Corpo, Alma e Coração (caridade) – Carina Portugal

O ribombar de um trovão tomou os céus e a terra, e a página voltou-se por si só. Também esta causou um estrondo que me fez estremecer, o mesmo que faria o bater de pedra contra pedra. No entanto, o livro era feito com pouco mais do que papel. 

Engoli em seco, ao ver um traço de luz percorrer os arabescos que nunca aprendera a ler. Retorcia-lhes a tinta, esmagava-os, mutava-os a seu belo prazer, exibindo crueldade. Dentro da minha cabeça, as letras gritavam de dor e pânico, desejando saltar do papel enquanto se contorciam. Ou seria só um reflexo do ribombar do trovão? 

Quando o traço atingiu o fim da última linha, outro estrondo abalou o Templo da Vida, ameaçando a segurança das colunas de suporte. As tochas que cercavam a sala extinguiram-se em simultâneo. Fiquei sem enxergar por segundos, até os olhos se habituarem ao luar que entrava pelos recortes do tecto, criando todo um jogo de luz e sombras. 

O solo oscilou sob os meus pés. Os vermes que se escondiam dos olhares dos predadores guincharam, apesar de não terem voz, e fugiram dos interstícios que os ameaçavam esmagar nas suas próprias casas. Com um impulso de vida imprevisto, nasceram à superfície, por entre as lajes carcomidas pelo tempo, qual plantas daninhas. Um desses bichos emergiu por entre os meus dedos dos pés. Saltei e recuei vários passos, sem largar o livro. E outra página voltou-se. 

Do que supus serem as cabeças dos vermes, ramificaram-se múltiplos membros que se alongaram numa altura acima da cintura de qualquer humano de estatura média. Ninguém os via, porém estavam lá, implantados nas extremidades: receptores sensoriais que buscavam alimento, farejando cada partícula de ar para rapidamente absorver as que lhes interessavam. Seguiam o trilho sensorial, sem hesitações. E eu próprio não compreendia como o conseguia perceber. 

A última página voltou-se, e o livro encerrou-se com um estrondo que ecoou até nos ossos. 

Aos meus olhos pareceu tudo tão lento, mas na verdade não demoraram mais do que um instante de segundo. Os bichos precipitarem-se sobre os sacrifícios. Com rostos que exibiam sorrisos idiotas, fora-lhes roubado o medo, o egoísmo, qualquer instinto de sobrevivência; quase tudo fora arrancado de raiz, deixando para trás somente bondade, generosidade… caridade cega. 

Dos membros tentaculares brotaram múltiplas pequenas mandíbulas que perfuraram e se afundaram nos corpos. Os gritos toldaram o ar com a sua intensidade, enquanto as entranhas lhes eram sugadas. 

Não podiam fugir, pois tinham sido atados às pedras de sacrifício que pejavam o templo. No entanto, se tivessem essa possibilidade, também não o fariam, porque o único desejo que se lhe implantara na mente ficava honrado em alimentar os Vermes do Mundo com tudo o que tinham. 

Não demorou muito até, sobre os altares, sobrarem somente órgãos pulsantes. Um fio muito ténue erguia-se dos corações, ligando-os a uma forma espectral, qual cordão umbilical. Eram almas, ainda ligadas à vida. 

Já vira imagens delas, desenhadas em livros antigos, porém nunca acreditara na sua existência. Lembravam alguém que passara por todas as prostrações do mundo. As cavidades oculares vazias eram tão profundas quanto fossas abissais; o fantasma de uma boca semi-aberta mexia-se como quem quer falar; e o que antes fora a pele do corpo repuxava-se, revelando o contorno das costelas através das quais se via o outro lado da sala. 

Engoli em seco e dei novamente outro passo à retaguarda. Com o pé descalço, esmaguei parte do corpo de uma daquelas coisas, arrancando-lhe um guincho, não tanto de dor, mas de ultraje. Vários tentáculos voltaram-se para mim, exibindo as mandíbulas das quais pingava sangue. Desperdício. Aqueles vermes malditos desperdiçavam resquícios das vidas que lhes tinham sido oferecidas. 

Foi então que o livro estremeceu nas minhas mãos. Os dedos não se mexeram quando tentei largá-lo e, do seu interior, a linha de luz precipitou-se de entre as páginas para a minha mão esquerda, cauterizando a pele enquanto subia pelo interior da manga. 

– Larga-me! – ordenei, bracejando compulsivamente. – Sai de mim, demónio! 

Por entre o tecido negro da túnica, um fumo impregnado com fedor a pele queimada rodeou-me. Contorci o corpo selvaticamente, ao tentar livrar-me daquilo, acabando por tombar para trás. Quase não senti o impacto, e os gemidos que soltava eram todos devido à queimadura que agora me subia pelo pescoço, trepava para o rosto, e parava mesmo junto ao olho, desvanecendo-se. 

Fiquei muito quieto, com os tentáculos debruçados sobre mim. Pareciam aguardar outro sinal, enquanto uma pergunta óbvia me pairava na mente: porque razão não me atacariam, como tinham feito com os outros humanos? 

O corpo ardia-me de dor e calor, e o suor começava a manchar-me a roupa. Inspirei e expirei, pensando em cada movimento. Só não pensei no bater do coração, porque o meu facilmente era abafado pelos que, estranhamente, pulsavam ainda sobre os altares. 

Levantei-me um pouco a medo, tentando não tocar nos tentáculos que me seguiam os movimentos. Como reflexo da minha deslocação, as almas contorceram-se e levaram as mãos a elas próprias. Crisparam os dedos translúcidos no corpo e começaram a arrancar pedaços de si, num ataque compulsivo. As zonas arrancadas ganhavam uma estranha densidade que as impedia de levitar e caiam, sendo devoradas sem demora. 

Quando nada mais havia para arrancar, o cordão que as ligava ao coração desapareceu, e eu estremeci de medo. No meu rosto, a luz renasceu devagar, o calor intensificando-se e entranhando-se na carne. 

– Não… tira-a de mim, tira! – gritei, batendo com o livro na cara, esperando que este apagasse a luz, ou a recolhesse no seu conteúdo amaldiçoado. 

De nada me valeu. A luz queimou-me o olho e infiltrou-se por detrás do globo ocular, incendiando-me os nervos ópticos num trilho que a levou até ao cérebro. E se eu já pensara sentir uma dor excruciante, nada me preparara para a sensação que me fulminou. Um fogo invisível imolou-me o corpo, consumindo cada órgão vital, cada membro, até me transformar completamente em cinzas, ou quase. Deixei de ver, contudo, do que conseguia sentir, ainda tinha corpo. A consciência comprimia-se num invólucro apertado e a única forma de me mover era rastejando. Por isso rastejei. Escondi-me numa daquelas fendas entre as lajes e procurei um interstício onde me abrigar dos predadores. Era assim que o instinto me comandava. Agora o verme era eu, a aguardar por devorar aqueles que tinham só caridade. 

Sob os altares, como reflexo do último movimento da Luz, os corações liquefizeram-se e foram absorvidos pela pedra, numa entrega total de si mesmos ao Mundo. 

E eu sorvi esse fertilizante que era vida.


1 comentários:

Vitor Frazão disse...

Apesar de gostar da imagem criada (na minha mente visiono-a como parte de um video-clip de metal) caridade não é a primeiro sentimento que lhe associo, apesar da conclusão. Fora isso, acho-o um bom conto.

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