Crónicas de Amarílis 2/3 - Sara Farinha


“A ausência de Caio é um pulsar doloroso dentro de mim. Não há dia em que não reflicta sobre as escolhas feitas e os seus resultados. Perdoa-me, meu irmão.” Excerto do diário de Ivan Fallon.

Caio traíra-o, entregara-o aos soldados de Amarílis, provando que os laços de sangue não eram nada quando comparados com uma vida de escravatura. A criança que antes o idolatrara era agora o adulto que o odiava. Despido do seu gládio e de qualquer outra arma, prostrado numa das cavernas de contenção de Amarílis, Ivan esperava a execução daquela que seria a sua sentença.
As celas de contenção de Amarílis, verdadeiras grutas escavadas no sopé da montanha, jaziam por baixo da cidadela. Amarílis em toda a sua glória era o pináculo da sua civilização e a magia uma entidade viva que pulsava em cada recanto. Fluindo livremente pelas paredes da sua prisão, era ela que continha os prisioneiros de forma eficaz, que os isolava dos habitantes do reino e que transformava a natureza das rochas. Rodeado pela magia que o gerara, esta era agora um instrumento usado contra si, disfarçadamente presente mas inutilizável.
Os resquícios do feitiço de contenção ainda viajavam pelas suas veias, a dor de cabeça uma entidade viva que o impedia de raciocinar livremente.
Entre murmúrios e barulhos indistintos, soavam vozes masculinas a pouca distância. Ivan, empurrando o chão com os pés descalços, lutou para manter o seu torso erguido enquanto tentava ignorar a dor dos golpes infligidos pelos guardas. A rocha mordia as suas omoplatas e a sua cabeça implorava por descanso quando viu que Caio o observava, a escassos centímetros da barreira de contenção azulada.
– Ivan… – Caio rosnou, como se provasse um amargo veneno.
Ivan contemplou o seu irmão mais novo notando que as cicatrizes que o marcavam, na noite anterior, eram agora invisíveis. O seu cabelo loiro brilhava à medida que Caio se mexia, envergava uma camisa branca entalada nas calças de pele castanhas e umas botas. Uma indumentária que não era parte do guarda-roupa de um preso de Amarílis, mesmo se fosse um prisioneiro especial, como era o caso de Caio.
– Espero que estejas tão miserável como pareces. – Caio continuou – Há quanto tempo…
– Sete anos e três meses, meu irmão. – Ivan retorquiu.
– Não! Há sete anos e três meses atrás eras meu irmão. Agora não és nada! 
– Eu devia ter lá estado… – Ivan murmurou, enfrentando o olhar frio do seu irmão mais novo.
– És um cobarde! Sempre foste. Tu mataste os meus pais! – Caio bramiu, de punhos cerrados e uma expressão deformada pelo ódio que sentia.
– Não. Mas foi como se o tivesse feito…
– Serás punido por isso. – Caio retorquiu, voltando-lhe as costas e desaparecendo no corredor de pedra.

Ivan imergiu num sono exausto após o que lhe pareceu horas de pensamentos dolorosos. Caio era agora um homem e a sua perspectiva do passado colocava Ivan onde ele nunca desejara estar, a enfrentar a raiva de um irmão abandonado.
A culpa que sentia pelo abandono da sua família, da criança que era do seu sangue e carne, consumira-o durante sete anos. Se tivesse regressado a Amarílis talvez Allure o tivesse executado e poupasse o seu irmão, talvez tivesse evitado uma vida que não era nada quando afastado da magia de Amarílis. Se tivesse regressado estaria agora em descanso, na companhia etérea da sua família.

A magia de contenção fluía fortemente, privando-o de recuperar a força física, a única que possuíra nos últimos anos. Quanto à sua mente… há muito que aprendera a lidar com a privação das forças mágicas que antes o sustinham. Amarílis era como uma mulher ciumenta, disposta a negar a sua força àqueles que a trocavam por outra, mesmo que eles fossem os legítimos herdeiros dos seus poderes.
A ausência de luz natural fizera-o perder a noção do tempo que permanecera aprisionado, a espera parecia uma agonia sem fim. O olhar frio e as palavras acusadoras de Caio permaneciam vívidos na sua mente. Há sete anos que ele repensava cada momento, cada dor, cada memória. E, apesar da dor de perder os seus pais ter sido imensa, fora a perda de Caio que o destroçara. A ideia de não voltar a falar com Caio aterrorizava-o. Ele precisava de… explicar.
Gritou a plenos pulmões, até lhe doer a garganta, até os guardas pararem de o espancar e comunicarem o seu pedido.

– O que me queres? – Caio questionou, de expressão enojada no rosto.
– O teu perdão. – Ivan declarou, mantendo-se de pé na frente do irmão por pura força de vontade. 
– Não muda nada.
– Muda tudo. Há sete anos que eu conheço o meu castigo caso voltasse a Amarílis por isso… não voltei. – Ivan iniciou, continuando após uma breve pausa – Não sei quantos dias permanecerei aqui…
– É isso que queres? Saber quanto tempo irás viver?! Era de esperar! – Caio gritou.
– Não. Peço-te que me oiças. É uma conversa, meros minutos, antes que eu saia da tua vida para sempre. Ouve-me… – Ivan clamou, os seus olhos azuis cobalto muito abertos, a testa a enrugar.
Caio enfrentou o olhar de Ivan, os seus lábios tornando-se numa fina linha enquanto os seus maxilares contraíam nervosamente.
– Eu saí de Amarílis umas semanas antes do ataque. O nosso pai queria acompanhar-me na viagem mas algo o prendia em casa, uns negócios que exigiam a sua presença… Parti para o Reino de Ambrosia onde os Farica me aguardavam. As notícias chegaram a Ambrosia nove dias depois do ataque… Amarílis inteira fora envolta numa redoma de contenção por isso as notícias demoraram a chegar.
– O Reino inteiro? Contido por magia? Impossível! – Caio cuspiu.
– Possível e real. Os Farica escoltaram-me de volta a Amarílis, mas a barreira era impenetrável, a magia demasiado forte para ser quebrada por um ataque. Eu escolhi ficar na Floresta de Amarílis quando todos os outros voltaram para Ambrosia… Não havia nada a fazer. Allure autoproclamara-se regente de Amarílis e quando o escudo em volta da cidade desapareceu já não havia pelo que lutar.
– Allure fez o que tinha de fazer para proteger Amarílis. – Caiu retorquiu, suavizando a sua expressão.
–Allure apossou-se de Amarílis. Reclamou-a sem direito. Não sobrara ninguém na linha de sucessão. Eu era o único herdeiro legal, com idade e detentor de direitos de sangue e magia sobre o trono de Amarílis. O próximo a morrer se ousasse voltar e tu… eras prisioneiro de Allure.

– Oiço o meu nome mas não vejo a vénia que lhe é devida. – A voz de Allure soou antes de surgir perante a cela de Ivan.
– Por ti não me curvo. – Ivan rosnou.
Allure ostentava um meio sorriso, o desdém visível nos seus lábios. Ivan deu um passo em frente, até sentir a energia azul da parede de contenção esticar a sua pele e electrizar os seus músculos. Mais um passo e seria reclamado pela inconsciência de uma descarga de magia pura.
O ódio que sentia por Allure cegava-o, seria tão fácil enrolar as suas mãos naquele pescoço esguio e pálido e apertar até que os seus olhos pretos saltassem das órbitas e a coroa dourada tombasse do alto dos seus cabelos ruivos.
– Meu amor, que mentiras te conta este traidor? – Allure sussurrou, envolvendo a sua mão na de Caio.
Continua…





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