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O monstro e a musa (3/10) - Pedro Cipriano


– Como é que ele se atreve a falar assim contigo? Eu exijo que o castigues imediatamente! – exaltou-se um homem oponente de cabelo grisalho, também ele sentado à esquerda de Artur. 


– Tem calma Aristides, precisamos dele vivo e inteiro. O senhor Ramos tem uma língua muito pouco domesticada, especialmente tendo em conta a sua situação precária. Agradecia que evitasse comentários jocosos enquanto estiver reunido com o concílio que rege este castro. Não se esqueça que temos os restantes membros da sua expedição como reféns. 

– Não sei porque é que me está a perguntar isso. Só sei que a era nuclear terminou com o grande cataclismo. 

– Já irá saber os meus motivos mas, primeiro, gostaria que nos falasse das razões desse cataclismo. 

– O petróleo era um recurso finito e, quando começou a escassear, várias nações entraram em guerra pela posse das últimas reservas. O conflito agravou-se, transformando-se numa guerra mundial. Os conflitos mundiais duraram oito anos, em que vários milhões de pessoas pereceram. Não foram usadas armas nucleares, pois todos sabiam que isso poderia causar a extinção da espécie humana. Todavia, a aliança euro-asiática foi colocada numa posição delicada nos últimos estádios do conflito e decidiu usar o seu arsenal nuclear – relatou Walter. 

De seguida, levantando-se abriu os braços com as palmas da mão viradas para o chão 

– A morte desceu dos céus e o mundo antigo desapareceu, para sempre – citando a frase que era ensinada a todas as crianças 

– Óptimo, eu não teria feito melhor. Deixe-me dizer-lhe que tem excelentes dotes de orador. Agora, se não se importar, podia falar-nos um pouco do que aconteceu depois do grande cataclismo? 

– A maioria da população mundial morreu nesse dia. Nações inteiras foram apagadas do mapa. Os diversos líderes sobreviventes reuniram-se e decidiram destruir toda a tecnologia da era nuclear, de modo a evitar que algo semelhante pudesse voltar a acontecer. 

– O Homem não deve possuir nem criar meios para se auto-destruir – citou Artur, afastando algo imaginário com a mão esquerda. 

– Vejo que está bastante informado sobre o assunto... 

– Poupe-nos o comentário. Já que insiste, vou directo ao assunto. Eu pretendo que recrie uma tecnologia da era nuclear. 

Walter levantou-se impetuosamente e aproximou-se de Artur. Por um momento, perdera todo o medo, pois sentia que estava a servir um propósito maior. 

– Bem, acho que me pode matar já. Não há nada que me convença a desenvolver tecnologia proibida e tenho a certeza que todos os outros sobreviventes são da mesma opinião. Mais facilmente abdicaremos das nossas vidas do que participaremos em tal loucura – gritou, apontando o dedo a Artur. 

– Peço que se acalme – ordenou o líder, pedido, com um gesto, aos outros membros do concílio que fizessem o mesmo. – Diga-me, quais são as sete tecnologias proibidas. Sabe-as de cor? 

– Claro que sei, é a primeira coisa que nos ensinam quando entramos na Academia Imperial das Ciências – constatou Walter, admirado com a aparente calma de Artur. 

– Diga-as, em voz alta. 

– É proibido manipular núcleos atómicos, assim como realizar fissuração e fusão nuclear. É proibido desenvolver propulsão a jacto ou qualquer outro projéctil ou veículo, tripulado ou não, que exceda a velocidade do som. É proibido construir máquinas que efectuem cálculos complexos mais rápido que a mente humana. É proibido acelerar e colidir qualquer partícula atómica e sub-atómica. É proibida a criação de compostos químicos que sejam altamente inflamáveis, corrosivos, explosivos ou tóxicos, sendo a única excepção a pólvora preta. É proibido manipular cadeias de DNA e a criação e manutenção de organismos altamente infecciosos ou letais para a espécie humana e ecossistemas em geral. São proibidas experiências psicológicas com o objectivo de ler ou manipular a mente humana. Qualquer pessoa, independentemente do estatuto, que viole ou tente alguma destas regras receberá a pena capital e todos os registos do seu trabalho devem ser imediatamente destruídos. Estas são as regras para evitar que a espécie humana se auto-destrua. 

– Excelente dicção e não lhe encontrei nenhuma falha – congratulou Artur, batendo palmas. – Contudo, julgou-me mal, eu sei perfeitamente os limites. Somente sou bárbaro na vossa designação e não tenho ilusões megalómanas de poder. O que eu pretendo não irá violar nenhuma dessas regras. 

– O que é que você pretende, então? – inquiriu Walter, confuso com mais uma reviravolta. 

A face de Artur abriu-se num sorriso, enquanto se levantava e fazia sinal ao concílio para o imitar. 

– Eu vou deixar que você próprio descubra. Isto é, vou-lhe mostrar o problema e você irá sugerir uma solução – anunciou o líder, apontando para a saída. 

– O que o leva a crer que eu irei trabalhar para si? – hesitou Walter, mantendo a sua posição. 

– Já tivemos a conversa das alavancas uma vez, não julgo que seja necessário repeti-la. Acho que o próprio problema poderá ser um estímulo importante. Agora siga-me, tenho a certeza que a curiosidade o está a afectar mais do que queria. 

Saíram do palácio e enveredaram pela rua principal. Apesar de ser hora de ponta, a multidão abria alas para os deixar passar. O inventor viu que a cidade possuía várias fontes com água corrente, apesar se encontrar num ponto alto. Ao observar o pavimento, descobriu pequenas fissuras nas extremidades da via, o que provavelmente corresponderia a esgotos. 

A conversa enigmática despertara-lhe um grande interesse. Questionava-se sobre o que é que uma cidade-estado tão avançada poderia ainda precisar. Por mais que se esforçasse, só lhe ocorria matérias de índole bélica. 

Apenas meia dúzia de soldados acompanhava a comitiva. Walter perscrutava cada face e cada beco, na esperança de poder escapar. – Caro Walter, se me permite que o trate assim, não acho que uma tentativa de fuga seja uma coisa sensata de se fazer. Para além de ser pouco provável que tenha sucesso, os outros prisioneiros sofrerão as represálias. Pense neste passeio como um presente – sugeriu-lhe Artur, entrecruzando os dedos numa atitude de auto-confiança.



Parte 2:
Parte 1:


Biscoitos da Vida Eterna - Carina Portugal


– para bruxas que querem ser imortais e gordinhas –


Ingredientes:

Meia dúzia de aventureiros;
200 g de mel de urtiga;
1 chávena de extracto de mandrágora;
4 a 5 ovos de fénix;
1kg de farinha de trigo bolorenta;
1 colher de chá de fungos pulverizados;
1 colher de chá de pó de unhas-de-donzela;
1 chávena de sangue de unicórnio;
Raspa das escamas de um dragão.


Obtenção dos Ingredientes:

Sente-se à porta da sua bonita e acolhedora casa a fazer tricô, enquanto aguarda as presas. Quando algum jovem bem encorpado passar por si, meta conversa, num tom de avozinha, e certifique-se de que é um aventureiro experimentado. Depois de obtida a confirmação, lance-lhe um feitiço de controlo mental. Faça isto com vários, já que alguns podem morrer pelo caminho e convém ter sempre de reserva.

Quando ele estiver sob efeito do feitiço, ordene-lhe que vá roubar mel às colmeias da Bruxa Aurélia, enquanto ela estiver muito distraída a ver “As Tardes da Bruxa Jullie” – ela é famosa pela sua gigantesca plantação de urtigas. Se ele não voltar dentro de um dia, envie outro aventureiro, e assim sucessivamente (o mesmo se aplica com a obtenção de outros ingredientes).

Quando ele voltar, ordene-lhe para tirar da dispensa aquela farinha podre que está lá há séculos e diga-lhe para ir ao quintal arrancar duas mandrágoras e meia dúzia de cogumelos, que o seu reumático não é propício a esse género de tarefa. Ele que pulverize os cogumelos e que esmague as mandrágoras num almofariz, até não mexerem sequer uma raiz, e que as deixe a repousar durante uma semana.

Enquanto isso, envie-o até ao topo da montanha cujo pico toca o céu. Aí, ele encontrará o ninho de uma fénix. Que roube o único ovo existente. Se não houver ovo, ele que vá até ao próximo pico, e assim sucessivamente, até arranjar os cinco.

Para a demora não ser grande, envie um segundo aventureiro para o bosque, em busca de um unicórnio. Ele que o capture, de preferência sem o matar, e recolha uma chávena do seu sangue, ao bater das 12 horas de uma noite de lua cheia.

Quando o vendedor ambulante passar junto da sua casa, compre-lhe um frasco de pó de unhas-de-donzela. É mais prático do que enviar um aventureiro para ir arrancar unhas, até porque, para um homem, a definição de “donzela” pode ser vasta…

Por fim, o ingrediente mais difícil de obter. Envie um dos seus aventureiros em busca de um dragão. Se achar que o seu homem não é suficientemente bom, envie vários – enquanto alguns viram churrasco, e outros são empalados pelos espinhos, um deles há-de conseguir trazer uma escama.

Preparação:

Numa taça grande, junte os ovos de fénix com o mel de urtiga e o sangue de unicórnio e bata bem. Se não tiver força, peça a um aventureiro para bater por si.

Depois, junte o extracto de mandrágora, o pó de unhas-de-donzela e a raspa de escama de dragão, e de seguida adicione os fungos pulverizados e vá juntando a farinha bolorenta aos poucos até ficar consistente para moldar.

Faça pequenas bolas, e pincele com gema de ovo, para posteriormente colocar num tabuleiro untado de azeite e levar ao forno bem quente até os biscoitos ficarem dourados.

Tire-os do forno e deixe-os arrefecer longe do alcance do seu gato. Quando comer o primeiro biscoito, irá começar logo a sentir efeitos de rejuvenescimento. Se os aventureiros ainda estiverem por aí, aproveite e brinque um pouco com eles.

Notas Finais:

– Antes de enviar o aventureiro, verifique se não tem os ingredientes na dispensa.

– Ter cuidado para não desperdiçar muitos aventureiros, porque estes estão em vias de extinção e são uma espécie protegida.

O monstro e a musa (2/10) - Pedro Cipriano

Walter foi separado dos restantes prisioneiros e forçado a caminhar até ao pôr-do-sol. Dormiu ao relento e, na manhã seguinte, prosseguiram viagem depois de lhe terem dado uma magra refeição. A marcha forçada por caminhos agrestes e inclinados estava a consumir-lhe as forças. Os bois e cavalos tinham ainda mais dificuldades, pois viam-se obrigados a carregar as pesadas peças de artilharia capturadas. 

Pelos seus cálculos, estavam a penetrar cada vez mais nos territórios selvagens. Aquela faixa montanhosa ibérica separava a Pan-Germânia da Confederação, outrora chamada de Trás-os-Montes. Nunca conseguira compreender o porquê da Confederação insistir em manter aquele enclave na península ibérica quando tinha uma boa porção da América do Sul e ricos territórios em África. Os historiadores falavam de um passado comum que acontecera há quase um milénio atrás. Para além disso, até aqueles rebeldes falavam uma língua derivada do antigo português. 

O dia teria ocorrido sem incidentes, se não fosse dois dos prisioneiros terem tentado a fuga. Foram prontamente apanhados e executados sumariamente, como exemplo para os restantes. Ainda o sangue dos dois homens não tinha coagulado, já a marcha continuava. 

Andaram o resto do dia e metade do seguinte, terminando a sua jornada numa cidadela, a qual se situava no topo de um planalto. Os portões abriram-se à sua chegada e os guerreiros foram recebidos com aclamações da pequena multidão. 

Walter ficou maravilhado enquanto o conduziam através da cidade, a qual não era em nada primitiva. As ruas eram paralelas, estavam impecavelmente pavimentadas e encontravam-se a abarrotar com máquinas a vapor. Os edifícios eram construídos em rocha trabalhada e estavam em bom estado de conservação. Inúmeros teleféricos transportavam tanto pessoas como carga. Era admirável como uma cidade tão sofisticada poderia existir àquela altitude e aparentemente isolada de tudo o resto. 

Foi levado para uma construção imponente, que deduziu ser o palácio do governador. Obrigaram-no a subir por uma estreita escada de serviço. Sem qualquer explicação, fecharam-no à chave num quarto dos andares superiores. A divisão era espaçosa e bastante melhor do que esperava. Continha uma cama, uma escrivaninha, uma cadeira, uma estante vazia e um guarda-fatos. 

Sentou-se na cama e, sem dar conta, deixou-se estender nela. Adormeceu por via do cansaço, pouco depois. 

Acordaram-no inesperadamente, várias horas depois, quando lhe trouxeram comida. O prato continha um pedaço de pão, um bife e alguns vegetais cozidos a vapor. Estava esfomeado, de modo que não levantou objecções quanto à qualidade do prato. Para sua surpresa, fora muito bem confeccionado. Enquanto comia, pôde admirar o pôr-do-sol, já que a varanda estava virada para Oeste. Quando terminou a refeição, levantou-se a custo, pois os músculos estavam extremamente doridos. 

Estava no terceiro andar do suposto palácio e o balcão proporcionava-lhe uma vista privilegiada da cidadela. A cidade possuía uma torre de relógio no centro, em frente do que Walter supôs ser a praça principal. As colunas de fumo vindas das extremidades dos teleféricos a vapor mostravam-lhe qual era a fonte de energia de toda a cidade. Avaliou o movimento e deduziu que viveriam ali entre duas a três dezenas de milhares de almas. As muralhas eram espessas e as torres de vigia estavam guarnecidas com diversas peças de artilharia, tanto contra balões como contra outra artilharia. 

Voltou para dentro, sentando-se na cama, desanimado. Era pouco provável que a Confederação luso-brasileira arriscasse atacar aquela cidade para o resgatar. O que acontecera nos últimos dias abalara profundamente as suas convicções. Não era só o cativeiro, chocava-o mais saber que os povos bárbaros eram tão civilizados como o resto da Confederação. Foi quase em completo desespero que adormeceu. 

Na manhã seguinte foi acordado, pois iria ter uma audição com o governador. Fizeram-no trocar as suas roupas esfarrapadas por um uniforme novo. Deram-lhe um pedaço de pão e um copo de água. Foi então conduzido pelos corredores até ao piso térreo. Pela primeira vez, reparou que o interior do edifício também fora construído em pedra e trabalhado com inúmeros ornamentos. Os tectos continham numerosos frescos. O que mais o desconcertava era que aquelas construções pertenciam à era pós-nuclear. 

O salão principal era extremamente espaçoso e a sua abóbada tinha várias centenas de metros quadrados, fazendo lembrar uma antiga catedral. Esperava ver um trono e um líder sentado nele, coroado como os antigos reis, contudo não foi isso que encontrou. O comandante estava no centro da sala, acompanhado por um punhado de homens que supôs serem ministros. Em ambos os lados, mais afastados, estavam alguns soldados. 

– Meu caro, espero que tenha gostado da estadia que lhe proporcionei – cumprimentou o comandante, sem quaisquer traços de ironia. 

– Quem é o senhor? – devolveu-lhe Walter, pensando que estavam a brincar com ele. 

– Peço imensa desculpa, não me tinha apresentado. Deve pensar que não passo de um selvagem, não é isso que chamam às gentes deste território? Eu sou Artur Olivais e sou o líder deste castro – e virando-se para os restantes – e este é o famoso doutor Walter Ramos, o inventor que veio do além-mar. 

Walter continuava confuso, questionava-se como é que um líder poderia comandar pessoalmente ataques à Confederação. Era preciso uma grande dose de imprudência para o tentar e sangue-frio para o conseguir. 

Artur levantou a mão e fez um gesto. Imediatamente várias cadeiras foram dispostas, formando uma meia-lua em frente de Walter. Sentiu um movimento por trás de si e, ao olhar, descobriu que um dos criados acabara de colocar uma cadeira perto de si. 

– Sentemos-nos. Acredito que temos muito que conversar – pediu Artur. 

– Eu exijo saber se este tal inventor pode resolver o nosso problema. Relembro que a sua captura foi custosa em material e homens e que ainda pode acalentar outras consequências mais graves – protestou um homem magricela à direita. 

– Silêncio Xavier, observa primeiro, fala depois – comandou Artur, dispensando o ministro com um gesto. – Caro doutor Ramos, presumo que deve estar familiarizado com o que desencadeou o fim da era nuclear. Gostava que nos falasse um pouco sobre isso. 

– Se é de história que quer ouvir falar, pois bem, enganou-se na especialidade. Deveria ter raptado um historiador, não um inventor – replicou Walter, lançado um sorriso trocista a Artur.


Parte 3:
Parte 1:

A Floresta da Morte (4/4) - Pedro Pereira

O lobo fechou os dentes em torno da garganta de um dos mercenários, arrancando-lhe a traqueia numa cena que mais parecia retirada de um filme de terror. 

Boris e os restantes capangas dispararam sobre o animal. O lobo saltou em direção a Boris e abocanhou o cano da arma, partindo-a em duas. 

Boris recuou atabalhoadamente e sacou da faca de mato. O lobo voltou a investir, mas o mercenário desviou-se com um movimento rápido, espetando a lâmina no flanco do animal. 

Ivan verificou por duas vezes se os seus olhos não o enganavam. Do flanco da criatura escorria sangue azul. 

Ferido, o lobo recuou e curvou-se sobre si mesmo. 

Boris celebrava já o golpe desferido quando o físico do animal começou a mudar. Aos poucos, o pelo que lhe cobria o corpo começou a ganhar uma tonalidade verde e a transformar-se em vegetação. O focinho da criatura encolheu e adquiriu um aspeto quase humano, revelando um rosto de pele azulada e longas barbas compostas por lianas. 

A criatura ergueu-se na sua forma humana. Devia ter uns dois metros de altura e parecia irritada. Com a mão direita, arrancou a faca de mato do dorso e atirou-a para o chão, lançando um grunhido aterrador. 

– Um Leshy! – exclamou Dimitri, que juntamente com Boris e os restantes mercenários se colocou em fuga. 

A tentativa de fuga não passou disso mesmo, de uma tentativa. Como que por magia, a vegetação e as árvores pareceram ganhar vida, rodeando os humanos em fuga. 

Imobilizado pelo medo, Ivan assistiu impotente aos seus companheiros a serem esventrados por ramos de árvores. Os gritos de dor preenchiam o natural silêncio da floresta. 

Quando os gritos cessaram, a criatura avançou para Ivan. 

– Eu avisei-te para deixares a floresta em paz, humano – declarou o Leshy com uma voz profunda. 

– O quê?! 

Diante dos olhos de Ivan, a criatura voltou a mudar de forma, desta vez para uma mais familiar. 

– Você?! 

– Sim, eu – respondeu Petrovitch. – Eu avisei-te e tu não me deste ouvidos. 

– Quem é você?! 

O Leshy voltou a assumir a sua verdadeira forma. 

– Eu sou Yaren, o senhor da floresta. Com um único golpe, O Leshy arrancou a cabeça de Ivan, fazendo-a rebolar pelo chão manchando-o de vermelho. A sua floresta estava a salvo, pelo menos pro agora…


Parte 3:
Parte 2:
Parte 1:

A Floresta da Morte (3/4) - Pedro Pereira

Os trabalhadores regressaram na manhã seguinte, mas negavam-se a trabalhar enquanto o gigantesco lobo andasse em liberdade na floresta. Ninguém se queria arriscar a ser a próxima vítima. 

Perante as reivindicações dos trabalhadores, Dimitri convencera Ivan de que não tinha outro remédio senão chamar um grupo de caçadores furtivos. Tratava-se de um grupo de ex-militares, os compinchas de copos de Dimitri, que tal como o colega, eram encorpados e de cabelo cortado à escovinha. 

– Tens a certeza de que isto é boa ideia? – questionou Ivan ao lançar um novo olhar aos quatro indivíduos. 

– Não te preocupes, eles tratam do serviço – assegurou Dimitri. 

– Disso eu não duvido… Pensei que tinhas falado em caçadores, não em mercenários. 

Um dos homens começou a distribuir armas de fogo de grande calibre pelos companheiros. De certeza que não podiam ser legais. 

– Era uma urgência e tu querias os melhores. Aqui os tens. 

– Vocês os dois, então prontos ou quê?! – chamou um dos homens. 

– Mais que prontos, Boris – respondeu Dimitri. – Fica perto de mim. 

Apesar de a ideia não lhe agradar, Ivan acabou por concordar. Para os trabalhos recomeçarem tinha de se ver livre do lobo, e aqueles tipos pareciam ser a solução mais rápida. 


*** 


Ivan perdeu por completo a noção do tempo e da distância que já haviam percorrido no interior da floresta. Munido de uma faca de mato, Boris liderava o grupo e abria caminho por entre a vegetação enquanto seguia o rasto do lobo. 

– Raios! – protestou Boris. 

– O que se passa? – questionou Ivan. 

– O rasto do lobo desaparece aqui… 

O grupo estava junto a uma enorme árvore, numa zona com pouca vegetação. 

– Desaparece como?! Estamos numa zona praticamente sem vegetação e você disse que o rasto estava fresco! 

– Eu sei o que disse! 

– Boris, isto não tem lógica nenhuma – concordou Dimitri. – Ele teve de ir para algum lado. 

Uma estranha sensação na parte de trás da nuca fez Ivan olhar para cima. O seu coração gelou. Lá estavam aqueles aterradores olhos amarelos. 

Num abrir e fechar de olhos, o enorme lobo saltou do topo da árvore e lançou-se sobre o grupo. O predador acabara de virar presa…


Parte 4:
Parte 2:
Parte 1:

O Primeiro Voo - Liliana Novais

O coração de Aluminir batia acelerado. Aquele seria o seu primeiro voo sem a companhia dos pais. A ideia da independência excitava-a e amedrontava-a de igual modo. Aquele era o maior acontecimento da sua vida, pelo menos até aquele momento. O sangue corria-lhe quente pelas veias e os primeiros raios de sol da manhã faziam as escamas prateadas brilharem. Estendeu as asas e com apenas um impulso elevou-se no ar com a ajuda das correntes ascendentes. 

Pela primeira vez na curta vida sentia-se completamente livre e queria apenas explorar os seus limites. Elevou-se cada vez mais, subindo acima dos cumes das montanhas Farlan, a enorme cordilheira norte de Ahelanae. Subiu bem acima dos pássaros, deixando de os ver. A sua respiração tornou-se pesada e difícil, como se tivesse um peso a contrair-lhe os pulmões. Nem mesmo assim desistiu, prosseguiu com a subida. A visão começou a ficar turva e o ar que entrava nos seus pulmões não era suficiente.Perdeu os sentidos. Aluminir caía descontroladamente, aproximando-se cada vez mais depressa do solo. O chão estava ameaçadoramente próximo. Finalmente abriu os olhos. Teve apenas tempo de reagir e raspar na encosta de um dos picos mais altos, arrastando várias pedras. Sentiu-as a cortar a pele. Uivou de dor quando uma pedra embateu numa das asas. As suas garras raspavam na encosta, numa tentativa de abrandar, mas não conseguia agarrar-se e continuava a embater contra a parede da montanha. Finalmente conseguiu fincar as patas traseiras e abrandar a queda, acabando por se imobilizar. 

Suspirou, nunca mais faria o mesmo. Aprendera com o erro, quase perdera a vida. 

Esticou a asa.Sentia uma pontada de dor mas era suportável, felizmente não a tinha partido. Retomou o voo. Teria de ser mais cautelosa. Apenas queria sentir o vento sob as asas. Sobrevoou as montanhas em direcção à Floresta de Holvar. Acompanhou os pássaros, voando ao seu lado, pairando sob os altos picos. Fazia corridas com as velozes águias Tiran, as quais tinham metade do seu tamanho. Ria-se. Entendera, finalmente, o significado de ser livre, de poder voar. Estava feliz. 

Uma sombra tapou-lhe o sol. Assustada, olhou para cima. Um segundo dragão prateado surgiu no céu. Aluminir não estava à espera de companhia no seu primeiro voo. 

Iniciaram numa graciosa dança alada,como se duma corte se tratasse. Faziam piruetas, voos rasantes, em torno um do outro. Aluminir não queria admitir, mas estava a divertir-se com aquele dragão desconhecido. Estava curiosa, sem contar com os seus pais, nunca vira outro dragão. Queria falar com ele, conhecê-lo melhor. 

Ela olhou para baixo, já não estavam sob as montanhas, a verdejante floresta estendia-se agora por baixo deles. À frente, um enorme lago alongava-se, o lago Tadal. Ela começou a descer em direcção a este. O outro dragão entendeu e seguiu-a. 

Aluminir tentou aterrar o mais graciosamente que conseguia, queria fazer uma boa figura para o seu companheiro. Virou-se e ficou a observá-lo. Ele era um grande macho prateado. Os seus olhos verdes, raros na sua espécie, fitavam-na com a mesma curiosidade que sentia. Começaram a andar um em torno do outro, observando-se mutuamente. Ele não era muito mais velho do que ela, teria mais cem anos no máximo. Ela queria tocar-lhe, falar-lhe mas não sabia o que dizer. Queria saber mais sobre ele. O seu coração batia mais depressa. O sangue nas suas veias fervia e não compreendia a razão. 

- Olá! Eu sou a Aluminir. E tu, quem és? – Perguntou ela, disfarçando o nervosismo. - Eu sou o Seneth.


Percepção - Túmulo 62 - Sara Farinha

Mark agachou-se atrás de um bloco de pedra massivo, no topo de um dos montes que delineava a zona aberta ao público do Vale dos Reis. Lá em baixo, o último grupo de turistas era encarreirado para um atrelado de metal branco com bancos de plástico amarelos, sem portas ou janelas, que os levaria de volta à recepção. 


Procurou um recanto com sombra onde pudesse sentar-se. Acabou encostado ao enorme calhau, de calças assentes na areia grossa, mais terra do que areia, que cobria todo o vale. Passou o antebraço pela testa, limpando o suor que se aglomerava, fechou os olhos e abriu os sentidos ao que o rodeava. Inspirou fundo, absorvendo o burburinho de sentimentos que pairava no Vale dos Reis. 

Um grupo bastante numeroso emitia a excitação da descoberta, o cansaço da viagem e a necessidade de saciar as necessidades mais básicas. Espalhados pelos recantos do Vale, um grupo de homens emitia outros sentimentos, alguns tão estranhos como o idioma que falavam. Raiva, aborrecimento, ganância e uma violência que nunca desapareciam por completo. Desde que Mark entrara no avião em Paris e desembarcara no aeroporto do Cairo, que um nojo quase palpável, permeava o ar. 

Fechou a mente o melhor que pôde, poupando as forças para o desafio pendente, e contou as várias assinaturas mentais que distinguia. À entrada dos túmulos visitáveis dos Faraós Egípcios, diversos guardas deambulavam pela paisagem árida, depois de emergirem do confinamento diário. Por baixo das suas túnicas de tons crus, diversas armas eram ocultadas dos estrangeiros, emanando uma presunção que só os que andam armados são possuidores. 

Carregar uma arma de fogo no Egipto era equivalente a calçar um par de sapatos em Nova Iorque. Não havia qualquer dúvida que os detectores de metais à entrada dos diversos pontos turísticos eram uma protecção podre que servia para criar uma cortina de medo constante, adensando a ansiedade nos turistas. 

A noite tardava a cair no deserto. Tapava devagar a claridade esbranquiçada, que quase cegava, com várias tonalidades rosadas, até as areias serem tomadas pelo breu indistinto. Mark esperou, procurando manter a cabeça baixa e o traseiro fora do radar dos guardas dos túmulos. 

Três guardas recolheram-se debaixo do telhado de madeira, que ladeava o túmulo de Ramsés IV, desenhado para proteger os visitantes do sol abrasador. Ao anoitecer a zona era limpa da escumalha estrangeira e os locais divertiam-se a murmurar histórias sobre os euros que arrancavam aos que eram separados dos grupos dentro dos túmulos. Não havia negociações que subsistissem num povo tão rico em cultura, mas tão rude nas suas vivências, pelo que Mark vira-se arrastado para um pequena expedição fora do conhecimento das autoridades. 

Esperou pela cobertura da noite, observando os homens de túnicas brancas reunirem-se na única estrutura de madeira que se assemelhava a uma casa. Composta por dois pisos, o telhado de chapa assentava em barrotes de madeira, sem qualquer parede que separasse o espaço do mundo exterior. A excepção eram duas salas, nos limites do piso térreo, pequenos abrigos que os protegiam das intempéries do deserto. 

Em breve os homens de vestes típicas foram enxotados pelos de uniforme castanho que guardavam o exterior. Mark observou-os abandonar o vale, deixando para trás alguns homens fardados. Voltou a sondar o local, deixando que as assinaturas mentais voltassem à sua consciência, e identificou seis pessoas nas imediações. 

Encoberto pela escuridão do deserto, deslizou pela colina íngreme, procurando manter-se silencioso. Abrigou-se ao lado do muro de pedra, que marcava a descida para o túmulo de Ramsés IV e esperou. Escondeu-se, durante o que lhe pareceu uma eternidade, agachado no sítio onde podia ver o caminho para o túmulo que era o seu destino final, o sessenta e dois. 

Dois guardas partiram a pé na direcção da saída do Vale, deixando os restantes abrigados dentro da cabana. Dali para a frente teria de fazer uso dos seus outros sentidos, relegando a visão para as brumas em que se encontrava. Enquanto os homens rezavam, desentorpeceu os músculos com cuidado, e preparou a investida. Aquilo que comprara estava a poucos passos de distância, a prova de que nem todas as escavações no Vale dos Reis eram de conhecimento público. 

Ao longe, os murmúrios distantes de uma mesquita forneciam a pausa que Mark ansiara. Em silêncio, deslocou-se pelo pátio de areia à sua frente, atento às assinaturas mentais daqueles que o rodeavam, ainda absortos nas suas rezas. 

Ao lado do pequeno portão de ferro, fechado a cadeado, uma placa de cor mostarda ostentava o número 62. Por cima, as letras Tomb of Tut Ankh Amun e os caracteres árabes anunciavam a túmulo do jovem faraó. Saltou por cima da barreira de metal e desceu as escadas, acobertando-se por baixo da placa de cimento branco que protegia a entrada. 

A escuridão era um manto frio que o isolava do exterior. Com todos os seus sentidos em alerta era impossível conter o temor que se alastrava. Era como se as paredes estivessem ensopadas em emoções poderosas. Emanadas pelas muitas pessoas, que por ali passavam todos os dias, e ajudada pela ambiência de mortos e dos seus corpos decadentes. Mark abanou a cabeça com vigor, esforçando-se por sair do turbilhão de pensamentos gélidos, retirou do bolso das calças uma pequena lanterna e dirigiu-se para o armário castanho que cobria uma das paredes. Tapou o foco da pequena lanterna, com a palma da mão, deixando escapar uma escassa luminosidade. Acocorou-se e apalpou o fundo da estrutura em madeira, que servia de bengaleiro, e vasculhou a fila mais próxima do chão. 

Colado ao painel traseiro da estante, num dos cantos inferiores, um pequeno tubo cilíndrico de metal esperava por ele. 

Vozes masculinas, o som de motores, e passos apressados ecoaram pelas dunas. Mark sentiu um choque de adrenalina a espalhar-se. A sua presença já não era segredo. 

Fez deslizar a lanterna de volta ao bolso e enfiou o cilindro num buraco no forro do casaco. De repente, foi invadido por uma pressão imensa entre os olhos, como uma dor de cabeça repentina. Esfregou a cana do nariz e resistiu a sondar o espaço. Algo empurrava a sua consciência, como um encontrão abrupto no meio dum corredor apinhado de gente. Expirou fundo, procurando controlar a vontade de ceder ao empurrão mental. 

Deslizou para as escadas que acediam ao portão e deitou-se de bruços, observando a confusão. Não conheciam a sua localização exacta, mas era óbvio que sabiam que ele estava ali, e com reforços de outro tipo. 

O edifício de madeira estava apinhado de guardas. Todos carregavam armas e tochas acesas. Um deles gritava ordens indiscerníveis, distraindo a multidão o suficiente para que Mark pudesse saltar o muro e aterrar na areia gelada. Rastejou dali para fora, tão inconspícuo como havia entrado, mas com dezenas de homens armados no seu encalço. Trepou uma das colinas e correu para a moto 4 estacionada nas imediações. 

A pressão dentro da sua cabeça aumentou. O seu perseguidor tentava apoderar-se e subjugar. Um poderoso empurrão mental e Mark sentiu os seus joelhos embater no cascalho, no segundo em que um projéctil roçava o ombro. 

A dor física arrancou-o do início da clausura e fê-lo recuperar um ténue controlo sobre a sua consciência. Precisava escapar. Reuniu dores e raiva, medo e confusão, e empurrou-as na direcção do seu adversário. Projectou no plano mental aquilo que o consumia no físico. Um grito lancinante emergiu sobre os ruídos da perseguição e Mark foi libertado dos grilhões mentais que o toldavam. 

Precipitou-se sobre a moto 4 e acelerou com fervor. As balas choviam na sua direcção, enquanto uma voz masculina ecoava pelo deserto. A distinta pronúncia americana bramia – Cobarde! Vais fugir para sempre? Com as fotografias em segurança e a meio caminho do rio Nilo, Mark constatou que não. Não iria fugir para sempre…



A Alvorada - Pedro Cipriano

A artilharia dos defensores rugiu mais uma vez, despejando a sua letal carga ao acaso. David sabia que os defensores já tinham perdido toda a esperança, São Petersburgo cairia dentro de algumas horas. A guerra mundial que já durava há oito anos e fora combatida nos seis continentes estava perto do fim. O conflito pelo maldito petróleo já reclamara quase meio bilião de vidas e felizmente nenhuma nação usara o seu arsenal nuclear. 

O interior do tanque tipo Roosevelt, por não estar equipado contra aquele nível de humidade, cheirava a mofo. Percorrer milhares de quilómetros naquela lata de sardinhas com um comandante com feitio difícil estava a dar cabo dos nervos a todos. 

– Alvo às quatro horas, a duas milhas – anunciou o comandante. 

A escuridão da noite nórdica obrigou David a procurar o alvo com os sensores térmicos. Era uma bateria anti-tanque, mas não havia nada a recear. 

O frágil equilíbrio entre as facções foi desfeito na maior batalha aérea da história da humanidade. Milhares de caças lutaram durante horas sobre a Europa de leste. Quando se silenciaram os céus, o domínio aéreo pertencia às forças Ocidentais. Era hora de preparar a invasão terrestre. 

Os radares foram destruídos pelos bombardeiros há um par de horas. Sem eles, os sistemas de defesa estavam cegos, mas nem por isso deixavam de disparar. A cidade resistira ao mais longo cerco da história durante na última guerra mundial, atestando a teimosia russa. 

Pediu uma munição explosiva e o sistema de ataque do blindado trancou o alvo. Ajustou as protecções dos ouvidos, inspirou e premiu o botão. Quando recuperou do estrondo do disparo, viu que a bateria estava irreparável. Nesse momento, os bombardeiros passaram por cima dos tanques destruindo a barricada mais à frente. 

– Avancem, estamos a pouco mais de três de milhas da Praça do Palácio. 

David estremeceu de excitação, pressentido que o fim da guerra estava próximo. Com a captura da praça central a resistência dos habitantes sofreria um duro golpe na moral. Dois soldados saíram de outro tanque para confirmar se a ponte estava armadilhada. Assim que se confirmou que estava limpa, o veículo de David avançou lentamente. Agarrou-se aos comandos com receio, detestava atravessar pontes. 

Pareceu passar uma eternidade até chegarem ao outro lado, numa avenida cujo nome começava por “Bo” e era seguindo por mais dez caracteres que não conseguia pronunciar. Os tanques seguiram pelas quatro faixas em direcção à Catedral. 

As ruas estavam desertas. Não se ouviam nem disparos nem explosões. Parecia que os russos tinham desistido de lutar. 

– Onde raio se meteram os russos? – ouviu pelo rádio com um sotaque fortemente alemão. 

Sorriu, pensando o quanto os alemães e os franceses estariam a apreciar a ironia do momento. 

– Daqui tenente Jarnot, acabámos de capturar a estátua do cavaleiro. Não há qualquer armadilha nem resistência neste sector. 

O anúncio foi seguido por outros semelhantes, os lugares simbólicos estavam a ser tomados sem resistência. Talvez a guerra estivesse perto do fim, pensou. 

Os blindados americanos pararam à entrada da praça. 

– Toda a gente lá para fora, temos de ver se não há minas – ordenou o comandante. 

À semelhança dos outros soldados, David cumpriu as ordens contrariado. Detestava sair da protecção dos doze centímetros de aço do blindado. Os atiradores furtivos eram o pesadelo de qualquer artilheiro. 

Encostado às lagartas, olhou em frente. A iluminação escassa da lua permitia distinguir os contornos do lugar. À excepção do monólito gigante protegido por sacos de areia, a praça parecia deserta. Não se viam capacetes a espreitar por cima dos sacos nem artilheiros nos canhões anti-blindado. 

– Olhem! – exclamou o condutor, apontando para ocidente. 

Uma luz brilhante tornou a noite em dia. Não se ouviu nenhuma explosão. David deixou-se cair no chão, percebendo logo o que acontecera. As lágrimas escorreram-lhe pela face. Nunca pensou chorar assim no fim deste maldito conflito. A imagem do seu filho e esposa vieram-lhe à memória, dava qualquer coisa para estar com eles. 

Na face dos seus compatriotas via-se a mesma consternação. Ao seu lado o comandante ria-se, quebrando o silêncio. 

Um pelotão de russos saiu de um edifício adjacente. Apontaram-se algumas armas, mas ninguém disparou. Os adversários fitaram-se mutuamente. Via-se igual resignação e cansaço em ambos os lados. 

– Não vale a pena – alguém gritou. 

Alguns soldados atiraram as armas para o chão e o exemplo foi seguido pelos restantes. Pedidos de desculpa foram lançados em várias línguas. O céu voltou a ficar iluminado. 

– E é assim que acaba! 

Os clarões sucediam-se com maior frequência e pareciam vir um pouco de todos os lados. A expressões de desolação transpareciam o destino que os esperava. Restavam-lhe minutos, ou talvez segundos. 

Caminhou para o russo mais próximo e num impulso abraçou-o. 

– Desculpa o que fiz ao teu país – disse-lhe e olhos do que fora o seu oponente mostraram-lhe que percebera a intenção. 

– Já não faz diferença – respondeu-lhe o russo, com um forte sotaque. 

Todos sabiam que assim era. 

David foi ofuscado por um clarão e sentiu-se arrastado por uma força imensa. Para ele, o mundo acabara.


A destilação do absurdo - Carlos Silva

Tal como todas as manhãs, Filipe Freire saiu cedo de casa, ainda o sol não raiava sobre Urbania. Debaixo de um dos braços, um banco dobrado, do outro, o farnel. Havia-se despedido da esposa com um beijo na testa e dos filhos a dormir com um olhar terno, para agora dar os bons dias à luz que penetrava entre os prédios. 

Sozinho, abraçado pelo frio da manhã, atravessou a cidade, recusando os serviços dos ensonados condutores dos riquexós a pedais, até chegar à borda, onde as ruas acabavam e o nevoeiro negro que rodeava a cidade começava. Abriu o banco e sentou-se de frente para as brumas e ficou a observá-las como sempre fazia. Observou como os farrapos de neblina negra rodopiavam e se entrelaçavam para de novo desaparecer na escuridão sem fim, reconhecendo os padrões que o tempo lhe havia ensinado. 

Estava para breve, mais para breve do que pensara. 

Eram aquelas brumas que davam a Urbania o epíteto de "a sempre em movimento", da "nunca igual", engolindo lenta e constantemente a parte velha da cidade, ao mesmo tempo que recuava no lado oposto, revelando novos arruamentos e edifícios à cidade. Eram aquelas brumas que absorviam a atenção de Filipe Freire durante horas as fios, revelando aos poucos os seus segredos, como uma mãe ciosa. No entanto, naquela manhã de inverno, a parede de neblina negra estava silenciosa, o que em si era um sinal para quem lhe conhece as manhas. 

Uma pequena folha emergiu das trevas, bailando no aragem, tentando Filipe a levantar-se do banco, mas este sabia que estava a ser testado. Teria de ser paciente se queria que a folha não voltasse a desaparecer, soprada por uma qualquer rajada oportuna. Fechou os olhos, concentrando-se no assobio do vento e assim ficou durante minutos, numa batalha de paciências que acabou por ganhar sob a forma do pousar lento da folha sobre o seu colo. Pegou nela, com os dedos brutos e levou-a ao olhar. Era uma folha de carvalho, crescida o suficiente para pertencer a uma árvore adulta. Filipe dobrou o banco, virou costas ao nevoeiro e rumou a casa, não sem antes lhe dizer: 

- Estava a ver que não, amigo. 

A família Freire era a melhor e mais antiga produtora do famoso licor de Urbania de nome Reductio Ad Absurdum. O processo, herdado dos seus antepassados, era secreto e só mesmo o chefe da família conhecia todos passos e ingredientes. A produção do licor era um negócio de família, empregando desde a mulher aos filhos, passando pelos tios e sobrinhos, cada um com uma tarefa vital na concepção da preciosa bebida. Nenhum pormenor era descurado, até as garrafas eram especiais. Tinham de ser de cristal, para não corromper os delicados aromas nelas contidos, e de tal esguia forma que os vapores não se escapassem mal se tirasse a rolha. Todavia, o que tornava o Ad Absurdum da família Freire tão especial era a frescura da selecção de flores destiladas a frio, de modo que apenas os aromas mais leves conseguissem escapar para o interior do néctar de outras tantas plantas que ninguém sabia quais. O trabalho de Filipe era montar guarda à muralha de brumas negras, perscrutando a sua escuridão o dia em que as flores iriam chegar. 

Quando o chefe de família chegou a casa, já todos os seus ocupantes estavam despertos, ocupando-se dos seus afazeres diários. A um canto da cozinha, a filha mais velha e a esposa picavam o gelo que iriam colocar sob o alambique; o filho varão preparava-se para sair, para ir buscar as garrafas que o tio tinha produzido no dia anterior; os dois filhos mais novos brincavam com os materiais que tinham sobrado da destilação anterior, atirando pétalas de rosa negra um ao outro, rindo-se como só as crianças conseguem. Assim que Filipe passou o umbral da porta, todos se levantaram expectantes. 

- Já, meu amor? Tão cedo? 

- Sim, até hoje à noite Urbania ganhará uma floresta. – respondeu Filipe, abraçando a mulher - Prepara os cestos. Amanhã por esta hora, Urbania terá o mais fino Ad Absurdum que alguma vez provou. 

Alegremente, a família atravessou a cidade, seguindo os passos de Filipe, balançando os cestos, rindo-se quando os ardinas anunciavam a notícia de última hora: Urbania iria ganhar uma floresta. Ao ouvirem as notícias, as lojas apressaram-se a encomendar toalhas de pique-nique, machados e espingardas de caça, de modo a satisfazer os novos desejos que certamente surgiriam assim que as primeiras árvores surgissem. Todos pareciam contentes com as novidades, com a excepção de um grupo de engenheiros da câmara, que tinham fé que as brumas fossem revelar um novo tribunal para compensar o velho que havia absorvido há um mês, obrigando-os a mudar as audiências para o auditório do palácio da presidência. 

Durante toda a tarde a família Freire vagueou pela floresta, avançando cada vez mais para o seu interior, à medida que as brumas a iam revelando, enchendo os cestos de plantas que iam esvaziando quando encontravam exemplares mais perfeitos. Ao surgir da lua no horizonte, todos regressaram a casa, excepto Filipe, e reuniram-se em torno do alambique, desfolhando as flores, largando as pétalas uma a uma para o interior do vaso de destilação. O chefe de família puxou do banco desdobrável e sentou-se em frente às brumas, quase não conseguindo distingui-las da escuridão em seu redor. Na destilaria, o filho mais velho começou a dar ao fole, fazendo o ar frio penetrar nas pétalas, arrastando os aromas, borbulhando-os no líquido açucarado que fazia o corpo do licor. As brumas quebraram o silêncio, falando uma vez mais com Filipe, contando-lhes o seus segredos. O licor foi mudando de cor, ganhando reflexos madrepérola, transformando-se aos poucos no Ad Absurdum tanto apreciado. Filipe semicerrou os olhos tentando discernir as imagens que as brumas lhe davam, reconhecendo nelas o passado e os futuros de Urbania embrulhados em indefinição. O filho primogénito suava em bica, castigando o fole sem tréguas até que toda a essência passasse da origem para o receptáculo. Filipe levantou-se e tropeçou numa raiz, caindo para lá das brumas. Quando se levanta, já não sabe se está em Urbania se dentro do nevoeiro negro. Lembra-se das histórias que lhe contaram sobre os que haviam entrado e nunca saído e a pele arrepia-se. Houve os gritos das criaturas que habitam a escuridão, reclamando pelo seu quinhão. Está dentro! Sem pensar na direcção, corre, confiando que longe daqueles sons terríveis está a sua casa. Este as mãos, mas não toca em nada. Está perdido. As criaturas aproximam-se cada vez mais. Os tendões gritam de dor e Filipe sabe que não pode parar de correr. Um a um, todos os elementos da família Freire vão dormir, encerrando o Ad Absurdum num enorme vaso de cristal à janela, onde poderá maturar à luz da lua. Sem acordar ninguém, ofegante, Filipe entra dentro de casa e vai para a cozinha, contemplar o trabalho que a sua família faz há gerações. Ignorando as regras que ele próprio instituíra, destapa o vasilhame e espreita para o seu reflexo no líquido estagnado. Não se reconhece. Não sabe a quem pertence aqueles olhos encovados e cara pálida sulcada de rugas. Conheceria melhor se fossem as brumas com que fala todos os dias. Seria muito mais familiar se fossem farripas de negrume. Ri-se. Ri-se descontroladamente até que as lágrimas lhe vêm aos olhos, rolando pelas faces, caindo dentro do licor. O último ingrediente secreto fora adicionado: as lágrimas de um homem louco.


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Apocalipse - A queda de Berlim - Pedro Pereira

O sol nascia no horizonte e afastava as sombras que cobriam as ruinas da metrópole. Tal como a maioria das cidades, Berlim não era mais do que um vislumbre daquilo que tinha sido. As ruas estavam desertas, repletas de escombros e carros abandonados. Eram ladeadas por edifícios desocupados e em risco de ruir, conferindo um ar fantasmagórico à cidade. Era a típica imagem de uma grande metrópole desde que os demónios tinham sido libertados no mundo dos humanos, reduzindo a civilização a cinzas… 

No topo de um dos edifícios devolutos, uma esbelta figura feminina, quase demasiado perfeita para parecer real, observava a paisagem. Leviatã passou os dedos pelos longos cabelos lisos de uma cor azul eletrizante. Aguardava pelo momento certo. As ordens do Senhor das Trevas tinham sido bem claras, tinha que tomar a cidade, criar uma distração para que Belphegor pudesse quebrar o véu entre dimensões. 

Um demónio abriu a porta que dava acesso ao telhado e encaminhou-se para a mulher. A criatura tinha a pele encarnada e dois chifres de bode na testa. A barba e o cabelo eram negros, tal como a armadura ou como o tufo de pelo no qual terminava a sua cauda. 

– Estás pronto? – questionou Leviatã na sua voz fria e sem emoção, muito antes de Belphegor a ter alcançado. 

– O cetro está pronto. Desde que mantenhas os humanos ocupados, eu e as minhas tropas tratamos do resto. 

– Nesse caso sugiro que te metas a caminho, o Reichstag fica do outro lado da cidade. E não te preocupes com os humanos. Eu ocupo-me deles. 

Sem aguardar resposta, Leviatã fechou os olhos e enviou o sinal telepático às suas tropas. 

Respondendo ao apelo da líder, centenas de demónios saíram das ruínas que os escondiam e invadiram as ruas da cidade. 

Leviatã deixou que os subordinados espalhassem o caos livremente. Não tardou que o objetivo fosse alcançado. As tropas humanas que patrulhavam as ruínas da cidade soaram o alarme. Desde o aparecimento dos Escolhidos que os humanos julgavam ser capazes de derrubar os demónios e recuperar o controlo do mundo. Leviatã não foi capaz de conter um sorriso de desdém. Não passavam de criaturas idiotas. Meros insetos prontos a serem esmagados por Lúcifer, o Senhor das Trevas. 

– Não devias estar com as tuas tropas a transportar o cetro? – questionou com irritação ao aperceber-se que Belphegor continuava a seu lado. 

– Sim, claro. 

Carrancudo, o demónio de pele encarnada abandonou o telhado, deixando a figura feminina a observar o caos gerado pelos lacaios. 

Pelas ruas já se podia ouvir o som dos disparos. As tropas alemãs estavam a retaliar. Vários tanques blindados acompanhados por soldados percorriam agora as ruas de Berlim. A rapidez da resposta não deixou de espantar Leviatã. Os humanos apresentavam agora um grau de coordenação que não possuíam há meses atrás. 

Um pouco mais à frente do edifício onde se encontrava, um tanque armado com lança-chamas e alguns soldados encurralaram um pequeno grupo de demónio num beco sem saída. Apanhados de surpresa, as criaturas foram carbonizada. 

Leviatã saltou do topo do edifício de cinco andares diretamente para o asfalto a rua. Focada no alvo, encaminhou-se a passo acelerado e convicto para o tanque. 

Os soldados que acompanhavam o veículo blindado deram o alerta. Leviatã ergueu as suas barreiras protetoras. Numa questão de segundos, começaram a voar balas em direção à esbelta mulher. Estas faziam ricochete nas defesas da demónio. Quem se julgavam aquelas criaturas para lhe ousarem fazer frente?! 

Leviatã esticou a mão direita em direção e lançou um raio de energia contra o veículo. 

A explosão do tanque matou três dos soldados humanos e projetou outros dois pelo ar. Apesar da queda violenta contra o asfalto, estes ainda se encontravam com vida. Movimentando-se com uma rapidez sobrenatural por entre os escombros, arrancou a cabeça de um dos sobreviventes com as próprias mãos quando este se tentava levantar. 

Uma expressão de terror apoderou-se do rosto do segundo sobrevivente. Não querendo tornar-se na próxima vítima, levantou-se atabalhoadamente e começou a correr. 

Leviatã apanhou uma barra de metal de entre os escombros e lançou-a em direção ao humano em fuga. O soldado caiu. A barra de metal trespassara-lhe o peito perfurando um dos pulmões. Aproximou-se do homem que jazia em convulsões. Com um sorriso no resto, colocou a bota em cima da cabeça da vítima e esmagou-lhe o crânio. 

Ficou parada por alguns instantes enquanto comtemplava com orgulho a matança. 

O som de dois aviões de combate a sobrevoar a cidade interrompeu a linha de pensamentos de Leviatã. Os humanos estavam a ficar cada vez mais atrevidos… 

Fechou os olhos e deixou que a transformação tivesse lugar. O seu corpo começou a contorcer-se e a mudar de forma. Também o seu volume aumentava a um ritmo frenético. Não foi capaz de conter os gritos de dor que aquela transformação lhe provocava. Seus ossos partiam-se em milhares de locais para assumirem uma nova forma. O corpo contorcia-se com as transformações e o crânio tomava uma forma achatada. 

A figura feminina assemelhava-se agora a uma gigantesca serpente alada, com um par de asas membranosas nas costas e quatro minúsculas patas que lhe saiam do ventre. A pele fora substituída por uma camada de escamas de um azul eletrizante, contrastando com os olhos de um violeta vivo. Com o seu tamanho atual, mal cabia na apertada rua. Na sua verdadeira forma ninguém ousava fazer frente a Leviatã. Chegara a hora de tomar Berlim e vergar as forças dos humanos…


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