In:
Bicho Cidrão
,
Fantasy and Co.
,
Vitor Frazão
Bicho Cidrão – A natureza do bicho 5/5 – Vitor Frazão
-
Não é possível! – exclamou Costa, olhando freneticamente em redor, numa
incaracterística quebra de compostura
-
Só que é – retaliou Silva baixando-se junto ou corpo de Figueiredo, sujando os
joelhos no sangue misturado do camarada e do bicho Cidrão. – Pensei que lhe tinhas
acertado na tola.
-
Estava demasiado longe e tive medo que ele se mexesse. Escolhi o alvo maior – confessou,
mal conseguindo engolir o embaraço. Em sua defesa, nunca acreditara que ele
conseguisse sobreviver ao tiro de caçadeira nas costas e à queda. O que seria
aquela coisa? – Da próxima não cometerei o mesmo erro.
-
Ele está a sangrar bastante – indicou o colega, coçando o bigode ao olhar de
soslaio para o óbvio rasto de sangue do Oculto ferido. – O quer que seja, não
regenera muito depressa.
-
Óptimo – comentou a líder, recuperando a habitual frieza e seguindo o rasto sem
hesitação. – Silva, de que é que estás à espera?
O
Obliterador continuava ajoelhado ao lado do camarada tombado, parecendo mais
preocupado em tapar-lhe o rosto e murmurar uma prece sobre o cadáver do que em
dar qualquer sinal de pretender seguir a líder. Havia algo no cenário que para
ele não fazia sentido. O corpo de Pedro estava desfeito, mas não tanto quando
devia estar com uma queda daquela altura…
-
Devíamos levá-lo – sentenciou, erguendo-se.
- Figueiredo? Ele pode esperar mais
uns minutos.
-
Mas nós não. A noite está a fugir-nos. Será difícil levar o corpo e ainda
desactivar o resto as armadilhas antes do amanhecer, ainda por cima com um
operativo a menos. Deixemo-lo sangrar mais um bocado.
-
E correr o risco de ele recuperar? Nem pensar – recusou, não entendendo a
relutância do subordinado, nem se preocupando em descobrir o motivo. – Vamos.
-
Os locais sabem que estamos aqui, se não limparmos esta porcaria quanto antes corremos
o risco de despertar demasiadas atenções quando descermos – lembrou, usando o
protocolo para justificar a sua decisão, embora a verdade fosse muito menos linear.
– A única coisa mais importante que limpar o mundo de Ocultos é manter o
segredo da sua existência. Figueiredo sabia isso. Esperava o mesmo de ti.
-
Aceito o risco – afirmou, mal contendo a frustração. – Não faz sentido
deixarmos isto a meio quando estamos tão perto.
-
Seja, boa sorte. Eu vou fazer o meu dever – declarou, virando as costas e
voltando a baixar-se diante do cadáver, pensando na melhor e mais discreta
maneira de o transportar.
-
Quê?! Silva, tu vens comigo, é uma ordem.
-
Não – respondeu, sem se dar ao trabalho de olhar para trás. – Se tens problemas
com isso queixa-te ao tenente. Tenho a certeza que ele concordará comigo, que
retirar é a opção mais sensata.
-
Tu vens comigo, senão… – ameaçou, avançando e colocando-lhe a mão no colarinho.
-
Senão o quê? Dás-me um tiro das costas? – desafiou, olhando por cima do ombro
sem esconder a fúria e o desprezo. – E depois quem usarias como isco, Marisa?
O
rosto da Obliteradora transformou-se numa disforme máscara de raiva. Por
momento, Silva pensou que ela, de facto, iria dar-lhe um tiro nas costas, mas
acabou apenas por lhe virar as suas, soltando com a língua um estalido de
indiferença. Ao afastar-se ainda ladrou umas ordens, numa tentativa de salvar o
orgulho ferido. Uma parte dele queria tentar convencê-la a não ir, contudo,
sabia que não adiantaria.
***
Localização:
Montado do Cidrão, Curral de Freiras, Câmara de Lobos, Madeira, Portugal
Alvo:
Bicho Cidrão
Espécie:
Indeterminada
Estado:
Obliterado
Joaquim Silva não teve quaisquer
escrúpulos em mentir no relatório. Sabia que se um dia a verdade fosse descoberta,
que o bicho Cidrão continuava vivo, na melhor das hipóteses, a sua reputação
seria arruinada ou, muito mais provável, eliminá-lo-iam. Na verdade, não havia
ninguém para contrariar o seu relatório. Pedro e Marisa estavam mortos.
Encontrara-a três dias depois de se separarem. O estado do corpo indicava que
dera uma queda violenta e que alguém tentara assisti-la, não sendo capaz de
reparar os massivos danos internos.
Apesar de não poder dizer que sentiria
a falta dela ou que não tivera o destino que merecia, sofreu a sua perda, como
a de qualquer outro camarada. Morte, independentemente de quem fosse a vítima,
era para ele sempre um motivo de tristeza.
Mais do que permitir que um Oculto
vivesse, o que por si só já era um acto hediondo, Silva estava a protegê-lo. A
sociedade secreta militar em que ele e os camaradas foram criados acreditava
que o mundo devia ser purgado de todas as aberrações sobrenaturais, por
inofensivos e insignificantes que alguns fossem, para proteger a humanidade. Contrariamente
ao que podia parecer, não perdera a fé em tal filosofia, só que, mais do que
purificar o mundo de monstros, fora educado para acreditar que viviam para
aniquilar o Mal e, o quer que o bicho Cidrão fosse, não era malévolo. Se o
fosse teria tentado salvar Pedro, tanto agarrando-o no desfiladeiro, como
protegendo-o com o próprio corpo durante a queda? Ou tratado das feridas de
Marisa?
Agora, o experiente Obliterador
acreditava que seu pai não se limitara a sair de mãos vazias da última campanha
no montado do Cidrão, antes foram confrontado com a mesma realidade e chegara a
igual conclusão, que, com tantos e tão horríveis monstros a assombrar os cantos
escuros do mundo, os recursos da organização tinham melhores locais onde serem
gastos do que a caçar a uma infeliz criatura, que apenas queria ser deixada em
paz para choramingar.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentários:
Gostei bastante do conto Vitor! Parabéns!
A Calheta é também um sitio que tem lugares realmente inspiradores para escrever sobre lobisomens como por exemplo os Prazeres, a Raposeira, a Maloeira...nas noites de lua cheia que venho da casa do meu namorado fico toda arrepiada! Penso sempre que a qualquer momento vai saltar um deles do meio das árvores para cima do meu carro! :)
Enviar um comentário