Percepção - Túmulo 62 - Sara Farinha

Mark agachou-se atrás de um bloco de pedra massivo, no topo de um dos montes que delineava a zona aberta ao público do Vale dos Reis. Lá em baixo, o último grupo de turistas era encarreirado para um atrelado de metal branco com bancos de plástico amarelos, sem portas ou janelas, que os levaria de volta à recepção. 


Procurou um recanto com sombra onde pudesse sentar-se. Acabou encostado ao enorme calhau, de calças assentes na areia grossa, mais terra do que areia, que cobria todo o vale. Passou o antebraço pela testa, limpando o suor que se aglomerava, fechou os olhos e abriu os sentidos ao que o rodeava. Inspirou fundo, absorvendo o burburinho de sentimentos que pairava no Vale dos Reis. 

Um grupo bastante numeroso emitia a excitação da descoberta, o cansaço da viagem e a necessidade de saciar as necessidades mais básicas. Espalhados pelos recantos do Vale, um grupo de homens emitia outros sentimentos, alguns tão estranhos como o idioma que falavam. Raiva, aborrecimento, ganância e uma violência que nunca desapareciam por completo. Desde que Mark entrara no avião em Paris e desembarcara no aeroporto do Cairo, que um nojo quase palpável, permeava o ar. 

Fechou a mente o melhor que pôde, poupando as forças para o desafio pendente, e contou as várias assinaturas mentais que distinguia. À entrada dos túmulos visitáveis dos Faraós Egípcios, diversos guardas deambulavam pela paisagem árida, depois de emergirem do confinamento diário. Por baixo das suas túnicas de tons crus, diversas armas eram ocultadas dos estrangeiros, emanando uma presunção que só os que andam armados são possuidores. 

Carregar uma arma de fogo no Egipto era equivalente a calçar um par de sapatos em Nova Iorque. Não havia qualquer dúvida que os detectores de metais à entrada dos diversos pontos turísticos eram uma protecção podre que servia para criar uma cortina de medo constante, adensando a ansiedade nos turistas. 

A noite tardava a cair no deserto. Tapava devagar a claridade esbranquiçada, que quase cegava, com várias tonalidades rosadas, até as areias serem tomadas pelo breu indistinto. Mark esperou, procurando manter a cabeça baixa e o traseiro fora do radar dos guardas dos túmulos. 

Três guardas recolheram-se debaixo do telhado de madeira, que ladeava o túmulo de Ramsés IV, desenhado para proteger os visitantes do sol abrasador. Ao anoitecer a zona era limpa da escumalha estrangeira e os locais divertiam-se a murmurar histórias sobre os euros que arrancavam aos que eram separados dos grupos dentro dos túmulos. Não havia negociações que subsistissem num povo tão rico em cultura, mas tão rude nas suas vivências, pelo que Mark vira-se arrastado para um pequena expedição fora do conhecimento das autoridades. 

Esperou pela cobertura da noite, observando os homens de túnicas brancas reunirem-se na única estrutura de madeira que se assemelhava a uma casa. Composta por dois pisos, o telhado de chapa assentava em barrotes de madeira, sem qualquer parede que separasse o espaço do mundo exterior. A excepção eram duas salas, nos limites do piso térreo, pequenos abrigos que os protegiam das intempéries do deserto. 

Em breve os homens de vestes típicas foram enxotados pelos de uniforme castanho que guardavam o exterior. Mark observou-os abandonar o vale, deixando para trás alguns homens fardados. Voltou a sondar o local, deixando que as assinaturas mentais voltassem à sua consciência, e identificou seis pessoas nas imediações. 

Encoberto pela escuridão do deserto, deslizou pela colina íngreme, procurando manter-se silencioso. Abrigou-se ao lado do muro de pedra, que marcava a descida para o túmulo de Ramsés IV e esperou. Escondeu-se, durante o que lhe pareceu uma eternidade, agachado no sítio onde podia ver o caminho para o túmulo que era o seu destino final, o sessenta e dois. 

Dois guardas partiram a pé na direcção da saída do Vale, deixando os restantes abrigados dentro da cabana. Dali para a frente teria de fazer uso dos seus outros sentidos, relegando a visão para as brumas em que se encontrava. Enquanto os homens rezavam, desentorpeceu os músculos com cuidado, e preparou a investida. Aquilo que comprara estava a poucos passos de distância, a prova de que nem todas as escavações no Vale dos Reis eram de conhecimento público. 

Ao longe, os murmúrios distantes de uma mesquita forneciam a pausa que Mark ansiara. Em silêncio, deslocou-se pelo pátio de areia à sua frente, atento às assinaturas mentais daqueles que o rodeavam, ainda absortos nas suas rezas. 

Ao lado do pequeno portão de ferro, fechado a cadeado, uma placa de cor mostarda ostentava o número 62. Por cima, as letras Tomb of Tut Ankh Amun e os caracteres árabes anunciavam a túmulo do jovem faraó. Saltou por cima da barreira de metal e desceu as escadas, acobertando-se por baixo da placa de cimento branco que protegia a entrada. 

A escuridão era um manto frio que o isolava do exterior. Com todos os seus sentidos em alerta era impossível conter o temor que se alastrava. Era como se as paredes estivessem ensopadas em emoções poderosas. Emanadas pelas muitas pessoas, que por ali passavam todos os dias, e ajudada pela ambiência de mortos e dos seus corpos decadentes. Mark abanou a cabeça com vigor, esforçando-se por sair do turbilhão de pensamentos gélidos, retirou do bolso das calças uma pequena lanterna e dirigiu-se para o armário castanho que cobria uma das paredes. Tapou o foco da pequena lanterna, com a palma da mão, deixando escapar uma escassa luminosidade. Acocorou-se e apalpou o fundo da estrutura em madeira, que servia de bengaleiro, e vasculhou a fila mais próxima do chão. 

Colado ao painel traseiro da estante, num dos cantos inferiores, um pequeno tubo cilíndrico de metal esperava por ele. 

Vozes masculinas, o som de motores, e passos apressados ecoaram pelas dunas. Mark sentiu um choque de adrenalina a espalhar-se. A sua presença já não era segredo. 

Fez deslizar a lanterna de volta ao bolso e enfiou o cilindro num buraco no forro do casaco. De repente, foi invadido por uma pressão imensa entre os olhos, como uma dor de cabeça repentina. Esfregou a cana do nariz e resistiu a sondar o espaço. Algo empurrava a sua consciência, como um encontrão abrupto no meio dum corredor apinhado de gente. Expirou fundo, procurando controlar a vontade de ceder ao empurrão mental. 

Deslizou para as escadas que acediam ao portão e deitou-se de bruços, observando a confusão. Não conheciam a sua localização exacta, mas era óbvio que sabiam que ele estava ali, e com reforços de outro tipo. 

O edifício de madeira estava apinhado de guardas. Todos carregavam armas e tochas acesas. Um deles gritava ordens indiscerníveis, distraindo a multidão o suficiente para que Mark pudesse saltar o muro e aterrar na areia gelada. Rastejou dali para fora, tão inconspícuo como havia entrado, mas com dezenas de homens armados no seu encalço. Trepou uma das colinas e correu para a moto 4 estacionada nas imediações. 

A pressão dentro da sua cabeça aumentou. O seu perseguidor tentava apoderar-se e subjugar. Um poderoso empurrão mental e Mark sentiu os seus joelhos embater no cascalho, no segundo em que um projéctil roçava o ombro. 

A dor física arrancou-o do início da clausura e fê-lo recuperar um ténue controlo sobre a sua consciência. Precisava escapar. Reuniu dores e raiva, medo e confusão, e empurrou-as na direcção do seu adversário. Projectou no plano mental aquilo que o consumia no físico. Um grito lancinante emergiu sobre os ruídos da perseguição e Mark foi libertado dos grilhões mentais que o toldavam. 

Precipitou-se sobre a moto 4 e acelerou com fervor. As balas choviam na sua direcção, enquanto uma voz masculina ecoava pelo deserto. A distinta pronúncia americana bramia – Cobarde! Vais fugir para sempre? Com as fotografias em segurança e a meio caminho do rio Nilo, Mark constatou que não. Não iria fugir para sempre…



7 comentários:

Inês Montenegro disse...

Comparando com outros contos que li, julgo que a tua escrita está a melhorar, não recorrendo tanto a floreados desnecessários e um exagero de purple prose.
No entanto ainda há alguns pontos a salientar. A frase inicial parece-me demasiado comprida, especialmente por se tratar da frase com que começas o conto, logo, o primeiro contacto que o leitor tem com o texto.
Há algumas falhas por distracção ou mesmo falta de conhecimento, por exemplo, detectores de metal em espaços turísticos é algo extremamente comum hoje em dia na grande maioria dos países, logo não vejo porquê que haveria de causar medo e apreensão. Outro exemplo que salta à vista é os egípcios a comentarem sobre os euros que roubaram aos turistas, quando o euro não é a moeda do Egipto, e as pessoas fazem o câmbio para a moeda dos países que visitam ou antes de ir, ou logo à chegada.
"O seu perseguidor tentava apoderar-se e subjugar" Posso estar em erro, mas o pretendido seria "apoderar-se da sua mente/dele" ("apoderar-se" exige um complemento) e "subjugá-lo"?

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Gostei de algumas descrições, contudo, senti que, devido a isso, o conto engonhou um pouco ao princípio.
No fim, fiquei com uma sensação algo vazia, talvez por não conhecer o universo da história, nem o móbil das personagens.

Anónimo disse...

Agradeço os comentários. Quanto às sugestões de melhoria serão tomadas em conta, num próximo texto, claro.
Inês, alguns esclarecimentos. Estive no local que descrevo, assim como em alguns outros no Egipto. Adorei visitar aquele país, é uma realidade tão diferente da nossa e, por isso, escolhi alguns pormenores que só quem o visitou (antes da queda de Mubarak) conhece. No Egipto só troquei dinheiro uma vez porque eles preferiam euros e quase tudo foi pago em Euros. O euro é mais valioso que a moeda deles (e trouxe comigo quase todo o dinheiro que troquei e fiz uma bela colecção de libras egípcias, que são lindas!). Detectores de metais no meio do deserto, onde só existem pedras e areia e pouco mais, pareceu-me um pouco excessivo, mas lá é uma realidade. Guardas armados que intimidavam os turistas era procedimento normal, aliás a imagem deste conto foi tirada dentro de um túmulo (acho que foi do Ramsés III) em circunstâncias que não gostei particularmente e que teria evitado se tivesse sido possível, assim como outros episódios do género. É um país lindo, tão diferente e instável (como ficou provado com as notícias após a queda de Mubarak). Barreiras policiais no meio do deserto e escolta policial armada, a quem pagávamos para sermos protegidos enquanto viajávamos, também era prática corrente. Como vês, uma realidade bem diferente da nossa :-)

Inês Montenegro disse...

De facto, houve óbvias mudanças entre a minha visita ao Egipto e a tua, que suponho então ser mais recente.

Olinda Gil disse...

Gostei muito da sugestão de que possa haver descobertas no Egipto desconhecidas do grande público!

Repetes muitas vezes expressões referentes ao poder mental da personagem. A partir do momento em que o leitor sabe q ele tem poderes, tens de aligeirar essas expressões, arranjar modo de dar a conhecer ao leitor que ele as está a usar sem teres de estar sempre a dizer "assinaturas mentais" e outras expressões.

Guiomar Ricardo disse...

Gostei muito,talvez porque o Egipto sempre me fascinou.Estava de viagem marcada quando se deu a primeira revolta,queria visitar as Pirâmides antes do seu fecho ao público.
Penso k as criticas construtivas aqui deixadas ajudaram a evoluir na sua escrita,pois parece-me ter forte potencialidade de se afirmar.

Joel-G-Gomes disse...

Muita acção, bem escrito, mas senti-me um pouco perdido em relação ao personagem principal e suas motivações. Parte dessa situação deve-se ao facto de esta história fazer parte de um universo maior que eu desconheço por completo. Dá para perceber mais ou menos o que se passa NESTA história, mas sinto que algumas referências extra (sem spoilers) poderiam ter ajudado um pouco.
Posso dizer que fiquei curioso em relação à história principal de onde esta deriva. O que é bom.

Enviar um comentário