O Cálice de Prata (5/5) – Sara Farinha
– Corvo! – André Beaumont gritou, enquanto descia o leito do rio. O estreito curso de água agora relegado a um precioso fio que cirandava através das pedras musgosas.
Certo de que se encontrava no sítio onde sucumbira à sua ganância, voltou a gritar, recebendo em troca o som de inúmeras asas que levantavam da copa das árvores em voo desenfreado. Passou as costas da mão pela testa, limpando as gotas de suor, e perscrutou as margens. A floresta era uma presença viva em seu redor mas do encurvado velho, de milhentas rugas no rosto, não havia sinal.
– Não quer o cálice de volta? – André continuou, empunhando o recipiente acima da cabeça.
– Vens devolver o que roubaste? – os olhos negros do velho vibravam de satisfação. Tão perto de André que o fez dar um passo atrás e lançar a mão sobre o punho da espada.
– Assustei-o?
O rosto enrugado, os cabelos cinzentos quase azulados e o aspecto andrajoso permaneciam tal como André se lembrava.
– O que me fez você? – André bramiu, agarrando o homem pelo colarinho da sebosa camisa castanha e levantando-o do chão.
– Avisei-o. – O velho murmurou.
– Amaldiçoaste-me. Isso sim! Não sabes o que fiz… – André deixou morrer a frase, à medida que pousava o homem no chão molhado, e os seus olhos se turvavam com as memórias que o atormentavam.
– Veio devolvê-lo? – o velho perguntou, com um sorriso fino nos lábios.
– Sim.
– Agora é tarde!
– O que dizes? Não o queres? – André atirou, voltando a agarrá-lo pelos colarinhos da camisa, mas sentindo uma pequena chama de esperança a queimar dentro do seu peito.
– Foste escolhido. – o velho murmurou, olhando para trás de André.
Largando-o com um empurrão, André voltou-se para o sítio onde os olhos de Corvo haviam divagado, desembainhando a espada.
Elisabetta, num brilhante vestido prateado, era um reflexo da lua. O enorme traje composto por milhares de fios de prata enredados num espartilho e numa saia de cauda, emitia um brilho etéreo, que viajava até às retinas e as cegava a qualquer outro corpo ou cor. Os seus cabelos, antes de tom cobre, eram agora prateados como a luz da lua em pleno breu. O sorriso era pura luz, brilhante e assombroso, cegando tudo à sua passagem.
– Vês? Ela já não me quer. – Corvo murmurou, numa pilha de ossos e pele enrugada que caiu sobre o pequeno curso de água.
– Estou aqui. – André afirmou, a sua voz tremendo perante a imagem de Elisabetta.
– Bem vejo. Entrega o cálice ao Corvo. – Elisabetta ordenou.
Embainhando a espada, André ajoelhou-se à frente do velho.
– Não! – Corvo bramiu, as lágrimas escorrendo pelas rugosas faces, e embatendo na puída camisa castanha.
– Chegou a hora de um novo equilíbrio, Corvo. – Elisabetta declarou.
– Senhora… – Corvo assentiu, agarrando o pé do cálice que lhe era oferecido.
O toque de ambos sobre o recipiente arrancou um grito ao velho, cujo rosto se encarquilhou, até nada mais ser o que uma fina camada translúcida sobre protuberantes ossos. Uma rajada de vento erodindo pele e ossadas, o corpo dele desfez-se perante o olhar assustado de André. O cálice reluziu um intenso arco-íris antes de voltar a assumir os negros, azuis e cinzentos que emitiam nas mãos dele.
– Beaumont, trazes contigo dois objectos de valor. – a voz de Elisabetta soou, fazendo-o olhar para o sítio onde ela pairava sobre a floresta.
André deitou a mão à tira de couro que lhe apertava o, cada vez mais sujo, manto e retirou o cilindro que transportava. Os seus dedos tremeram ao desenrolar o pergaminho, arfando ao vislumbrar os selos do Grão-Mestre e do Senhor daquelas terras, que cobriam a margem inferior da mensagem. Absorveu as palavras com um pânico crescente, olhando para Elisabetta ao som das suas palavras seguintes.
– És o novo portador do Cálice da Vida.
– Não… – André murmurou num tom implorante.
– Tarde demais. – ela retorquiu com um sorriso, o seu corpo transformando-se em bruma, que encheu o cálice de pó prateado, sendo absorvido em seguida pelas côncavas paredes.
As mãos que seguravam o cálice eram de um velho enrugado. Passou a mão pelo rosto, cheio de protuberâncias que não tinha há pouco tempo atrás, sentiu-se definhar até ser um velho tal como aquele cujo corpo acabara de ruir à sua frente. Era um velho, mas na sua mente, tinha todo o Saber do Mundo. Ele era Vida e Morte, Bem e Mal, Tudo e Nada. Ele era o Corvo, o frágil repositório do Equilíbrio. O portador do Cálice da Vida.
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1 comentários:
Temática sobejamente corriqueira para a Idade Média, por isso suponho que é apropriada. Não é um mau conto, talvez um pouco banal, previsível e a precisar de polimento, mas não mau. 2,6 Estrelas.
PS: Espartilho não era de certeza, já que falamos da Idade Média e essa peça de mobiliário e apareceu no século XVI. A não ser que seja o primeiro espartilho da História. ;)
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