O Cálice de Prata (4/5) – Sara Farinha
A lâmina cortou o ar com um silvo. A cabeça do tocador de harmónica desapegou-se do pescoço e rolou pela relva. Com o retinir dos gritos da mulher nos ouvidos, André bloqueou um golpe directo, da espada do outro homem.
Cego, digladiou a sua arma, empurrando o homem para trás e bloqueando os seus fracos ataques. O sangue envolvia-o como uma mortalha conspurcada, impelindo a sua consciência a sair do seu corpo, isolando-o das consequências dos seus actos. Três estocadas e o homem tombava sobre uma pedra, o fogo iluminando os seus olhos esbugalhados e lábios ensanguentados, enquanto André descia a ponta da sua lâmina sobre o coração do desgraçado.
O pisar de folhas secas fê-lo procurar o último alvo, puxando-o através do negrume florestal, como se seguisse um incontornável desígnio superior. O viscoso líquido vermelho, tão semelhante à tonalidade da cruz cosida no seu peito, pendia da sua lâmina e manchava o manto branco. André avançou por entre as árvores, cheirando o ar que o circundava, deixando que a ténue brisa matinal o guiasse até ao aroma doce da mulher.
Embrenhou-se na vegetação, cego pela escuridão que o envolvia, e pelas vontades que o tomavam. O som de um pássaro assustado que levantava voo, o resvalar de pedras e esmagar de folhas, a coruja que cessava o seu monótono canto, impeliram-no a descer a encosta. A escassos passos, um vulto negro agachava-se atrás de uma das enormes pedras musgosas. Contornando o calhau, André fechou a sua mão calejada sobre a garganta da mulher, levantando-a e encostando as costas dela ao seu peito.
– Nunca correr das feras enraivecidas. – André murmurou-lhe ao ouvido, arrancando-lhe um gemido.
Sem largar o pescoço, afastou-a de si, atirando-a contra a rocha. Olhou-a no rosto enquanto sentia o oxigénio a rarear nos pulmões da sua vítima. Os seus olhos castanhos quase saíam das órbitas enquanto as lágrimas corriam copiosamente pelas faces. Manteve-se imóvel, segurando-a pelo gasganete, dividido entre a vontade de apertar a garganta até que nem um sopro de ar passasse, e o impulso de tomar o seu corpo e estraçalhá-lo com o peso do seu.
As sombras estremeciam à frente dos seus olhos e a camponesa simplória ganhou a forma de numa bela mulher de pele alva, olhos verdes e cabelo cor de cobre. A atormentada expressão facial da sua presa substituída pela placidez de Elisabetta.
– Impossível… – André murmurou, observando enquanto os trajes acastanhados assumiam matizes douradas e depois um brilhante prata, cobrindo a esguia figura com um manto que se colava ao seu corpo.
Largou-a e deu dois passos atrás. Ali, à sua frente, Elisabetta sorria profusamente. Os seus olhos verdes tomando os seus, fixando-os com desdém.
– O que fazes, cavaleiro?
– Como? – André balbuciou, deixando cair a espada ao seu lado.
– Que mal é que eles te fizeram? – ela perguntou, indicando com uma mão a pilha de corpos estraçalhados que jazia aos seus pés.
A visão do emaranhado de membros arrancou-lhe um vómito que o prostrou de joelhos. A enorme túnica branca, manchada de vermelho escuro, alguns tons mais fortes do que a cruz pregada no seu peitoral esquerdo. “Casto, sem luxo nem vaidade” já não se aplicava a ele. Ali jaziam os corpos de inocentes. Aqueles, que sem a justificação da guerra, haviam visto o fim chegar pela lâmina dum cavaleiro ao serviço de Deus.
– O que fiz eu? – André Beaumont murmurou.
– Mataste. Tomaste algo que não te pertence. Que não era teu por direito e que não pode ser devolvido. – Elisabetta entoou, a sua voz assumindo uma delicada cadência cantada.
– Verdade. – André sussurrou, escondendo o rosto nas palmas das mãos.
– Mas ainda tens algo que não te pertence e que tem de ser restituído.
André enfiou a mão pelas vestes manchadas de vermelho e retirou o cálice de prata do bolso interior.
– Devolve-o ao Guardião do Bosque. – Elisabetta ordenou, o verde dos seus olhos chispava brilhante em aprovação.
– Assim farei. – André assentiu, enrolando o punho à volta da taça e apertando-a até os nós dos dedos, brancos e espetados, perderem toda a semelhança com carne humana.
Elisabetta desvaneceu-se entre fetos e carvalhos enegrecidos pela noite.
André carregou o amontoado de membros, para a vala comum, perto do leito do rio. A terra escurecida manchava-lhe a pele, cobrindo o sangue seco que lhe adornava os dedos e a alma. A fome chicoteava-lhe o estômago, mas ele não comeria. O calor inchava-lhe os membros, mas ele recusava-se a despir o seu manto. O desejo queimava-lhe as entranhas, mas ele não o aliviaria. A sede estreitava-lhe a garganta, mas não iria saciá-la. Aliviar o que o consumia enquanto aqueles, deitados ali na terra, já nada sentiam… Não era benesse que pudesse reclamar.
Cobriu o último pedaço de carne humana com pesar, deixando-se cair sobre a terra molhada do leito do rio. Retirou o cálice de prata e tombou-o no curso de água enchendo-o até à borda. Observou deslumbrado a miríade de azuis, cinzentos e negros que bailavam na superfície prateada. Nada restava do arco-íris que emergira na primeira submersão ainda nas mãos de Corvo, o velho, à beira do riacho. Apenas as cores escuras dançavam sobre a prata, espalhando a ausência de cor à sua volta.
Inclinou o cálice encostando-o aos seus lábios gretados e bebeu sofregamente, o precioso líquido escorrendo pela garganta áspera e acalmando tudo em seu redor. Olhou-o de novo, já sem líquido, e sem qualquer emanação luminosa. Encostou-o ao peito e perguntou-se como iria se separar daquele estranho objecto? No seu íntimo, André Beaumont sabia… Deixá-lo ir seria abjurar da sua vida. O monte de terra escura, onde depositara os corpos, enquadrou o seu olhar. Enterrando o cálice no bolso do manto, tomou uma decisão. Outros haviam sido privados, ele seria capaz de renunciar de livre vontade. Levantou-se e, com ímpeto renovado, trilhou o caminho de volta através do leito do rio.
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1 comentários:
Ainda tem arestas a limar, mas já se começa a aparecer com uma maldição.
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