Sangue na arena - Vitor Frazão
O sangue jorra, misturando-se com a areia da
arena, e o público aplaude. Em tempos vivia para momentos como este, agora não
consigo ouvi-los sem pensar nas dezenas que protestam às portas da praça.
Odeiam-me, chamam o que faço um espectáculo
bárbaro, cadáver decrépito de costumes primitivos, sem lugar na sociedade
moderna. Aos seus olhos não passo de um assassino, um monstro. No outro extremo
defendem-me e à arte com os argumentos da tradição e de que são as lides que
perpetuam a espécie, que eles não existiriam longe dos aposentos farpados onde
os criamos. Não sei. Nunca me preocupei muito com isso. A paixão pela arte, por
si só, sempre fora mais que suficiente para me satisfazer, tal como a meu pai, ao
pai dele e incontáveis gerações da nossa família, sem carecer de qualquer
explicação ou motivo. Agora, apenas sei que nada nessa paixão e no amor dos fãs
me faz esquecer o ódio e desprezo dos restantes. Lembro-me acima de tudo dela….
Como é que ela conseguiu abalar todos os pilares do meu mundo, com tão poucas
palavras?
Costumava ser tudo tão simples…
O sangue escorre-lhe da boca, por entres os
lábios secos, atraindo gordas e negras varejeiras. Mesmo com o clamor da
multidão ouço-lhes o zumbido, quais agoirentos anjos da Morte. Porque as oiço?
Dantes nem dava por elas…
Tenta erguer-se, mas as forças faltam-lhe e
volta a cair na areia manchada de sangue, com o arfar mais pesado do que nunca.
Sei que ele não conseguirá pôr-se de pé.
Avanço para o golpe final, exigido pela
multidão, sentindo o intenso cheiro férreo do sangue a ascender da lâmina. Não
consigo evitar os olhos castanhos meigos, cheios de agonia e medo. Escolho
acreditar que me pedem um final rápido e dou-o. A investida, que se quer
certeira e elegante, sem esforço aparente, vibra-me até ao ombro, ao acertar em
osso. Só eu noto o quão desajeitado foi o golpe final, pois a morte ofusca os
demais.
A praça explode. Sinto vontade de vomitar,
algo que julguei ter abandonado com as primeiras actuações. Fecho o dentes uns
contra os outros e engulo o gosto azedo. Mesmo assim levanto o braço e sorrio.
Em breve o humano será arrastado para fora da
arena, a sua carcaça desperdiçada por uma espécie que nem sequer come carne. Na
praça não há um único touro sentado. Todos aplaudem, como se diante deles
estivesse o mais augusto dos heróis, e eu já não consigo entender porquê…
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
3 comentários:
Gostei muito da inversão de perspectivas. Quer se esteja a favor ou contra das touradas, temos aqui um óptimo pedaço de reflexão.
Já tinha lido o texto antes, e ainda assim voltei a apreciá-lo e às emoções que desperta no leitor. Gostei muito :)
Inverter os papéis é fácil, fazê-lo bem é que é difícil. Neste pequeno conto Vitor Frazão consegue cumprir esse objectivo de forma competente. A perspectiva do coiso (que nome se dá a alguém que toureia humanos? e será que se pode usar o verbo 'tourear'?) é bastante dramática e emotiva, sem cair em choradinhos.
É um bom ponto de partida para uma discussão sobre um tema nada consensual.
Enviar um comentário