Filho de peixe sabe nadar 2/4 - Carlos Silva



Nove meses se passaram e um bebé de cabelo verde nasceu em lugar incógnito, algures nas catacumbas do castelo de Sigmundo. Guinei, completamente ensopada em suor, desmaiara exausta e exangue assim que viu o pequeno rebento a sair pelas mãos de Hiram. O mago acariciou a cabeleira verde rala da criança e enrolou o pequeno corpo nos tecidos das suas vestes.
- Achas mesmo que uma mera ilusão élfica te esconderia do olhar de um mago, Vento que Anda? – disse Hiram, olhando por cima do ombro. – Aparece por fim, não temos a noite toda!
Vento que Anda dispensou as sombras que o envolviam, ordenando que voltassem para a floresta de onde pertenciam. O que os leigos chamavam de magia élfica não era realmente magia, mas sim o resultado do talento natural dos elfos em ludibriar e mentir. Havia magos a dedicar a vida inteira a descobrir que terrível engodo caíra a natureza para lhes dever tantos favores, ou de que modo conseguiam mentir sobre a sua essência ao ponto de ignorar as leis naturais. Porém, por mais ardiloso que um elfo pudesse ser, sabia dos perigos de tentar enganar um mago. Vento que Anda aprendera isso da maneira mais difícil.
- Trouxeste o substituto? – perguntou Hiram.
O elfo tirou uma raiz da sacola e entregou-a ao mago que, por sua vez, entregou o bebé ao Vento que Anda. O elfo pegou no pequeno ser, enojado pela pele encarquilhada e acinzentada de proporções estranhas que dormia encolhido nos trapos em que fora enrolado. Parecia tão frágil, será que seria saboroso? Talvez fervido com natas e gengibre…Ou porventura envolto em farinha de milho e levado ao forno para tostar… O melhor seria desossá-lo primeiro, para não se engasgar como acontecera quando assou as crias de urso. Hiram observava-o severo.
- Quero-o vivo, percebes? Assegura-te que ele chega a adulto e aí eu perdoarei a tua dívida de vida. – Avisou o mago.
- Percebo, Hiram. Só não consigo ver onde queres chegar com este rapaz.
- Isso só a mim me diz respeito e não está ao alcance da tua compreensão.
Um gemido fraco quebrou a troca de olhares tensos entre os dois seres, fazendo o elfo partir, carregando a criança, e o amanita voltar-se para a rainha. Guinei não tinha a face iluminada pela leveza, candura e felicidade de uma mãe que acabava de dar à luz, mas sim o cenho de um guerreiro no fim da batalha. Cerrando os dentes, ergueu-se do monte de palha onde dera a luz e abeirou-se de Hiram perguntando-lhe:
- Com quem faláveis?
- Ninguém para além de mim, senhora.
- Mostrai-me o corpo do bastardo.
O mago entregou a raiz trespassada por um punhal à rainha, desejando que as ilusões do elfo não o traíssem no momento crucial. A rainha observava, mas não parecia furiosa, mas sim enojada. Afastou o tronco de si com as mãos, vendo nele um bebé trespassado por um punhal, gotejando sangue.
- Pensei que fosseis agir com maior subtileza, mas o que importa são os resultados. Livrai-vos do corpo e da adaga para que nada testemunhe contra nós.
- Assim seja, minha rainha.
O elfo cavalgava velozmente, rasgando o trilho da floresta como um relâmpago faz a um velho carvalho. Com o braço direito segurava as rédeas e com o esquerdo o seu filho. Iria exibi-lo no próximo baile, conjuntamente com os seus mais recentes escravos. Numa sociedade onde apenas a Rainha dos Elfos podia dar à luz, a sua cria iria certamente causar furor.  Olhou para a pequena criatura enrugada, que dormitava apesar dos solavancos provocados pelo cavalgar. Era feio, os bebés elfos eram muito mais perfeitos.
Ao longe, Vento que Anda já conseguia ver a sua cidade. Como era bela todo aquele entrelaçar de árvores e arquitectura élfica onde não se distinguia a parte viva da casa e da erigida. Só o seu povo detinha as sementes daquelas plantas que eram capazes de crescer até alturas inacreditáveis e o segredo para entrelaçar os inúmeros ramos e raízes de modo a dar forma às casas. Dos colossos vivos a que chamavam quilongues e da arte aperfeiçoada pelos séculos nasciam esculturas titânicas, ligadas entre si por passadiços de madeira que pareciam nascer do interior das árvores, cujo interior poderia ser esculpido com formas sinuosas ao estilo dos elfos. Os quilongues formavam um círculo em torno de um cepo descomunal, que servia de praça e salão de baile ao ar livre, onde todos os elfos e seus escravos se podiam reunir à vista do palácio real, esculpido no tronco da árvore maior.
Assim que entrou em casa, a cria do elfo começou a berrar e a chorar para frustração de Vento que Anda que o tentou acalmar cantando-lhe canções do seu povo. Talvez fosse fome, pelo que o elfo ordenou que fosse preparado um avejo assado em malaguetas. Ao tocar com os lábios no delicioso molho que pingava da perna do pássaro o choro redobrou em intensidade. Vento que Anda ameaçou-o, tentou dissuadi-lo com argumentos que faria um amanita comer carne, tentou suborná-lo com os mais variados tesouros, chantageou-o com sofrimento da sua mãe, mentiu-lhe, bateu-lhe, porém nada funcionou. Não podia levar tamanho incómodo para o baile daquela noite e nenhum dos seus truques parecia fazer efeito. Furioso, pegou na cria e dirigiu-se até à casota de Ruão, o jovem javardo que lhe fora oferecido quando atingira a maioridade. Bateu na porta até o rapaz de face suína e maciço corpo hirsuto sair. Colocou o jovem príncipe nos cascos de Ruão, que o envolveu num terno abraço, apesar de toda a gritaria que fazia. O javardo cheirou o bebé com o seu focinho cartilagíneo e uma lágrima de alegria brotou dos seus pequenos olhos negros.
- Eu disse-te que um dia ainda te arranjava um animal de estimação. Aqui tens. – Virou costas ao seu escravo e começou a caminhar em direcção ao seu quarto. Tinha uma festa para a qual se preparar. No entanto, a meio das escadas deteve-se e disse ao rapaz-porco. – Cuida bem dele, dá-lhe tudo o que ele precisar. Se alguma coisa lhe acontecer, serás severamente castigado.
- Não se preocupe, senhor, cuidarei dele como se fosse meu filho.
O que Vento que Anda não desconfiava é que Ruão não estava a ser servil, mas sincero.





0 comentários:

Enviar um comentário