O Cálice de Prata (2/5) – Sara Farinha

– Casto, sem luxo nem vaidade. – André murmurou de novo. 

Ajeitou o manto branco, sobre a pele de carneiro que vestia por baixo, apertando a tira de couro que amarrava à cintura. O impacto de nós dos dedos na porta de madeira despertou-o. 

– Entre. 

– As minhas desculpas. O meu senhor chama-o à sua presença. – a jovem rapariga, de cabelos claros e olhos cor de mel, murmurou. Enrubescendo com o olhar perscrutante e apreciador à sua curvilínea figura. 

– Casto, sem luxo nem vaidade. – André rosnou, assim que ela abandonou o quarto. Procurando apaziguar o disparo de desejo que fervera o seu sangue e acicatara as suas entranhas. 

Entalou o cálice de prata no bolso interior do manto branco, assegurando que não se separaria dele por nada, enquanto observava a cruz vermelha que decorava o lado esquerdo do seu peito. 



O cheiro a porco assado, pão acabado de cozer e vinho quente assaltou-lhe os sentidos. Amparou-se pousando a palma da mão na enorme mesa de madeira que decorava o salão da casa senhorial. Sentiu o rugido da fome, como nenhum outro, a garganta seca rivalizando com as piores incursões nas terras dos infiéis. 

Obrigou o torso a endireitar-se e as pernas a caminharem até à plataforma onde estava a mesa do nobre, senhor daquela casa e de todas as terras que a rodeavam, bem acima da gentalha comum que partilhava os enormes bancos corridos à sua frente. 

– O que me trazes, nobre cavaleiro? – o anafado senhor perguntou, os seus olhos castanhos transparecendo inteligência e atribuindo a imponência que a sua curta estatura lhe negava. 

– Uma mensagem do Grão-Mestre. – André declarou, retirando o pergaminho do invólucro que trazia preso no cinto de couro e entregando-o ao nobre com uma vénia. 

– Ah! Muito bem. Senta-te, come e bebe. Alivia-te da estrada. Entregar-te-ei uma resposta. – o nobre assentiu, agarrando o rolo de tecido com uma mão cheia de pregas de gordura. 

André Beaumont inclinou-se de novo e afastou-se, a passos largos, para o seu lugar. Comeu e bebeu como se não houvesse nada mais o que esperar. Fê-lo com sofreguidão, despejando copos de vinho pela goela abaixo e mordendo pedaços de carne e pão, com o desespero de alguém que não se habitua à fome. 

Obrigou-se a parar, quando os restantes nobres ao redor da mesa o fizeram, apesar de sentir a barriga vazia como se não tivesse provado um único naco de carne. A fome, sua companheira diária, parecia determinada a assaltá-lo naquela casa alheia. Se estivesse na sua o pão seco e o vinho velho seriam suficientes para apaziguar a sua ânsia. Mas não ali. Naquele castelo não havia os rigores da Ordem. Ali desconheciam e decerto desaprovavam a doutrina rígida que os guiava há quase catorze décadas. 

Levantou-se do enorme banco de madeira, assim que os sons de flautas e vozes se sobrepuseram ao burburinho dos comensais, mas foi incapaz de dar mais um passo. Preso como se colado ao chão, absorto nas pequenas figuras seminuas que avançavam pelo chão de pedra polida. A imagem das peles desnudas dos torsos femininos, cobertos por inúmeros véus translúcidos, pregou-o onde estava. 

As palavras do velho, tombado na beira do rio, ecoaram na sua cabeça. “Que preso fiques e estejas. Que te seja impossível saciar o desejo. Qualquer desejo, até que voltes aqui e devolvas o que não te pertence.” 

– Impossível! – murmurou, cambaleando para trás. Sentiu a parede fria e compacta nas omoplatas, através da enorme tapeçaria que cobria a parede. 

Sem ter para onde fugir fechou os olhos, apertando as pálpebras com força, forçando a mente a concentrar-se nas palavras que guiavam a Ordem em todas as horas da sua existência. Pediu, rezou, implorou, para resistir ao desejo de agarrar uma daquelas mulheres. Qualquer uma. Para suportar a vontade de comer até rebentar, beber até se afogar, dançar até não se segurar e esquecer. Rezou pelas forças que lhe permitiriam abandonar o salão. 

Obrigou o corpo a mover-se aos tropeções para longe daquele inferno. Correu para o pátio, na frente da casa senhorial, passou pelos portões num ápice e avançou pelo breu da estrada até chegar ao primeiro aglomerado de casas. Afastou-se de todos os corpos e de qualquer tentação mas, mesmo assim a fome que o regia não soçobrava. O peso das suas botas ecoava pelas pedras da aldeia, sentindo-se acicatado por todo e qualquer som, cheiro ou vislumbre. Avançou pelas ruas estreitas até sair do último aglomerado de pessoas e casas. 

Aterrou de joelhos num curso de água, pousando as palmas das mãos dentro do riacho, encharcado e respirando com dificuldade. Fechou os olhos agradecendo a ausência de outros corpos. Abriu as pálpebras e obrigou o peito a retomar um ritmo mais controlado. Iluminado pela lua cheia que se dependurava no céu, voltou o rosto para uma figura sentada à beira do riacho. 

– Sai daqui. – André ordenou, a rouquidão tomando conta da sua voz. 

– O que o aflige, senhor? – a jovem mulher questionou, levantando-se devagar. – O que me aflige... – André murmurou, o seu corpo tombando sobre o pequeno curso de água.


Parte 5:
Parte 4:
Parte 3:
Parte 1:

1 comentários:

Vitor Frazão disse...

Ligeiramente mais interessado, mas ainda não conquistado. Esperava um ambiente mais visceral da parte da maldição e da reacção dele.

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