Se uma árvore cai na floresta… - Vitor Frazão


A floresta abafava-lhe os guinchos de terror e os protestos desesperados, enquanto esperneava sobre as folhas secas. As lágrimas escorriam o negro do eyeliner para o verde da pele tingida da Noiva de Frankenstein, iluminada pela Lua Cheia.   
- Segura-a porra! – comandou o engravatado, que usava uma máscara de Presidente Clinton. 
- Estou a tentar! – disse o rapaz vestido de zombie. – Meu, se calhar não devíamos fazer isto… E se ela fala?
- Ela não vai falar – garantiu Clinton, sacando de uma navalha de ponta e mola. Intimidada pela lâmina, a vítima parou de debater-se e tentou conter o choro. – Se sabe o que é bom vai ficar caladinha. Vai ser o nosso segredinho, não é, Noiva? – Sorrindo debaixo da máscara sussurrou-lhe ao ouvido, passando a parte romba da lâmina pelo decote. – A nossa pequena travessura de Halloween.
- Por favor, não – implorou, lavada em lágrimas e ainda lutando para o afastar, embora o medo da faca a impedisse de o fazer com muito vigor.
- Chiuu, quieta – ordenou, puxando o vestido e usando a lâmina para o desfazer numa questão de segundos. – Olha para ela, mal pode esperar.
- Vê se te despachas! – atirou um terceiro atacante, vestido de palhaço, mal podendo esperar pela sua vez, ao ver a lâmina percorrer inofensivamente o corpo nu. O largo sorriso pintado pela maquilhagem e brilho sádico dos olhos tornaram-se ainda mais horripilantes à luz do cigarro morrente.
O som metálico do cinto de Clinton a ser desapertado ecoou pela noite, por entre o choro estrangulado, enquanto Palhaço apagava a beata no tronco do freixo atrás de si, apressando-se a procurar outro paivante nas roupas coloridas. Tão ocupado estava em levar o filtro à boca e a contemplar o espectáculo, focado na expressão aterrorizada da Noiva, que não fez caso do discreto assobio de advertência que lhe ecoou na mente, nem viu um olho verde-claro surgir no tronco do freixo.
A tampa do Zippo estalou para trás e o rosto disformemente maquilhado foi iluminado pela chama, que se apagou de repente, soprada por uma rajada inesperada, antes de acender o cigarro. O macabro palhaço nem teve tempo de protestar, pois foi de imediato agarrado na boca e cintura, por mãos castanhas, enrugadas e ásperas, sendo puxado para trás, contra o freixo. Batendo no tronco não sofreu o impacto duro da madeira, mas antes algo pastoso que o tragou para as entranhas da árvore. Estrebuchado como um desalmado sentiu a madeira em redor voltar a enrijecer, comprimindo-o à medida que se afundava.
- O que?... – protestou Zombie, pondo-se de pé de um salto e fazendo Clinton voltar-se para trás. Num piscar de olhos a única coisa que sobrou da intensa luta do companheiro foi um freixo ensanguentado, de onde emergiam duas pernas sem vida, ornadas com grandes sapatos vermelhos.
Junto ao tronco, onde o sangue corria espesso e negro, estava uma figura magra e alta, vagamente feminina, parecendo surgir detrás da árvore, quando na verdade vinha de dentro dela. O luar iluminou uma tatuagem composta por nós intercruzados ao longo de toda a pele castanha e enrugada. Erguendo a cabeça, revelou um par de olhos verde-claros, por entre o emaranhado de cabelos castanhos rebeldes, cobertos com folhas mortas.
Assustado, sem entender bem o que se passava, Clinton agiu por instinto, atirando-se de navalha em punho para a figura que caminhava para ele. A melíade nem hesitou, agarrou-lhe a mão toda e esmagou-a no meio da sua, tornando-a num molhe ensanguentado de dedos partidos. O infeliz ainda não tinha parado de gritar quando ela lhe pisou o joelho, partindo-lhe a perna como um ramo seco.
Aterrorizado, enquanto a Noiva se encolhia, procurando cobrir-se desajeitadamente com o vestido rasgado, Zombie virou as costas e tentou fugir, só que tropeçou numa raiz, que logo lhe rodeou o tornozelo, prendendo-o ao solo. Foi obrigado a ver enquanto uma choramingas versão do seu amigo era agarrado pela ninfa arbórea e uma vara emergia do solo, empalando-o. Clinton contorceu-se com todas as forças, mas nada pôde fazer à medida que o pau entrava pelo ânus, fazendo o caminho pelo interior e centro do corpo, evitando os órgãos vitais, e emergia pela boca, altura em que começou a desenvolver ramos e folhas, até se converter num forte, embora delgado, freixo de copa frondosa.
Terminada a árvore revestida com um humano moribundo, a criatura voltou-se para Zombie.
- Não! Não, não, não… Por favor – implorou, puxando pela raiz que o prendia com toda a força e depois esgravatando o solo tentando rastejar para longe, à medida que a ninfa se aproximava, lentamente. – Eu não queria. Foram ele que me obrigaram. Peço desculpa. Juro que não volto a… Espera, por favor. – Ela estava sobre ele. Raízes erguiam-se da terra húmida, enrolando-se aos membros e prendendo-o ao solo. – Eu não conto a ninguém. Prometo! Guardo segredo!
Centenas de finas varas penetraram todas as partes do corpo, excepto a cabeça, evitando pontos vitais. A dor foi tão intensa que ele nem conseguiu gritar ou sequer reagir quando a melíade lhe levou a mão à cara, perfurando-lhe os olhos e arrancando-lhe a fronte do crânio.
Mais calma, largou os fragmentos ensanguentado do rosto no solo da floresta, fazendo as varas dentro de Zombie expandirem-se, unirem-se em centenas de ramificações e puxarem-no para debaixo de terra.
- Obrigada – agradeceu Noiva, lavada em lágrimas, de joelhos no chão, abraçando-se como se quisesse proteger-se do mundo. Estava aterrorizada, mas satisfeita por aquela espécie de anjo vingativo ter intervindo, dando àqueles filhos da puta o castigo que mereciam. – Muito obrigada.
À volta de ambas, as provas da luta desapareciam. Palhaço e todos os seus restos eram absorvidos pelo freixo original e a árvore que brotara em segundo regressava ao solo, com Clinton ainda vivo nela.
Noiva ergueu os olhos para a figura que tapava o luar, vendo-a debruçar-se e agarrar-lhe em ambos os lados da cabeça, com carinho. Os seus olhos verdes eram meigos e tranquilizantes, como uma brisa primaveril, reconfortantes como um abraço materno.
Uma única palavra soou telepaticamente na mente da humana.
“Desculpa.”
Noiva morreu instantaneamente e o seu corpo foi tragado com delicadeza pelo solo da floresta. Não tivera qualquer prazer em matá-la e, de regresso ao freixo, talvez até soltasse uma ou duas lágrimas por a falta de paciência com os profanadores ter custado a vida a uma inocente, todavia, o segredo da sua existência precisava de ser mantido.       


2 comentários:

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Gostei do conto. Está macabro e tortuoso e... pareceu-me bem que a Noiva tivesse morrido.

Joel-G-Gomes disse...

No such thing as a happy ending. Gostei. Bem escrito, bons diálogos, boas descrições e um final não-feliz à maneira.

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