Crónicas Obscuras: Dança do Corvo (3/8) – A queda – Vitor Frazão
Shou pisca os olhos e o combate entre a vampira e velho tengu termina, tão rápido que apenas os danos provam que ocorreu de todo. Um braço é decepado por entre uma nuvem de sangue, convertendo-se em osso e depois em pó antes de cair no chão, sofrendo numa fracção de segundo a decomposição que lhe fora negada durante séculos pelos poderes da filha da noite. O sangue no coto estanca quase de imediato, enquanto os farrapos ensanguentados da manga esvoaçam em redor. Regenerando perante o olhar de todos, uma linha vermelha rasga a garganta de Eleanora de lado a lado, indicando que o fim não estivera longe, contudo, é o seu inimigo que jaz a vários metros de distância, arremessado pelo impacto do golpe.
- Sensei!
- Hayato-sama!
Aflitos, os yokai voadores confluem sobre o mestre caído, ignorando a adversária. Apenas Shou, o mais novo, solta um clamor de fúria e dor, lançando-se sobre Eleanora, num suicida voo picado, naginata em punho. A vampira mal tem tempo de se voltar para enfrentar a investida, antes de ser abalroada. Os adversários rebolam pelo chão, por entre folhas secas e poeira. Quando se afastam, preparando o ataque seguinte, a arma do tengu está cortada ao meio e a filha da noite é obrigada a regenerar outra ferida no pescoço. Mais dois ou três centímetros teria sofrido uma decapitação e com ela a derradeira morte…
Sem perder tempo, o tengu atira as asas de penas castanhas em frente, utilizando-as como uma espécie de capa para cobrir as mãos e os fragmentos da arma dividida. A técnica visava esconder a direcção do ataque que executaria com as armas improvisadas, estratégia que não funcionaria tão bem contra alguém que podia ver sangue através de objectos sólidos…
Shou prepara-se, Eleanora segura a katana com firmeza, usando apenas uma mão, posicionando-a num ângulo em que o seu próprio corpo a esconde do adversário, e lançam-se um sobre o outro.
- PAREM!
O grito em japonês que ecoa pela noite não é um apelo desesperado, mas uma ordem férrea, proferida por uma voz habituada a ser obedecida. Sem magia para além da autoridade e respeito que o portador inspira, a palavra suspende os adversários em pleno ataque, impedindo-os de cortarem a garganta um ao outro.
- Hayato-jijii? – pergunta Shou, chocado, sem afastar do pescoço da vampira a lâmina curva da naginata partida.
Ombreado pelos yokai mais novos, o velho tengu ergue-se sobre as próprias pernas, os seus pés bifurcados, cada um dos quais providos de duas garras aquilinas à frente e uma atrás, cravados no solo. Mantinha a habitual dignidade e autoridade, apesar dos cabelos, normalmente presos no topo da cabeça, caírem soltos pelo rosto e de ter folhas mortas na triangular barba branca que lhe desce até ao peito, onde, surpreendentemente, apenas espreita um hematoma por entre o meio aberto e largo quimono cinzento, em vez do rasgão sangrento que o golpe da vampira deveria ter deixado.
- Shou-kun – diz o ancião, dando a entender que o jovem devia baixar a arma e afastar-se da vampira.
O mais jovem dos yokai demora a cumprir a ordem, tendo dificuldade em lidar com a mistura de raiva, orgulho, alívio e surpresa que experiencia.
- Puff! – solta, ao recuar e colocar descontraidamente ao ombro a ponta provida de lâmina da arma cortada, rasgando um sorriso trocista para simular indiferença e procurar esconder aquilo que sente. – Parece que afinal, Shisho-jijii não foi abatido, só tropeçou.
Um dos outros yokai pretende repreender Shou pela rudeza, mas Hayato, habituado a ela e dando-lhe pouca importância, impede-o, voltando os olhos negros e longo nariz aduncado para a vampira. Eleanora baixa a katana e retribui o olhar, como se não existisse mais ninguém no mundo senão ela, aquele humanóide alado, de pele vermelha, e uma tensão de cortar à faca entre eles. Embora não parecesse, a batalha ainda não terminara…
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