Crónicas Obscuras: Dança do Corvo (6/8) – Entre velhos amigos – Vitor Frazão

A única coisa que Hayato, como todos os da sua espécie, odiava mais que caminhar em vez de voar, era ter um tecto sobre a cabeça. Espaços fechados eram para vermes, seres que não conheciam a glória e liberdade de planar pelos céus. Excepto durante tempestades, escolhia sempre estar ao ar livre, por isso a pequena celebração que mandara preparar para Eleanora ocorrera sob as estrelas e a Lua. Nada de muito elaborado, pois o velho tengu era um guerreiro simples, pouco dado a luxos. Apenas uma toalha vermelha, numa clareira limpa, sobre a qual fora colocada uma mesa baixa, com sake e sushi, enquanto, para a vampira, fora reservada uma bela e pálida mulher, de longos cabelos negros, vestida apenas com um fino quimono íntimo, branco como a mais pura das neves. 

A refeição aproxima-se do fim. Hayato, sentado na toalha, de pernas cruzadas debaixo do corpo, fuma o seu delgado e longo cachimbo, lançando anéis de fumo, enquanto Sora e Shou levam a mortal drenada pela vampira. Apesar de completamente desidratada, a sua expressão é tranquila, como se tivesse adormecido pacificamente, para nunca mais acordar. 

O velho tengu vê Eleanora repor o haori negro desprovido de emblemas sobre o ombro, cobrindo o braço decepado. Levará tempo, mas voltará a crescer. Ela afirma-o e ele sabe que assim é, lembrando-se perfeitamente da noite, há quase 30 anos, em que lhe cortara um braço e quase a matara. Trocar o privilégio de caminhar sob o sol por imortalidade, a capacidade de curar feridas num piscar de olhos e insensibilidade à dor, parecia um bom negócio a Hayato. Pudesse a sua espécie executar tal transformação e ele não hesitaria, por impuros que os vampiros fossem considerados pelos yokai. 

Foram tais poderes que deram a vitória à vampira, embora de pouco lhe tivessem servido no passado. Hayato e Eleanora tinham o mesmo peso e força muscular, mas a velocidade superior dele tê-la-ia fulminado se ela não usasse o próprio braço com escudo, abrandando o golpe da katana do tengu por uma fracção de tempo tão pequena que era impossível de medir. Um batimento de coração. Um piscar de olhos. Quantas vezes a vida de um guerreiro era decidida nessas meras fracções? 

“Um bom combate” pensa Hayato, sorrindo com o cachimbo nos lábios, lamentando apenas não poder repetir a experiência tão cedo. 

- Ajuda este velho tolo a entender, Eleanora-chan – pede, afastando o cachimbo e voltando o rosto para os lábios da convidada, pintados com sangue fresco. – Decides colocar pé nestas terras numa época em que a tua presença era ilegal, tanto pela lei humana como yokai. Sofreste e passaste todas as nossas provas pelo direito a ficar, recebendo dos yokai o salvo-conduto que te permite caminhar entre nós. Privilégio conquistado por poucos Ocultos, devo acrescentar. Escapaste também à justiça humana, para a qual eras um alvo tão fácil, com os teus cabelos louros e redondos olhos claros, tão vincadamente estrangeiros. Mantiveste-te entre nós durante os turbulentos dias do fim da Era Tokugawa. Agora, com sakoku abolida há quase vinte anos, em que o teu aspecto já não é motivo para perseguição humana e que a Bakumatsu acabou, dando-nos algo parecido com paz, é que desejas partir? Sei que esta Era Meiji ainda tem muito que provar, mas já estiveste ao nosso lado durante pior. 

- Hayato-san – retorque, acariciando a bainha negra da sua katana desprovida de guarda, que lhe jazia junto ao joelhos – se é verdade que uma parte de mim deseja ficar e que os dias que se avizinham aparentem ser mais pacíficos que os anteriores, especialmente para uma Oculta estrangeira, também é inegável que, com o fim da Guerra do Ano do Dragão, os yokai se vêem, cada vez mais, obrigados a tomar importantes decisões sobre o seu lugar no mundo dos homens. Tokugawa acabou. Bom ou mau, o tempo dos Meiji não será igual. Hayato sabia-o bem. A abertura aos estrangeiros, que ele defendera como uma das razões para Eleanora permanecer, obrigara, e ainda obrigava, a mudar séculos de tradicional interacção entre os yokai e os humanos daquele país. Ao contrário dos oni, cuja tolerância e colaboração com os humanos variavam de indivíduo para indivíduo, durante séculos os tengu tinham lutado lado a lado com os samurais, aliando-se aos clãs dos senhores feudais que conquistavam o seu respeito. Agora, com a queda da nobreza feudal, erguiam-se vozes dissonantes. Alguns defendiam que deviam retirar-se completamente do mundo humano, procurando refúgio nas suas aldeias nas montanhas, tal como, segundo as lendas, os seus parentes do continente fizeram, há milénios atrás. Outros afirmavam que o melhor seria camuflarem-se na sociedade humana, tal como alguns Ocultos ocidentais. Eleanora tinha razão, cada espécie, cada indivíduo, teria de escolher como enfrentar aquele mundo em mudanças.


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