Eternas Palavras 2/2 - Pedro Cipriano
A discussão começou na manhã seguinte, ainda antes do pequeno-almoço.
– Tu és louco! Queres desgraçar-nos a todos! – acusou a mulher roliça de meia-idade, num tom mais agudo do que os seus ouvidos podiam suportar.
Ele olhara-a espantado através da porta da casa-de-banho.
– Olha que tu não te faças desentendido, carago! Porque é que trouxeste um livro proibido para casa? – prosseguiu Cidália, aproximando-se de Rui e baixando o tom.
– Não sei! – balbuciou, sem conseguir continuar a barbear-se.
– Como não sabes? Eu é que não sei! Tu nem sequer gostas de ler!
– Foi um impulso! – defendeu-se, encolhendo os ombros.
– E por causa dum impulso metes a família toda em perigo?
– Não pensei nisso...
– Tu nunca pensas em nada. Digo-te mais, o livro aqui em casa é que não fica.
– Mas...
– Não há mas nem meio mas, carago! Para casa com o livro é que não voltas.
– Como é que me vou livrar dele? Não posso simplesmente colocá-lo no lixo...
– Arranja-te! É o teu problema! – sentenciou a esposa, virando-lhe as costas.
***
Rui arrastava-se por entre a multidão. Era a hora de ponta matinal e o livro ainda estava na sua mala. Antes de sair, olhara para ele com um estranho sentimento de nostalgia. Era o “Viagens na Minha Terra” de Almeida Garrett. Nunca o tinha lido, nem tinha vontade de o fazer. Só não conseguia suportar a ideia de que iria ser destruído.
Aquele governo começava a oprimi-lo. Por causa da guerra tivera de abandonar o seu curso de engenharia. Servira duas vezes na linha do Mondego, primeiro contra os Franceses e depois contra os Lusitanos. A única recompensa que recebera fora um partido único e autoritário, permanentemente no poder.
De súbito, recebeu um encontrão violento e desequilibrou-se. Arrastou-se inclinado para a esquerda até cair num buraco.
– Cuidado, carago! – alguém gritou.
Rui tentava colocar-se de pé quando vários metros de terra se precipitaram sobre ele. De imediato perdeu os sentidos.
***
A primeira coisa que lhe ocorreu quando voltou a si foi a surpresa de ainda estar vivo. Estava coberto de lama até à cintura e a têmpora esquerda doía-lhe. Uma jovem enfermeira prestava-lhe auxílio no passeio e vários curiosos observavam.
Num instante de clareza, lembrou-se do livro e procurou pela mala. O nervosismo cresceu ao perceber que não estava com ele. Sabia que se caíra nas mãos de alguma autoridade ou bufo estava perdido. Constatou que talvez tivesse sido melhor ser enterrado vivo.
– Olha, a minha mala? – perguntou à trigueirinha de cabelos encaracolados.
– Qual mala? – inquiriu a enfermeira, piscando os olhos.
– Eu tinha uma mala comigo! – exaltou-se, levantando-se.
– Não sei de nada! E você vai ficar quieto até o médico chegar.
Mais vale enterrado que queimado, repetiu para si mesmo para se acalmar. Pelo menos ainda poderia ser encontrado mais tarde.
Pouco depois chegou o médico. Devido ao seu estado, Rui acabou por ser transportado para o hospital. Deveria permanecer internado até à manhã seguinte para observações.
Ao fim da tarde chegaram os agentes da PSI. Ambos vestiam fatos coçados pela idade e tinham óculos do período pré-guerra. As gravatas de cores díspares completavam o conjunto que duas décadas antes seria ridículo. Contudo, naquele momento, eram o pior pesadelo de Rui.
– Senhor Mendes, precisamos de falar consigo.
Forçou um sorriso. Achava que fora demasiado ingénuo ao pensar que poderia escapar. Porventura se confessasse de livre vontade, a pena não fosse tão pesada, assumiu desalentado. Ergueu a face e fitou -os. Enfrentaria o destino com dignidade.
– Nós achamos que o que lhe aconteceu não foi um acidente. Achamos que as suas funções como queimador de livros tiveram bastante relevância neste caso. Provavelmente você foi alvo de um atentado, mas pode ficar descansado que iremos encontrar o culpado e castigá-lo.
Rui respirou de alívio, tornara-se um rebelde sem querer.
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3 comentários:
Gostei muito do conto, mas vejo que o podes desenvolver muito mais
Obrigado pela opinião. Na revista Lusitânia número 1 esta outro conto do mesmo universo que explica outras vertentes desta sociedade.
Pedro Cipriano tem algo que eu aprecio muito: boa parte das suas histórias passam-se no mesmo universo, ou seja, é possível personagens transitarem de uma narrativa para a outra, variando o seu grau de importância. Faz-me lembrar o universo dos comics. Eu próprio já o fiz (no meu primeiro livro, um dos personagens secundários é um dos protagonistas da minha primeira curta-metragem).
Inserido no mesmo universo de 'A Passagem Uivante', publicado no volume 1 da Lusitânia (leiam, que vale a pena), 'Eternas Palavras' é um conto que transpira desconfiança, tensão e chibaria. A comparação com o Farenheit é inevitável, embora nem de longe se deva considerar uma cópia, antes uma cuidada homenagem.
Haveria espaço, na minha opinião, para uma terceira parte, ou mais. Porém, sendo esta história uma parcela de outra maior, não ponho de parte que o autor tenha mais cenários planeados.
O pior mesmo é o facto deste tema nunca sair de moda.
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