Abraça-me para Sempre 1/3 - Carla Ribeiro
Sentia-a tremer entre os seus
braços magros, aninhada contra a protecção do seu corpo. Por mais que os fogos
dispersos pelos corredores do refúgio lutassem para trazer aos perseguidos um
pouco de luz e calor naquele sepulcro subterrâneo, todas as tentativas eram
insuficientes para preencher o imenso vazio. E para ela não havia luz. A visão
abandonara-a anos antes, num tempo em que também ela podia lutar pela sua vida,
sem necessidade de se entregar completamente aos cuidados do irmão para que
este a protegesse. Ainda assim, talvez o calor do fogo a pudesse confortar,
acalmar o violento temor que ela se forçava a controlar nos confins do seu
abismo pessoal, as sombras que lhe restavam no coração.
- Kari… - murmurou ele, suavemente,
enquanto lhe acariciava os cabelos – Kari, estás bem?
Ela ergueu o rosto, como se, com
aqueles olhos vazios de vida, tentasse ainda encontrar nas sombras os traços do
irmão.
- Sim. – respondeu – Mas não me
deixes. Não me largues, Aleks. Abraça-me com mais força.
Fez o que lhe pedia. De que outra
forma poderia agir quando, na verdade, ambos partilhavam o mesmo medo visceral
e incontrolável? Aqueles sinistros corredores eram o último abrigo dos
condenados, o único esconderijo que não fora ainda descoberto pelos invasores.
À superfície, o som dos disparos e o fúnebre troar das explosões compunham a
sua sinfonia de morte, num nítido aviso de que o fim estava agora demasiado
próximo. E Aleks sabia que, se os que haviam partido fracassassem, não tardaria
até que também eles e os poucos miseráveis que se espalhavam por aqueles
corredores encontrassem o seu fim.
Seria aquele o seu último dia?
Apreensivo ante o futuro, Aleks contava o tempo decorrido desde a partida dos
companheiros em missão de resgate. E, por mais que tentasse manter viva a ténue
ilusão da esperança, sabia como seria difícil arrancar um cativo às mãos dos
conquistadores. Alguém que, com a pressão certa, acabaria por dar voz aos seus
mais sagrados mistérios e que, assim, os condenaria a todos.
Voltou a fitar a irmã, em busca
de uma força que o arrancasse aos seus próprios medos. Era ela a sua razão para
não ter ainda desistido da luta. Cega e indefesa, precisava da sua protecção.
Agora, contudo, enquanto a olhava, frágil e vulnerável nos seus braços, Aleks
sabia que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por lhe falhar, que nada poderia
fazer quando os conquistadores chegassem. Quanto tempo lhes restava? Teria o
seu segredo sido já revelado? Seria aquele abraço o derradeiro traço da sua
ligação à irmã?
O som de passos que se
aproximavam arrancou-o em sobressalto aos seus pensamentos. Kari, contudo,
apesar do seu próprio medo, tranquilizou-o.
- É o Sirm. – disse. Conhecia o
som dos seus passos.
Alguns momentos depois, o homem
apareceu. O cansaço era evidente nos seus traços, consumido pelo esforço, tal
como muitos dos que ali se refugiavam. A perturbação de Sirm, contudo, o
desânimo resignado que transbordava da sua postura, era um motivo de temor para
todos os que ali se escondiam, já que era aquele o homem a que chamavam líder e
também um dos que partira na missão de resgate cujos resultados ansiosamente
esperavam. Agora, olhava em redor, numa mistura de receio e necessidade de
contar aos que restavam o catastrófico resultado do seu empreendimento.
- Dói-me anunciá-lo – começou,
por fim, incapaz de conter o tremor na sua voz – mas aproxima-se o mais negro
dos nossos dias. Chegámos tarde demais. O nosso irmão já tinha sido conduzido à
prisão dos invasores.
Kari gemeu. Foi Aleks, contudo,
quem deu voz aos seus temores.
- Por esta altura – disse – já
lhe devem ter arrancado tudo o que precisam de saber. Já nos devem ter
localizado.
Sirm assentiu.
- Não tardarão em vir até aqui. –
disse – Quem tiver algum lugar para onde fugir, é melhor que o aproveite já.
Foi como se um suspiro desolado
nascesse do próprio cerne daqueles corredores. Não havia já nenhum lugar seguro
e todos o sabiam. Nada os podia proteger de um inimigo que, com a sua força
infinitamente superior, optara por extinguir, num massacre, todas as
possibilidades de reacção da parte dos vencidos.
Destroçado, Sirm fitou-os. Um
tempo houvera, quando os conquistadores tinham acabado de tomar o poder, em que
fora oferecida aos derrotados a escolha da servidão. Ele, contudo, não hesitara
em recusar uma vida de escravo e muitos haviam sido os que persuadira a
prosseguir com a resistência. Via agora que tudo o que conseguira fora
conduzi-los até aos braços da morte.
- Tens medo, Sirm? – perguntou
Kari, de súbito, como se pudesse tocar os seus sentimentos – Por nós? Não
tenhas… Não obrigaste ninguém a seguir-te. Chegámos até aqui porque quisemos.
O líder fitou-a, perturbado.
- Sim, Kari, tenho medo. –
admitiu – Por todos nós. Não queria este destino para ninguém…
Como se, de alguma forma
impossível, os seus olhos cegos pudessem fitar as profundezas daquela alma
atormentada, Kari fixou em Sirm a sua expressão.
- Espera connosco. – convidou,
ciente da aura que, como um toque invisível, reflectia a sua vontade de se
afastar, de os poupar à presença do verdadeiro culpado pelo destino que
enfrentavam – Se estiveres aqui será mais fácil. Será mais simples lembrar.
- Lembrar? – perguntou Sirm,
surpreendido – O quê?
- Lembrar que a morte – concluiu
Aleks, em sintonia com os pensamentos da irmã – é um tormento mais breve que a
escravidão.
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1 comentários:
Um começo bom, ainda com muito a contar.
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