Crónicas Obscuras: Dança do Corvo (4/8) – No fio da lâmina – Vitor Frazão
Os dedos magros, sólidos e providos de garras da mão direita de Hayato mantém-se em redor do punho da katana, que nem ao ser arremessado largou, a sua expressão de ave de rapina tão acutilante como o gume da ancestral lâmina. A pele vermelha é coberta por um quimono cinzento, folgado, de tecido barato, com aberturas nas costas para as asas, e por uma tanga larga, diante da qual se encontra um grande pedaço de tecido rectangular que se alonga até aos joelhos, no qual está pintado o kanji para corvo, o emblema do seu esquadrão. No solo, as suas asas, com penas negras e brancas, parecem desgrenhadas, velhas e decadentes, tendo uma penugem mais própria para um espanador do que para um nobre tengu, porém, no ar são transformadas pela graciosidade de um voo capaz de fazer cisnes parecerem desajeitados.
- Kenji-kun treinou-te bem, Eleanora-chan – elogia o ancião, tenso apesar do tratamento informal. O seu rosto vermelho, ladeado por orelhas bicudas, era iluminado pelo luar, enquanto os guerreiros em redor se mantinham na escuridão.
- Akio-sensei foi apenas um de muitos cuja sabedoria abençoou esta humilde estudante, Hayato-sama – afirma, fazendo uma respeitosa vénia, sem tirar os olhos do yokai ou embainhar a espada, bem consciente da proximidade de Shou e da letal lâmina curva da naginata dividida. – As suas bondosas palavras honram-me e às suas ilustres casas.
- Agrada-me saber que ensinar o seu estouvado avô não foi tempo perdido – confessa, flectindo as asas com aparente indiferença. – Contudo, desde os dias que Ichimaru-kun subiu a montanha em busca da sabedoria tengu na arte da espada, que ninguém da sua honrada casa conseguiu voar tão alto.
- Não tenho o privilégio de pertencer a tão nobre casa – alega, compreendendo bem o rumo da conversa e o que estava em causa, mesmo sem estar segura do resultado. Hayato era um guerreiro nobre e sábio, mas também orgulhoso e, pelo que constava, a idade tornara-o temperamental e instável.
- O que não te impediu de não só derrotar, como poupar um velho tolo – acusa o ancião, amargura bem patente na voz.
Aí reside o cerne da questão. Os guerreiros de Hayato vivem por um conjunto regras de conduta reduzidas em número, mas abrangentes em efeito, entre as quais tomam primazia a honra, a abnegação perante a morte e a ferocidade em combate. A arte da guerra era levada muito a sério e, mesmo em sessões de treino como aquela, cada ataque era feito com intento de matar. Embora os guerreiros mais jovens, como Shou, ainda tivessem dificuldade em abraçar a noção, a morte de um camarada de armas, mesmo às mãos de um aliado, por algo tão banal como um treino, não era motivo para tristeza, raiva ou culpa, pois a preparação para a batalha tomava precedente face a tudo o resto. Vida era insignificante perante a honra. O facto de Eleanora não só ter conseguido vencer Hayato, como tido o sangue frio para, em pleno ataque, golpeá-lo com o lado rombo da katana e não com o gume, provava a sua superioridade a um ponto que o mestre consideraria humilhante. Um guerreiro orgulhoso como o velho tengu preferiria a honra do golpe fatal, à clemência e agora, mantendo-se diante dela, em digno silêncio, exigia saber o porquê da atitude. No ver da vampira, qualquer que fosse a sua resposta, só poderiam existir dois possíveis resultados, Hayato insistiria no combate, pretendendo limpar a humilhação com sangue, qualquer que fosse a sua fonte, ou dar-lhe-ia a honra de requerer a sua ajuda durante o ritual de seppuku. Embora não desejasse decapitá-lo enquanto ele se esventrava, também não arriscaria ofendê-lo ainda mais recusando. Não desejava a morte do velho tengu… A única esperança residia nas suas palavras poderem criar uma terceira alternativa.
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