O Canto da Ninfa - Carina Portugal

Inspirou fundo, lançando um olhar à Deusa Lua que crescia nos céus, antes de as pálpebras se fecharem e o seu espírito se preparar para entrar em meditação. 

Sem aviso, uma série de salpicos frios atingiu-lhe o rosto, quebrando-lhe a concentração. Estremeceu e piscou os olhos, enfrentando o luar que se reflectia no Lago Sagrado. As águas ondulavam, perturbadas por algo que o elfo não conseguia ver. Talvez uma pedra, talvez um peixe… olhou em volta, contudo o bosque parecia imperturbável. 

Era ainda demasiado cedo para a maioria dos habitantes acordar. Não havia razão para estar ali mais alguém. 

Suspirou e encolheu os ombros, voltando a fechar os olhos. E, mal o fez, foi novamente atacado por uma onda de salpicos. 

– Hey! – protestou, abrindo os olhos, a tempo de ver desaparecer na água um rosto feminino, enquanto uma gargalhada divertida se diluía no ar. 

Descruzou as pernas e debruçou-se sobre o lago, tentando ver para além do espelho que reflectia um rosto intrigado. Levou a mão à água e tocou na superfície instável. Tão depressa que não lhe deu tempo para se afastar, o rosto voltou a surgir muito perto do seu. Dois braços saíram da água e entrelaçaram-lhe o pescoço, puxando-o. 

O elfo caiu de cabeça dentro das águas profundas. Esbracejou e esperneou para voltar à superfície, em busca de ar, e, quando a cabeça furou a água, lançou um olhar atarantado à sua volta. 

– Quem está aí? – quis saber, ofegando. Afastou o cabelo do rosto, com uma mão. – Isto não é muito simpático de se fazer, sabias? 

Ao seu lado, a corrente sofreu uma ondulação atípica, e as águas redemoinharam, até formarem um corpo delgado, feminino, cujos olhos o espreitaram à superfície, arrependidos. Ele conseguia ver-lhe a silhueta desnuda, através da ondulação do lago, tão perfeita e líquida quanto uma filha das águas poderia ser. 

Não conseguiu evitar um sorriso compreensivo. No final de contas, muitas ninfas viviam solitárias ou perdiam-se na corrente, vogando pelos trilhos incertos da água. Não constava que alguma habitasse as Lágrimas da Deusa, por isso esta deveria ter chegado há pouco tempo. 

– Chamo-me Ilnosianar e sou um dos habitantes de Nelgadir, a terra onde estais – informou, tentando esquecer a frieza que se entranhava no corpo. – Donde vindes e qual o vosso nome? 

A ninfa abriu muito os olhos e abanou a cabeça, enquanto as faces ganhavam um rubor súbito, como se ele lhe tivesse feito uma pergunta indecorosa. Mergulhou e desapareceu, sem lhe permitir dizer mais nada. O elfo piscou os olhos, atordoado com a timidez dela. Chamou-a uma, duas, três vezes, porém ela não voltou a surgir ou sequer a atirar-lhe água. 

Acabou por se içar para terra firme, com um gemido. Depois de relancear o lago uma última vez, afastou-se para o palácio, pensativo. A túnica e as calças deixaram um trilho de pingos de água. 

Todas as noites, Ilnosianar regressava às margens da Deusa. Por vezes encontrava dois olhos a observá-lo, contudo a ninfa não se atrevia a aproximar, como se ele lhe tivesse feito algum mal ao perguntar-lhe o nome. Numa tentativa de se mostrar mais amigável, conversava, apesar de não obter respostas, contava-lhe história, e chegou mesmo a levar uma flauta e tocar para ela. 

Sete noites depois, a ninfa voltou a acercar-se, enquanto ele tocava uma melodia cujo som se harmonizava com o pio esporádico de uma coruja e com o ramalhar nocturno. Apoiou os braços na margem e deixou a cabeça repousar neles, enquanto o observava. Um sorriso de agrado despontou nos lábios do elfo, contudo não interrompeu a melodia, com medo que ela voltasse a fugir. Quando por fim terminou, baixou a flauta e soltou um suspiro satisfeito. A ninfa levantou a cabeça e bateu palmas, entusiasmada. 

– Muito agradecido, bela donzela. Fico feliz por ter sido do vosso agrado. 

A ninfa fez um aceno rápido e impulsionou-se um pouco mais para fora de água, só para lhe chegar ao rosto e lhe depositar um beijo rápido nos lábios, antes de se desfazer em mil gotículas. Espantado, Ilnosianar levou uma mão à boca, onde ficara um resquício de humidade. Um calor breve corou-lhe as bochechas. 

Nessa noite, a ninfa não voltou à superfície, e o jovem príncipe quedou-se a mirar as águas onde se reflectia a Lua Cheia. Sorria para si, com o rosto de um tolo que se enamorara pela curiosidade, timidez e simultâneo atrevimento daquela bela criatura. 

A partir desse dia, a ninfa ganhou coragem para se sentar ao lado dele, sem se importar com a nudez, observando-o e bebendo-lhe as palavras das histórias, sem nunca articular uma sua. 

– Gostava de te ouvir falar – confessou ele. Achara por bem deixar as formalidades de lado. – Poder chamar-te pelo nome. 

Por vezes a pele da ninfa ondulava, instável como a água, e os olhos lembravam pequenas lagoas azuis. Foi o que aconteceu, quando ela levou ambas as mãos à boca e abanou a cabeça. O elfo quase se sentiu a mergulhar nos orbes pesarosos dela. 

– Não volto a insistir – garantiu, desviando a atenção para o mar de estrelas. 

A ninfa mordeu o lábio inferior e, numa decisão súbita, abraçou-o contra o corpo húmido, beijando-lhe o rosto inúmeras vezes, em forma de perdão. O toque dela era tão meigo que Ilnosianar não conseguiu ficar-lhe indiferente. Retribuiu o abraço, esperando que ela não se diluísse e fugisse dos seus braços, e uniu os lábios aos dela, provando a sua doçura e desejando-a para si. 

A filha das águas acabou por se afastar, com um sorriso, e deslizou para dentro da água. Uma pontada de desilusão assaltou-o, porém os braços dela esticaram-se para si, chamando-o. Depois de se despir, Ilnosianar juntou-se à ninfa, deixando-se levar num jogo de carícias fugazes e beijos líquidos, sob o olhar da Deusa, cujo astro minguava no céu. 


Nessa noite, com a chegada da Lua Nova, o luar extinguira-se. Ainda assim Ilnosianar conseguia perscrutar o caminho que o levava até ao lago, apressando-se com a ânsia de enamorado a bater-lhe no peito. Na mão levava três jóias-da-deusa que desabrochavam durante a noite. Viu a sua ninfa, quando estava já perto do lago – esperava-o em terra firme, com um sorriso, e quando o viu correu para ele, abraçando-o. 

Recebeu-a com um espanto mudo. Era a primeira vez que a via completamente fora de água. Abraçou-a com umas das mãos e tomou-lhe os lábios. O corpo da ninfa estava mais quente e menos húmido. 

– Não devias ter abandonado a água. É o teu elemento, pode fazer-te mal estares longe dele. 

– Não me fará mal – murmurou ela, num tom melodioso que lembrava o canto das aves. 

Ilnosianar arregalou os olhos. Ela falara, por fim! E a sua voz era tão bela, tão doce, tão nítida como o vento… imaginara-a mais líquida e fresca, na verdade, e isso revolveu-lhe a alma, sem saber porquê. 

– Porque é que não falaste antes? – perguntou, ansiando uma resposta que o serenasse. 

A ninfa encolheu os ombros. 

– O que interessa? Não devemos desperdiçar este tempo precioso – murmurou, contra os lábios dele. 

A voz dela embargava-lhe a mente de tal forma que aquela resposta foi suficiente para apagar receios ou suspeitas. Era como se lhe ciciasse uma música de embalar. O elfo vacilou e as flores escorregaram-lhe das mãos. 

– Deitemo-nos, meu amor – disse-lhe, pousando-lhe uma mão no peito. – Estás tão cansado… 

Ele começava a acenar, quando olhou de relance a superfície do lago. Dois orbes espreitavam, arregalados. 

– Espera – pediu, tentando perceber de quem eram aqueles olhos, se a sua ninfa estava ali, junto a si. Talvez a falta de luar lhe estivesse a ludibriar a vista. Ou talvez… 

– Deita-te – repetiu, num sussurro já perto do ouvido. – Cantarei para ti, meu príncipe, e embalar-te-ei. 

O sono apossava-se dele, como uma doença galopante. As pernas cederam e ele caiu de joelhos sobre a erva. A cabeça pendeu para a frente, encostando-se ao ventre nu da ninfa. Com carinho, ela afagou-lhe o cabelo, cantando baixinho numa língua obscura. 

O chapinhar de água passou-lhe completamente despercebido e só percebeu que algo se passava quando a música de embalar cessou abruptamente. Forçou-se a abrir as pálpebras e levantar o olhar. Quando o fez, uma gota de água atingiu-o na fronte, provinda da mão que agarrava a ninfa pelo pescoço. Seguiu o pulso e o braço com o olhar, e encontrou uma réplica perfeita da sua donzela. 

Quando os olhares se cruzaram, a segunda ninfa esboçou um sorriso de lamento, antes de abrir a boca e deixar escapar um gorgolejo cristalino que ecoou por todo o bosque. 

Ilnosianar despertou de súbito, como se lhe tivessem dado um banho de água fria, e pôs-se de pé com um salto. Afastou-se vários passos e mirou as duas ninfas. O som de água continuava a ecoar, invocando as ondas do mar, o grito das cascatas, o movimento dos glaciares. 

No momento em que a primeira ninfa esboçava um esgar de raiva que revelava dentes afiados, e dos dedos lhe cresciam unhas tão mortais quão estiletes, ambas explodiram – uma em múltiplas gotículas de água, outra desfazendo-se em partículas negras que caíram sobre as ervas, corroendo-as e deixando no ar um fedor que Ilnosianar reconheceu das descrições dos livros. 

Aquela criatura estava muito longe de ser uma ninfa. Era, sim, um devorador de almas, que se aproveitara do decair do luar e do consequente fraquejar das protecções mágicas daquela terra para se infiltrar. E estivera tão perto de o devorar. 

Contemplou o solo, que agora sorvia as gotas de água da sua ninfa, e mordeu o lábio inferior, por impulso, impedindo-o de tremer. Acocorou-se. 

– Obrigado – sussurrou, afagando a terra, esperando que ela ainda conseguisse sentir o seu carinho. As lágrimas correram-lhe pelo rosto e juntaram-se à ninfa que se sacrificara para o salvar. – Odorhonirien ë lio emos, calyahne sa juved sise niadin’se. (1)

Desse trágico dia em diante, Ilnosianar não passou uma noite sem se sentar à beira do lago, esperando-a, pacientemente. Um dia, cada uma daquelas gotículas reunir-se-ia para a reconstituir, e talvez a ninfa vogasse até às Lágrimas da Deusa, para se voltarem a abraçar. 



1 - Aguardarei o teu retorno, além da vontade dos deuses.


4 comentários:

Guiomar Ricardo disse...

Gostei muito!Pleno de imaginação,este conto é um deleite a magiae da fantasia.

Morgana disse...

Bem, conseguiu-me fazer ler no computador, o que é um feito. Noto claras melhoras na escrita e como sempre a história está muito boa. ^^

Patrícia disse...

Gostei! Está giro, e ainda por cima passa-se num universo sempre mágico e bonito :D

Inês Montenegro disse...

Um conto essencialmente fofinho =)

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