Boa noite, Gonçalo
Com o beiço a tremer, Gonçalo
fitou os olhos marejados nos da mãe e depois mergulhou a cabeça entre os
joelhos dela abraçando-os.
- Porquê?
- Porque tem de ser, querido. –
Respondeu num tom doce. – Tens de ir dormir.
- Não quero!
A mãe ajoelhou-se, abraçou o
filho, que limpava as lágrimas fungosas ao cobertor, e fez-lhe uma festa no
cabelo. Tinha um lindo cabelo loiro como uma espiga de trigo, liso como seda,
completamente diferente da cor parda da cabeleira de ambos os pais. Por vezes,
Leonor esquecia-se que aquele rapaz não saíra do seu ventre infértil. Apertou-o
com mais força contra o peito e depois afastou-o pelos ombros. Já começara
também a chorar. Um grande erro. Como poderia agora manter a sua posição firme?
O apito do leitor de impressões
digitais anunciou a chegada do pai de Gonçalo. O som dos seus passos era
arrastado, derrotado. Surgiu, por fim, à porta da sala, onde a pequena criança
estava com a sua mãe, um homem que parecia carregar o peso do mundo. As
olheiras encovavam ainda mais o seu rosto chupado que se virou lentamente para
o filho adoptivo. Deixou-se cair sobre o sofá, largando a pasta pelo caminho
que ao cair no chão abriu-se, deixando cair a obsoleta e gasta prancheta
digital. Gonçalo apanhou-a e, com habilidade, ligou-a revelando a lista de
moradas à qual o seu pai batera naquele dia a suplicar por um emprego. Depressa
se fartou de juntar as letras e passou para um jogo de peças coloridas.
Leonor retornou da cozinha,
trazia um caldo quente parco em comida e sobejo em água. Pela segunda vez
naquele dia sorveu secretamente as lágrimas aproveitando o som do sorver do
caldo para abafar a acção. Odiava ter de ver o seu marido, um fabricante de órgãos
ex-vivo, a vaguear pela cidade o dia inteiro, a comparecer a inúmeras
entrevistas sem conseguir um lugar numa das empresas de biotecnologia do país.
Ela já vira idosos a correr, com pernas feitas pelo homem que amava. A
qualidade nunca estivera em causa, mas sim a sorte e oportunidade. Os ombros
descaídos de Manuel denunciavam a atitude que ganhara quando foi dispensado
para dar lugar a um amigo do filho do director da GenOrgan. Leonor sentia
saudades do brilho dos olhos, do sorriso rasgado, do beijo ao chegar a casa.
O sol de Julho começou a
transmutar-se para tons carmins, anunciando o final do dia.
- Mãe, por que é que está escuro?
- Porque está a ficar de noite,
amor.
- Não! – Protestou abanando a
cabeça, como fazia quando não o entendiam. - Liga a luz!
- A mãe e o pai já te explicaram.
Temos de poupar energia.
- Porque é que ele ainda não está
a dormir? – Murmurou Manuel.
- Estava a tentar convencê-lo,
sabes que é sempre melhor fazer as coisas a bem. – pegou no braço do filho –
Vá, vamos para o quarto! Vou contar até três. Um…
A criança levantou-se e foi a
correr para o quarto, não querendo esperar pelos seguintes algarismos que quase
sempre acabavam numa palmada ou castigo. O pai de Gonçalo encolheu os ombros e
continuou a sorver o caldo, analisando o horizonte, tentando-se abstrair da
aridez da casa. Haviam vendido quase toda a mobília e electrodomésticos quando
a crise económica se abateu. Tiveram azar, como sempre tinham em tudo na vida.
No momento em que a bolha financeira rebentou, Leonor havia-se despedido da
empresa de software para aceitar o lugar de professor que o Instituto Superior
Técnico lhe oferecia, mas que, quando se viram sem dinheiro, retiraram. Depois
seguiu-se a avalanche. O Gonçalo precisou de uma mão nova, o carro precisou de
uma bateria nova, obras no prédio, o despedimento de Manuel… O pai mergulhou a
cabeça nas mãos e deixou-se embalar pelo escuro que penetrava na casa. Se não
fosse pela sua mulher, há muito que tinha posto termo à vida.
Leonor deitou o filho na cama e
beijou-o na testa. Era tão lindo, tão perfeito. Desde que entrara na sala e o
vira a brincar com os outros iguais a si que decidiu que o iria adoptar. Não se
arrependera, apesar de todas as dificuldades que a decisão trouxera. Era uma
mãe feliz.
- Tem mesmo de ser? Eu não quero
dormir… - Choramingou Gonçalo.
- Temos de poupar energia, filho.
Se a mãe e o pai pudessem, também iam dormir.
- Quanto tempo vou dormir?
- Um ano…dois talvez…Até as
coisas melhorarem. Vais ver que passa num instante, não vais dar por nada.
Dito isto, Leonor pressionou o
pequeno painel na cabeceira da cama, revelando uma consola de controlo. Digitou
alguns números, marcando uma data e uma hora. Validou as instrucções com a sua
impressão digital.
- Obrigado por seres a minha mãe.
Até já.
A mãe, lutando contra a sua
vontade, tentando afogar as emoções no turbilhão que sentia no peito, apenas
disse “Desculpa” e carregou no botão, desligando o androide.
Abraça-me para Sempre 3/3 - Carla Ribeiro
O inimigo fez-se anunciar com
estrondos e luzes, à medida que as explosões e os disparos se reflectiam, cada
vez mais próximos, nos corredores do refúgio onde os vencidos esperavam. E, no
vazio da sua resignação, Aleks e Kari, perdidos nos braços um do outro,
derradeiro conforto a que podiam aspirar, quase podiam tocar o manto da
derradeira dama, a morte que caminhava nas brumas dos seus silêncios.
Como num pesadelo sem
escapatória, ouviram o ritmo apressado nos passos dos soldados invasores,
seguido do som de sucessivos disparos e, depois, dos gritos e gemidos dos que
se viam atingidos, das súplicas vãs dos que tentavam ainda sobreviver. A
misericórdia fora recusada. Não voltaria a ser oferecida, mas, ainda assim,
havia entre eles os que, em pleno massacre, tentavam apelar à clemência. Com os
clarões que iluminavam o refúgio, Aleks via, entre a figuração de um caos feito
de sangue e cadáveres, a máscara do pavor que tomara posse do rosto da irmã e, por
momentos, quase abençoou a sua cegueira por a poupar à tenebrosa visão que os
seus olhos alcançavam, que em breve os atingiria. Mas os outros sentidos
permitiam a Kari uma bem clara imagem do que ali se passava. Tal como o irmão,
também ela sentia o húmido toque dos salpicos de sangue quando os que mais
perto dela se encontravam eram destroçados pelas balas. Também ela sentia,
denso e repugnante, o cheiro da carne queimada a propagar-se pelo espaço. E,
como Aleks, também ela sentia nos lábios o sabor das dolorosas lágrimas que o
desespero fizera nascer nos seus olhos.
E depois veio a dor, como uma
carícia cruel desabrochando subitamente em mais pontos do seu corpo que os que
poderia contar. A vaga certeza de um gemido entrecortado na voz de Aleks,
fundido ao som que os seus próprios lábios haviam deixado fugir. E ainda o
tremor dos corpos, únicos um contra o outro na iminência da morte. Um novo
trovejar e novas flores de sangue abertas na carne dos moribundos. Um adeus sem
palavras. E, por fim, no eterno vácuo de uma morte inglória, a escuridão do
derradeiro desfalecimento. De dois cadáveres unidos por um abraço final. Na
vida e na morte. Para sempre.