O Primeiro Voo - Liliana Novais
O coração de Aluminir batia acelerado. Aquele seria o seu primeiro voo sem a companhia dos pais. A ideia da independência excitava-a e amedrontava-a de igual modo. Aquele era o maior acontecimento da sua vida, pelo menos até aquele momento. O sangue corria-lhe quente pelas veias e os primeiros raios de sol da manhã faziam as escamas prateadas brilharem. Estendeu as asas e com apenas um impulso elevou-se no ar com a ajuda das correntes ascendentes.
Pela primeira vez na curta vida sentia-se completamente livre e queria apenas explorar os seus limites. Elevou-se cada vez mais, subindo acima dos cumes das montanhas Farlan, a enorme cordilheira norte de Ahelanae. Subiu bem acima dos pássaros, deixando de os ver. A sua respiração tornou-se pesada e difícil, como se tivesse um peso a contrair-lhe os pulmões. Nem mesmo assim desistiu, prosseguiu com a subida. A visão começou a ficar turva e o ar que entrava nos seus pulmões não era suficiente.Perdeu os sentidos. Aluminir caía descontroladamente, aproximando-se cada vez mais depressa do solo. O chão estava ameaçadoramente próximo. Finalmente abriu os olhos. Teve apenas tempo de reagir e raspar na encosta de um dos picos mais altos, arrastando várias pedras. Sentiu-as a cortar a pele. Uivou de dor quando uma pedra embateu numa das asas. As suas garras raspavam na encosta, numa tentativa de abrandar, mas não conseguia agarrar-se e continuava a embater contra a parede da montanha. Finalmente conseguiu fincar as patas traseiras e abrandar a queda, acabando por se imobilizar.
Suspirou, nunca mais faria o mesmo. Aprendera com o erro, quase perdera a vida.
Esticou a asa.Sentia uma pontada de dor mas era suportável, felizmente não a tinha partido. Retomou o voo. Teria de ser mais cautelosa. Apenas queria sentir o vento sob as asas. Sobrevoou as montanhas em direcção à Floresta de Holvar. Acompanhou os pássaros, voando ao seu lado, pairando sob os altos picos. Fazia corridas com as velozes águias Tiran, as quais tinham metade do seu tamanho. Ria-se. Entendera, finalmente, o significado de ser livre, de poder voar. Estava feliz.
Uma sombra tapou-lhe o sol. Assustada, olhou para cima. Um segundo dragão prateado surgiu no céu. Aluminir não estava à espera de companhia no seu primeiro voo.
Iniciaram numa graciosa dança alada,como se duma corte se tratasse. Faziam piruetas, voos rasantes, em torno um do outro. Aluminir não queria admitir, mas estava a divertir-se com aquele dragão desconhecido. Estava curiosa, sem contar com os seus pais, nunca vira outro dragão. Queria falar com ele, conhecê-lo melhor.
Ela olhou para baixo, já não estavam sob as montanhas, a verdejante floresta estendia-se agora por baixo deles. À frente, um enorme lago alongava-se, o lago Tadal. Ela começou a descer em direcção a este. O outro dragão entendeu e seguiu-a.
Aluminir tentou aterrar o mais graciosamente que conseguia, queria fazer uma boa figura para o seu companheiro. Virou-se e ficou a observá-lo. Ele era um grande macho prateado. Os seus olhos verdes, raros na sua espécie, fitavam-na com a mesma curiosidade que sentia. Começaram a andar um em torno do outro, observando-se mutuamente. Ele não era muito mais velho do que ela, teria mais cem anos no máximo. Ela queria tocar-lhe, falar-lhe mas não sabia o que dizer. Queria saber mais sobre ele. O seu coração batia mais depressa. O sangue nas suas veias fervia e não compreendia a razão.
- Olá! Eu sou a Aluminir. E tu, quem és? – Perguntou ela, disfarçando o nervosismo. - Eu sou o Seneth.
Percepção - Túmulo 62 - Sara Farinha
Mark agachou-se atrás de um bloco de pedra massivo, no topo de um dos montes que delineava a zona aberta ao público do Vale dos Reis. Lá em baixo, o último grupo de turistas era encarreirado para um atrelado de metal branco com bancos de plástico amarelos, sem portas ou janelas, que os levaria de volta à recepção.
Procurou um recanto com sombra onde pudesse sentar-se. Acabou encostado ao enorme calhau, de calças assentes na areia grossa, mais terra do que areia, que cobria todo o vale. Passou o antebraço pela testa, limpando o suor que se aglomerava, fechou os olhos e abriu os sentidos ao que o rodeava. Inspirou fundo, absorvendo o burburinho de sentimentos que pairava no Vale dos Reis.
Um grupo bastante numeroso emitia a excitação da descoberta, o cansaço da viagem e a necessidade de saciar as necessidades mais básicas. Espalhados pelos recantos do Vale, um grupo de homens emitia outros sentimentos, alguns tão estranhos como o idioma que falavam. Raiva, aborrecimento, ganância e uma violência que nunca desapareciam por completo. Desde que Mark entrara no avião em Paris e desembarcara no aeroporto do Cairo, que um nojo quase palpável, permeava o ar.
Fechou a mente o melhor que pôde, poupando as forças para o desafio pendente, e contou as várias assinaturas mentais que distinguia. À entrada dos túmulos visitáveis dos Faraós Egípcios, diversos guardas deambulavam pela paisagem árida, depois de emergirem do confinamento diário. Por baixo das suas túnicas de tons crus, diversas armas eram ocultadas dos estrangeiros, emanando uma presunção que só os que andam armados são possuidores.
Carregar uma arma de fogo no Egipto era equivalente a calçar um par de sapatos em Nova Iorque. Não havia qualquer dúvida que os detectores de metais à entrada dos diversos pontos turísticos eram uma protecção podre que servia para criar uma cortina de medo constante, adensando a ansiedade nos turistas.
A noite tardava a cair no deserto. Tapava devagar a claridade esbranquiçada, que quase cegava, com várias tonalidades rosadas, até as areias serem tomadas pelo breu indistinto. Mark esperou, procurando manter a cabeça baixa e o traseiro fora do radar dos guardas dos túmulos.
Três guardas recolheram-se debaixo do telhado de madeira, que ladeava o túmulo de Ramsés IV, desenhado para proteger os visitantes do sol abrasador. Ao anoitecer a zona era limpa da escumalha estrangeira e os locais divertiam-se a murmurar histórias sobre os euros que arrancavam aos que eram separados dos grupos dentro dos túmulos. Não havia negociações que subsistissem num povo tão rico em cultura, mas tão rude nas suas vivências, pelo que Mark vira-se arrastado para um pequena expedição fora do conhecimento das autoridades.
Esperou pela cobertura da noite, observando os homens de túnicas brancas reunirem-se na única estrutura de madeira que se assemelhava a uma casa. Composta por dois pisos, o telhado de chapa assentava em barrotes de madeira, sem qualquer parede que separasse o espaço do mundo exterior. A excepção eram duas salas, nos limites do piso térreo, pequenos abrigos que os protegiam das intempéries do deserto.
Em breve os homens de vestes típicas foram enxotados pelos de uniforme castanho que guardavam o exterior. Mark observou-os abandonar o vale, deixando para trás alguns homens fardados. Voltou a sondar o local, deixando que as assinaturas mentais voltassem à sua consciência, e identificou seis pessoas nas imediações.
Encoberto pela escuridão do deserto, deslizou pela colina íngreme, procurando manter-se silencioso. Abrigou-se ao lado do muro de pedra, que marcava a descida para o túmulo de Ramsés IV e esperou. Escondeu-se, durante o que lhe pareceu uma eternidade, agachado no sítio onde podia ver o caminho para o túmulo que era o seu destino final, o sessenta e dois.
Dois guardas partiram a pé na direcção da saída do Vale, deixando os restantes abrigados dentro da cabana. Dali para a frente teria de fazer uso dos seus outros sentidos, relegando a visão para as brumas em que se encontrava. Enquanto os homens rezavam, desentorpeceu os músculos com cuidado, e preparou a investida. Aquilo que comprara estava a poucos passos de distância, a prova de que nem todas as escavações no Vale dos Reis eram de conhecimento público.
Ao longe, os murmúrios distantes de uma mesquita forneciam a pausa que Mark ansiara. Em silêncio, deslocou-se pelo pátio de areia à sua frente, atento às assinaturas mentais daqueles que o rodeavam, ainda absortos nas suas rezas.
Ao lado do pequeno portão de ferro, fechado a cadeado, uma placa de cor mostarda ostentava o número 62. Por cima, as letras Tomb of Tut Ankh Amun e os caracteres árabes anunciavam a túmulo do jovem faraó. Saltou por cima da barreira de metal e desceu as escadas, acobertando-se por baixo da placa de cimento branco que protegia a entrada.
A escuridão era um manto frio que o isolava do exterior. Com todos os seus sentidos em alerta era impossível conter o temor que se alastrava. Era como se as paredes estivessem ensopadas em emoções poderosas. Emanadas pelas muitas pessoas, que por ali passavam todos os dias, e ajudada pela ambiência de mortos e dos seus corpos decadentes. Mark abanou a cabeça com vigor, esforçando-se por sair do turbilhão de pensamentos gélidos, retirou do bolso das calças uma pequena lanterna e dirigiu-se para o armário castanho que cobria uma das paredes. Tapou o foco da pequena lanterna, com a palma da mão, deixando escapar uma escassa luminosidade. Acocorou-se e apalpou o fundo da estrutura em madeira, que servia de bengaleiro, e vasculhou a fila mais próxima do chão.
Colado ao painel traseiro da estante, num dos cantos inferiores, um pequeno tubo cilíndrico de metal esperava por ele.
Vozes masculinas, o som de motores, e passos apressados ecoaram pelas dunas. Mark sentiu um choque de adrenalina a espalhar-se. A sua presença já não era segredo.
Fez deslizar a lanterna de volta ao bolso e enfiou o cilindro num buraco no forro do casaco. De repente, foi invadido por uma pressão imensa entre os olhos, como uma dor de cabeça repentina. Esfregou a cana do nariz e resistiu a sondar o espaço. Algo empurrava a sua consciência, como um encontrão abrupto no meio dum corredor apinhado de gente. Expirou fundo, procurando controlar a vontade de ceder ao empurrão mental.
Deslizou para as escadas que acediam ao portão e deitou-se de bruços, observando a confusão. Não conheciam a sua localização exacta, mas era óbvio que sabiam que ele estava ali, e com reforços de outro tipo.
O edifício de madeira estava apinhado de guardas. Todos carregavam armas e tochas acesas. Um deles gritava ordens indiscerníveis, distraindo a multidão o suficiente para que Mark pudesse saltar o muro e aterrar na areia gelada. Rastejou dali para fora, tão inconspícuo como havia entrado, mas com dezenas de homens armados no seu encalço. Trepou uma das colinas e correu para a moto 4 estacionada nas imediações.
A pressão dentro da sua cabeça aumentou. O seu perseguidor tentava apoderar-se e subjugar. Um poderoso empurrão mental e Mark sentiu os seus joelhos embater no cascalho, no segundo em que um projéctil roçava o ombro.
A dor física arrancou-o do início da clausura e fê-lo recuperar um ténue controlo sobre a sua consciência. Precisava escapar. Reuniu dores e raiva, medo e confusão, e empurrou-as na direcção do seu adversário. Projectou no plano mental aquilo que o consumia no físico. Um grito lancinante emergiu sobre os ruídos da perseguição e Mark foi libertado dos grilhões mentais que o toldavam.
Precipitou-se sobre a moto 4 e acelerou com fervor. As balas choviam na sua direcção, enquanto uma voz masculina ecoava pelo deserto. A distinta pronúncia americana bramia – Cobarde! Vais fugir para sempre? Com as fotografias em segurança e a meio caminho do rio Nilo, Mark constatou que não. Não iria fugir para sempre…