O Cálice de Prata (3/5) – Sara Farinha

O cheiro da palha nas suas narinas confirmava a proveniência das picadas por todo o seu corpo. Abriu as pesadas pálpebras franzindo os olhos com a claridade. No céu azul, o sol ia alto, e o calor abrasava a pele do seu rosto. 

Sentou-se devagar, atento ao que o rodeava. O riacho corria a alguma distância das suas botas. Nas suas costas, o monte de palha que servira de leito ao seu sono pesado. Assaltado pelas memórias da noite anterior, levantou-se num pulo, balançando como um tufo de ervas ao vento. 

Aos seus pés, o cálice prateado jazia abandonado sobre a relva, sem qualquer réstia de cor reflectida na sua superfície. André apanhou-o e desceu em direcção ao curso de água. Encheu o recipiente, apreciando os azuis e cinzas, que voltaram a bailar no frio metal. Inclinou-o sobre os lábios e verteu o líquido na sua boca sequiosa. 

Satisfeito com o acalmar da sede passou o polegar pela lateral côncava do cálice, recordando a sofreguidão e a incapacidade da apaziguar, da noite anterior. A memória arrancando-lhe uma gargalhada que lhe fez vibrar o peito. Repudiou aqueles pensamentos, apertando o objecto contra o seu peito, desejando protegê-lo do olhar alheio. 

– Sente-se melhor? – uma suave voz feminina perguntou, fazendo-o dar um salto e rodar sobre si mesmo. 

A alvura da sua pele brilhava sob o sol glorioso, uns intensos olhos verdes devolviam o ar de espanto, coroados com um impressionante cabelo cor de bronze que lhe chegava à cintura e balançava solto ao vento. 

André sentiu o seu âmago comprimido desabrochar perante a esguia figura à sua frente. Estacando de lábios entreabertos, pupilas dilatadas e concentração férrea na beleza feminina, com uma miríade de desejo e contenção, que se elevava para lá do que sofrera na noite anterior. 

– Cavaleiro? 

– Estou bem. – André murmurou. 

– Folgo em saber. Até mais... – a mulher declarou, com um sorriso, enquanto o seu comprido vestido dourado revelava a renda brocada do espartilho que lhe cobria as costas. 

– Espere! – André bramiu, apertando o cálice de prata contra o seu estômago, e avançando uns passos. 

Os verdes olhos voltaram e incidiram sobre André. Percorreram-no de alto a baixo, fixando-se no cálice por um momento para voltarem, em seguida, à sua face. 

– A sua graça? 

– Elisabetta. 

– André Beaumont. – Declarou, com uma vénia que arrancou um sorriso a Elisabetta. 

– Encantada. – ela retorquiu, seguindo caminho. 



Observou o longo vestido amarelo desaparecer para lá da colina antes que as suas pernas obedecessem a qualquer comando mental. Correu atrás de Elisabetta, determinado a não a deixar partir sem mais. Estacou ao deparar-se com o burburinho natural das pessoas da aldeia, sem qualquer vislumbre do vestido amarelo, ou dos longos cabelos cor de bronze. Resignando-se, André trotou pelas ruas estreitas, rumo à casa senhorial. 

Aromas de pão acabado de cozer, carnes variadas e fruta arrancavam-lhe ferozes rugidos internos. O cheiro da adocicada pele humana provocava-lhe as narinas. A visão das mulheres, jovens e não tão jovens, remexia-lhe o cérebro e as suas partes baixas. A sede que arranhava as paredes da sua garganta ameaçava atirá-lo para o fundo do poço da praça central. O choque exercido sobre os seus sentidos acicatava-o a conquistar, a tomar aquilo que aplacaria os seus desejos. 

André trancou-se nos seus aposentos durante o resto do dia combatendo os constantes assaltos à sua sanidade mental. Combateu vontades com uma prece nos lábios e os joelhos enterrados em carvão quente. Mesmo na dor as ânsias brotavam, tomando-o e submergindo-o, num lago de exaustão e cobiça. As suas forças rareavam quando foi chamado ao salão principal para receber a resposta à missiva. 



– Vá! Entregue a mensagem ao Grão-mestre sem demora. – o nobre ordenou, voltando à perna de perú que roía com satisfação. 

– Parto imediatamente. – André retorquiu, assentindo com a cabeça. 



Montou Blanche Croix, sacudindo as rédeas e rugindo a ordem de marcha, embrenhando-se na floresta, confiando que os sentidos apurados da sua montada o guiariam através da escuridão. Parou quando se tornou óbvio que o breu o engoliria, a ele e ao seu cavalo, e o fundo de alguma ravina os abraçaria sem pudor. Amarrou a sua montada ao tronco de uma árvore, e procurou um canto para descansar, recostando-se numa enorme pedra coberta de musgo. 

O riso masculino despertou-o dum sono perturbado. Num pulo acocorou-se atrás do calhau e desembainhou a espada. Rastejou através das sebes altas, procurando a fonte das vozes humanas. 

Dois homens e uma mulher sentavam-se, à volta de uma fogueira, esperando a madrugada que não tardaria a desabrochar. O cheiro do vinho chegou-lhe às narinas, acompanhado das conversas desconexas dos três estranhos. O ritmo pulsante daquelas presenças cativou André como pouca coisa o havia feito até ali. Os primeiros sons da harmónica forçando-o a esfregar o rosto e inalar uma golfada de ar pelos lábios entreabertos. Levantando-se do tronco, a mulher meneou o corpo ao ritmo das vibrações melódicas do instrumento. Com a raiva a tomar as rédeas e o desespero no seu encalço André avançou, de espada em riste, sobre o trio desavisado.


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Parte 4:
Parte 2:
Parte 1:


1 comentários:

Vitor Frazão disse...

Até agora esta maldição continua a parecer-me muito light.

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