Os Kravyads 4/7 – O cordeiro – Vitor Frazão

     Embora paralisado, o aterrorizado Luís manteve-se completamente desperto, experienciando tudo, por isso, quando entrou na cozinha, os seus sentidos foram atacados. O cheiro putrefacto emitido por Kunti tornou-se mais forte e passou a ser acompanhado por outro, no qual o férreo odor a sangue e o indistinto aroma a carne cozida se misturam. Moscas zumbiam à sua volta, tratando-se, na sua maioria, de gordas e esverdeadas varejeiras, enquanto se ouvia o som de água em ebulição e de sacos de plástico a serem fechados. 

      - A tua filha está impossível – acusou Kunti, enquanto esperava que o marido tirasse os últimos sacos de cima da robusta bancada ao centro da cozinha, para nela depositar a vítima. 

      Quando Luís foi largado, qual saca de batatas, a sua cabeça ficou virada para o lado e pôde ver um homem de etnia indiana, largo como um barril e com braços peludos, vestido com calças cinzentas coçadas, t-shirt e avental brancos, manchados com sangue, a atirar peças de carne ensacadas para uma grande arca frigorífica. O estudante podia ter-se iludido sobre a natureza desta carne, não fosse a visão de um pé inconfundivelmente humano, antes da arca ser fechada. 

      - Devias ter visto o como ela saiu à rua, Isha – continuou Kunti, enquanto o marido pousava o cutelo manchado de sangue e acabava de guardar as miudezas do “cliente” anterior. Embora a mulher e a filha não gostasse das tripas, rins e fígado, Isha não era tão selectivo pois, mais velho, lembrava-se bem de épocas duras, durante as quais nem isso conseguira arranjar, devido à concorrência com outros da sua espécie. O rakshasa aproveitava quase tudo, só as cabeças eram deitadas fora, após removidos os miolos, claro. – Sabes qual é o problema? Ela tem vergonha de nós e não tem respeito nenhum pela nossa herança cultural. 

      - Ela já comeu alguma coisa? – perguntou o marido, a quem o cabelo escasseava no topo, tendo, para compensar, um farto bigode negro. – Os dedos estão quase pronto. 

      - Ela tem tempo de comer durante o ritual – garantiu a mulher com indiferença, remexendo com uma colher de pau o conteúdo da panela que estava ao lume, fazendo com que alguns dedos humanos subissem à superfície. – Estão com bom aspecto… Não que ela te agradeça. Criança ingrata. Sabes qual é o problema? Mimámo-la. Ela nunca teve de roubar cadáveres ou caçar humanos com mais osso que carne em becos imundos. Fizemos-lhe as vontades todas. Ela quis ver o mundo, procurar emoção, viver numa cidade e nós, parvos, cedemos. Devíamos ter ficado em casa… 

      - Estava a pensar numa cidade a sério, LA, Paris ou Londres. Não isto! – atirou Anath, a partir da sala de estar. 

     - Estás a ver como ela me fala? – indicou Kunti, apontando para a porta com a colher de pau. – Ainda por cima tem os ouvidos apurados da megera da tua mãe. 

      - Sim, sim… – respondeu Isha, não se esforçando muito para fingir que prestava atenção aos queixumes da mulher, enquanto virava o rosto da vítima para o tecto e começava a analisar a peça, com as mãos ainda encharcadas com o sangue do “cliente” anterior, atraindo varejeiras. Aterrorizado e enojado, Luís tentou escapar, porém, não conseguiu mexer um único músculo. – Trouxe-nos um bom. 

      - Sim – concordou a esposa, admitindo a contragosto que, apesar dos seus muitos defeitos, a filha sabia escolhê-los. – Um pouco magrinho, não? 

      - Não, olha aqui – indicou Isha, puxando a manga esquerda de Luís para cima, apalpando e abanando-lhe o braço, sem que o humano, aprisionado dentro do próprio corpo, pudesse fazer o que quer que fosse para o impedir. – É tenrinho. Não tem muita gordura, mas também não é um desses ressequidos montes de músculo. Bah! 

      Embora os rakshasas não precisassem verdadeiramente de comer, eram incapazes de resistir ao sabor de carne humana, o único alimento que ingeriam. Era como um vício para eles, não diferente da nicotina ou álcool para um mortal, sendo-lhes impossível renunciar a tal dieta sem começar a ressacar. 

     - Acho que será bom para o ritual – adiantou Kunti, desligando o lume e esperando a confirmação do marido. – O que te parece? 

      Habitualmente, os Kravyads escolhiam as vítimas entre vagabundos e migrantes, para que o seu desaparecimento provocasse menos ondas, sendo tal selecção exclusivamente condicionada pela qualidade e quantidade da carne, porém, uma vez por ano, a selecção processava-se de modo diferente. Ocasiões como aquela exigiam que tivessem em conta outros factores, entre os quais, a personalidade e estado de espírito do “cordeiro”. Regra geral, a falta de pessoas que se importassem com a vítima seria uma vantagem, todavia, daquela feita, para que o ritual fosse bem-sucedido, o raptado precisava de ter pessoas que sofressem com o seu desaparecimento. 

      - Vamos ver – disse Isha, esticando o indicador esquerdo e fazendo com que a unha se retraísse para dentro da pele, ao mesmo tempo que na ponta do dedo surgiu uma fina e resistente agulha de queratina. Quando a sonda atingiu dez centímetros de comprimento, o rakshasa enfiou-a no ouvido direito de Luís, perfurando-lhe o tímpano e não parando até atingir o cérebro. Apesar das dores, o mortal paralisado foi incapaz de gritar, sendo o tremor dos seus olhos o único sinal de sofrimento. – Sim, muito bom… Inocente e perturbado, com um pequeno toque de escuridão na alma… Pais e irmão, uma família que o adora… não muitos amigos, mas leais. Sim… sentirão a falta deste… O seu desaparecimento causará muita dor, será óptimo para o ritual. Boa escolha, Anath! – gritou, para que a filha ouvisse o elogio, enquanto removia a agulha. – Um belo sacrifício este ano. Devias agradecer-lhe. 

     Kunti resmungou entre dentes, em concordância, dizendo que já o fizera, ao mesmo tempo que começava a ajudar o marido a despir o humano, em preparação para o ritual, antecipando a chegada do Doutor.




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