A Menina que não gostava de Doces - Carina Portugal


Os risos saltavam pelas ruas, enquanto as crianças corriam de porta em porta. De chapéu pontiagudo no topo da cabeça, um pouco de banda, vestido negro cheio de remendos e um gato inerte pendurado no ombro, Emma correu até à casa mais próxima. A mão que segurava o saco enfeitado com morcegos agarrava também o chapéu de bruxa para não o perder pelo caminho.
Por fim, parou junto a uma grande casa, cujo jardim fora repleto de abóboras de expressões luminosas. Fez-lhes um aceno quando parou no alpendre para ganhar fôlego, apoiada no cabo da vassoura. Todas elas eram suas amigas e, de vez em quando, tinham conversas muito entusiásticas.
Respirou fundo para ganhar coragem, e só depois bateu à porta. Esperou nervosamente, sem que as bochechas perdessem o rubor. Era a primeira vez que a mãe a deixava ir festejar o Halloween pelas ruas.
Com um chiar arrastado, a porta abriu-se, e uma senhora velhota sorriu-lhe.
‒ Doce ou travessura?! ‒ perguntou Emma, meia atrapalhada.
‒ Já não estou nova para travessuras, minha querida, por isso vão ser doces. Onde estão os teus amigos?
‒ Estão no seu jardim, e no meu ombro, e na minha cabeça... – respondeu Emma enquanto, desiludida, observava a velhota a vasculhar dentro do avental. Tirou de lá uma mão cheia de rebuçados, deixando-os cair no saco. Emma recolheu-o e mirou o interior. ‒ Mas isto faz mal aos dentes...
A senhora ficou estupefacta.
‒ Pois faz, e é por isso que tens de os lavar muito bem.
A menina abanou a cabeça, muito céptica.
‒ Obrigada ‒ disse, antes de descer os três degraus, ainda a mirar o interior do saco. Aquilo não estava nada certo.
Quando ouviu a porta a fechar-se atrás de si, meteu a mão dentro do saco e tirou os doces todos, atirando-os às abóboras. Uma delas deu um salto súbito para apanhar um bombom no ar, fechando a boca  recortada num sorriso. Enquanto mastigava a guloseima, os olhos saltavam faíscas de contentamento.
‒ Bom proveito – desejou Emma, antes de ir visitar a próxima casa. Se lhe voltassem a dar doces, teria de tomar medidas drásticas.
Quando bateu à porta, recebeu uma resposta tão imediata que a fez dar um salto.
“Não mora aqui ninguém! Vão-se embora pirralhos do demónio!”
Emma abriu muito os olhos.
‒ Ouviste, Tchaikovsky? – mirou o gato pendurado seu ombro. – Esta casa está assombrada. Não te preocupes, espectro do outro mundo! Não te chateamos mais! Vai ter com os teus amigos ao cemitério, ouvi dizer que estão a fazer por lá um banquete à base de almas de rábano, cenoura e alface. Claro que é um banquete vegetariano – comentou, ajeitando de novo o chapéu. – Se não gostares de almas de vegetais, podes sempre socializar. Bem, feliz dia das pessoas como eu!
Enquanto ela se ia embora com um sorriso nos lábios, uma das cortinas da casa moveu-se e um homem espreitou-a, de cenho franzido.
“As crianças de hoje em dia dizem com cada coisa…” pensou para si, antes de voltar para o seu comando da consola, acabando por descobrir que o seu personagem estava a ser devorado por meia dúzia de zombies.
Emma aventurou-se então por mais quatro ou cinco casas, ficando cada vez mais desolada. Quando, ao chegar à sétima casa, lhe ofereceram um monte de chocolates em forma de morcego, as suas bochechas coraram muito de irritação.
‒ Vou transformar-vos todos em sapos! – declarou. – Alguém tem de deter esta maldição dos doces!
A senhora que lhe deu os morcegos limitou-se a rir, achando a bruxinha muito engraçada, antes de lhe fechar a porta na cara.
‒ Viste, Arquimedes? A senhora má não acreditou!
Como resposta, ouviu-se um coaxar vindo de dentro do chapéu.
Num passo de corrida, Emma saltou os degraus do alpendre e precipitou-se para a rua cheia de mascarados. Parou só uma ou duas vezes, para ganhar fôlego, quando a respiração lhe picava os pulmões. Depois, enveredou por uma rua mais escura, sempre a subir, ladeada de árvores que lhe tentavam roubar o chapéu ao esticar os ramos mais finos e quase desnudos.
‒ Quietos – ordenou a menina, dando-lhes com a vassoura.
Com a advertência, os ramos retraíram-se um pouco.
Cerca de quinze minutos tinham passado, quando Emma alcançou os portões escuros do cemitério. Ao pé dela, lembravam enormes gigantes de ferro, austeros.
Empurrando-os ligeiramente, a menina esgueirou-se através da fresta criada. Passou por reuniões entre esqueletos e corpos já semi-comidos pelos vermes; pela tal festa vegetariana de almas do outro mundo, e por um bêbedo que, tal como ela, achava aquelas aparições perfeitamente normais.
Escolheu uma campa de laje tumular larga, e reuniu alguns gravetos que dispôs estrategicamente, de tal forma que formavam um pentagrama.
De expressão muito séria, Emma arregaçou as mangas e estendeu ambas as mãos à sua frente.
‒ Arde – ordenou com firmeza. Um fio de fumo elevou-se da madeira, mas não mais do que isso. – Eu disse ARDE!
Com um estalido de aviso, os ramos inflamaram-se… para se apagarem três segundos depois. Emma insuflou as bochechas.
‒ Tchaikovsky! Porque é que os ramos não me obedecem?
No seu ombro, o gato que estivera inerte durante todo aquele tempo, ergueu a cabeça e mirou-a. Piscou os olhos amarelos de brilho perspicaz, que pareciam esconder enigmas de outro mundo.
‒ Miau…
Emma franziu as sobrancelhas.
‒ Não fales gatês, por favor.
Um rosnar leve e um tossicar fizeram o gato estremecer e levar uma pata à boca, para disfarçar os ruídos.
‒ As palavras da menina Emma carecem de sensibilidade. A aura que habita o símbolo precisa de um tom mais… carinhoso – explicou.
‒ É isso mesmo, meu! – Um esqueleto desengonçado aproximou-se deles, de cigarro preso entre os dentes amarelos. Levou uma mão ao peito descarnado. – O coração que não tem palpita qual refém do jugo do sentir.
Emma lançou-lhe uma mirada de lado e não comentou. Só lhe calhavam malucos na rifa. Respirou fundo para serenar um pouco, antes de voltar a esticar os braços.
‒ Podias arder, por favor, querido pentagramazinho?
Nada aconteceu durante longos segundos em que só se ouviam as conversas dos convivas que por ali se espalhavam. Até que cada um dos ramos se tornou incandescente, fazendo a madeira estalar na noite. Cinco línguas de fogo ergueram-se de cada uma das pontas do pentagrama, e enrolaram-se sobre si como serpentes, apertando-se até se fundirem numa só labareda.
Com um sorriso de contentamento, Emma tirou o chapéu, descobrindo o pequeno sapo que repousava sobre os seus cabelos que, à luz do fogo, pareciam ainda mais ruivos. O esqueleto tirou-lhe o chapéu da mão e pô-lo sobre o próprio crânio sujo de terra, sem que a criança contestasse.
Cuidadosamente, Emma segurou no sapo e estendeu-o à sua frente.
‒ É a tua vez, Arquimedes. – Tossicou para afinar a voz, antes de começar a recitar:

Ossos de morcego negro,
Sangue de salamandra pantanal,
Vísceras do morto que desenterro,
Escondido no meu quintal,
Inspirem-se neste sapo
Para esta noite ser a tal
Em que os adultos dos doces
Se transformam num igual!

As chamas cresceram numa explosão de luz e estenderam duas línguas compridas e serpenteantes até Arquimedes que observava o feitiço, de olhos esbugalhados. Emma impediu que ele fugisse, segurando-o muito bem entre as mãos. O fogo examinou-lhe o corpo húmido, sem o queimar, e depois recuou ao pentagrama, acabando por se extinguir sem mais delongas. O fumo que se elevava dos gravetos carbonizados era tudo o que restava do feitiço executado.
‒ Bem, problema resolvido, já não há distribuição massiva de doces – declarou Emma, toda contente, voltando a pôr o sapo em cima da cabeça. – Dá-me o chapéu.
Lançou um olhar ao esqueleto que se encostara a uma pedra tumular alta.
‒ Qual chapéu? – perguntou ele, fazendo-se de desentendido, enquanto o ajeitava. – Bem, tenham uma boa noite.
Afastou-se a correr de forma desengonçada, sem mais palavras, levando na cabeça o que não era dele.
‒ Hey, ladrão! – exclamou Emma, correndo atrás dele. Numa mão segurava Arquimedes para que ele não caísse, na outra empunhava a vassoura, tentando espancar o esqueleto com ela.
Enquanto isso, lá em baixo na vila, sempre que as crianças batiam à porta de alguma casa escutava-se uma nova sinfonia: o coaxar de inúmeros de sapos.


1 comentários:

rui alex disse...

um conto de muito encanto, gostei imenso de ler :)

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