com não mais de dezanove anos, um projecto de homem cuja lâmina da sua espada media mais de metade da sua altura.
Os restantes guardas dormiam profundamente, crentes que o escudo mágico os protegeria de visitantes indesejados. Mas Ivan Fallon não era um visitante, a barreira mágica não os protegia dele porque a magia de Amarílis reconhecia os seus súbditos… mesmo aqueles que haviam sido renegados pela sua comunidade. A força de Amarílis bailava nas suas células e isso seria sempre o seu passaporte de acesso sem detecção.

Descer sorrateiramente do rochedo iria ser uma tarefa delicada, mas Ivan conhecia aquela paisagem… há sete anos que aquelas pedras eram a sua casa. Resgatar Caio era arriscado, mas possível.
Caio, o seu irmão mais novo, permanecia amarrado ao tronco dum carvalho. De olhos fechados, com a cabeça encostada à árvore, os pés e as mãos restringidos por nós tão apertados que os seus dedos pareciam inchados mesmo de longe, aparentava ter novamente doze anos. Imóvel, ele ostentava um esgar de dor nas suas feições adormecidas, o seu cabelo estava cheio de terra e folhas num emaranhado de raízes loiras, o seu torso mostrava várias feridas em diversos estados de cura.
Mesmo ostentando todas essas feridas, Caio Fallon era uma cópia mais nova e menos brutalizada de Ivan, a quem a existência selvagem nos arredores de Amarílis imputara milhares de outras cicatrizes.

Em sete anos de exílio, nas florestas de Amaríllis, Ivan nunca pensara que este dia chegaria. O dia em que tivesse de lutar contra as tropas de Allure, a toda-poderosa e arrogante governante do reino. Agora não havia nada que o impedisse de a matar. Não depois de ordenar que Caio sofresse a expurgação pública.
Eles iam retirar-lhe a consciência humana, deixá-lo como um recipiente vazio, sem razão nos seus actos. Allure trazia de novo a vingança inscrita na alma e desta vez o alvo era Caio, mais um peão usado para punir Ivan.
Sete anos depois e a sede de poder de Allure não abrandara. A ganância em governar Amarílis impôs que fossem eliminados todos aqueles que, por sangue e magia, estivessem na linha de sucessão. Os seus pais, cujos laços sanguíneos os ligavam directamente ao trono, haviam perecido na primeira vaga de assassinatos. Ivan escapara à chacina por um milagre e Caio, com doze anos, fora aprisionado.
Quando as acções de Allure transpiraram para fora de Amarílis, a morte da maioria dos herdeiros do trono e o exílio de Ivan estavam consumados. Ela ordenara a sua captura e execução pelo que permanecer longe da comunidade fora a única opção.
Ela condenara-o a uma existência sem a força vital da sua comunidade, sem os laços poderosos da magia que os suportava a todos como parte integrante de um todo que os transcendia. Isolado da magia durante sete anos, Ivan recorrera à força física e à determinação para sobreviver nas florestas de Amarílis. A magia era agora um eco fraco nas suas células, um vislumbre do que poderia ter sido.

Ivan iniciou a descida, agarrando-se a cada fenda com a força dos seus dedos maciços, deslizando pelos lancis naturais da rocha. Estava cada vez mais próximo das duas dúzias de homens que dormiam espalhados pelo chão da floresta.
No exílio, Ivan recebia esporadicamente notícias de Caio, mas essas novidades nunca o apaziguavam. O irmão mais novo parecia destinado a arranjar problemas e Ivan temia pelo futuro do rapaz. Caio tornara-se num prisioneiro valioso, um escravo sob a protecção da comunidade, um jovem cuja vivacidade e tenacidade lhe valeram uma certa tolerância durante a puberdade. A situação de Caio era tão despropositada que confundira Ivan, arriscando a permanência do seu irmão em Amarílis por mais tempo do que desejara.
Mais uma vez, fora tolo em acreditar que Allure esquecera o passado, ela nunca permitiria que um membro dos Fallon permanecesse pacificamente em Amarílis.

O miúdo de vigia, tolhido pelo sono, balançava instavelmente sobre uma rocha quando Ivan lhe apertou o pescoço. Num abraço sufocante, os pés dele remexeram um pouco, tentando libertar-se do garrote corporal de Ivan. O quase imperceptível som despertou Caio que, de olhos semicerrados, nada mais podia fazer excepto observar os movimentos do irmão.
Os restantes guardas ressonavam poderosamente, abraçando as suas espadas e a inconsciência de horas de sono pesado, enquanto Ivan acomodava o corpo do sentinela na plataforma rochosa que havia servido de posto de vigia.
Ivan pisou o solo com a fluidez de um felino, desembainhou o gládio que trazia às costas e avançou. Os sons da vida animal e da sonolência humana abafavam a sua presença, mais uns passos e Caio estaria ao seu alcance. Aproximou-se furtivamente do irmão, cortou as amarras, retirou a mordaça e arrancou Caio do chão por um braço. Subitamente ouviram-se os murmúrios de um feitiço a ser lançado.
Caio proferia as palavras mágicas que faziam descender sobre eles uma redoma de contenção. Aprisionados numa bolha de energia estática, que espalhava um brilho azulado pela floresta de Amarílis, Ivan imobilizou perante o significado daquele acto… Caio traíra-o.

6 comentários:

The Book Terminator disse...

Uau! Muito bom mesmo! Estou ansioso por saber o que acontece a seguir. Pareceu-me um pouco apressado, mas se vai ser contado por partes tem de ser assim. Sem dúvida uma base forte para a continuação. Avisem-me quando sair o próximo! :)

Vitor Frazão disse...

"Boa escrita, com mais show do que tell (o que sendo a introdução até nem é mau), mas ainda não me fez investir nas personagens. Seja como for, traição é sempre um bom princípio para as hostilidades."

Twinny disse...

Parabéns! Foi um bom começo. Quero saber mais.

Seria ousado perguntar, por mera curiosidade, qual é o seu critério para a escolha dos nomes dos personagens e dos locais?

Anónimo disse...

Olá Twinny,
Ao escolher os nomes das personagens procuro que estejam relacionados com a história, que sejam simples mas memoráveis e, se possível, que tenham significado. Quanto aos locais, tento adequá-los ao contexto da história e escolher aquele que melhor nos integre na ambiência.

rui alex disse...

Esta história promete muito, deixou-me com vontade por mais!

Marina disse...

Muito bom Sara! Fiquei com vontade de ler mais!

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