A noite de todas as sombras - Sara Farinha


Em cada novo dia adensa-se o cinzento dos céus, menos horas de luz e escasseia a claridade. Faltam as horas brilhantes, o calor abrasivo e os humores ligeiros. Carrega o espírito dos que se protegem da intempérie. Na noite de todas as sombras qualquer luz é esperança.

Um sopro de ar frio invadiu o escritório e Alina tremeu. Acomodada na poltrona verde, equilibrava um livro aberto nos joelhos, com as faces abrasadas pelo fogo vivo da lareira. Ainda assim, sentia nas costas a humidade incrustada nas paredes. Entalou a manta branca de lã entre os rins e o veludo cor de mofo criando uma nova barreira ao frio das paredes. Passou as costas da mão pela face, secando a lágrima que escorria, e voltou à página.
Da madeira soavam estalidos secos que ecoavam pela divisão, arrulhos indistintos compunham uma estranha melodia que a despertava do seu deambulo mental. Uma lamúria longínqua, seguida dum estrondo, impeliram Alina à janela.
Dezenas de pessoas rumavam de porta em porta, acompanhando grupos de crianças animadas pelos trajes e pelas recompensas. Um ritual banal… tão impossível.
Uma corrente de ar gelado percorreu-lhe o torso, abanando-a com violência. O calor da braseira nada significava para o frio que se adensava… Nem o calor a acompanhava. Os seus punhos enrolaram-se nos antebraços, espetando-se nas costelas salientes. Absorveu a imagem das crianças de todos os tamanhos até as lágrimas formarem uma barreira desfocada.
Disfarçado, o choro convulsivo de um bebé misturava-se no riso histérico das crianças. Sacudindo o curto cabelo negro, Alina fechou os sentidos ao mundo. Repetiu a litania que a trouxera para o lado dos vivos, tentando apaziguar o ardor que lhe invadia os pulmões pelas narinas.
Uma palma gelada pousou nas suas costas arrancando-lhe um tremor e uma inspiração violenta. Virou-se, nada encontrando atrás de si.
Por baixo da manga da camisola de malha, os pêlos do antebraço mexeram-se, provocando uma miríade de sensações. Sacudiu o braço e voltou a entalá-lo junto ao peito. Expirou profundamente, a névoa opaca pairando na frente do seu rosto.
Limpou as lágrimas que lhe gelavam o rosto e deixou-se cair sobre a poltrona de veludo verde, frente à réstia de calor.
Enrolou as pernas por baixo de si, cobriu-as com a manta e acariciou o livro contra o peito. Nos seus ouvidos, o choro sofrido da criança crescia, sons agudos entrecortados que ecoavam pelas divisões. Alina tapou os ouvidos com as mãos, apertou as pálpebras e murmurou com fervor, sendo imobilizada por um arrastado toque gélido na sua face.
Num pico de adrenalina levantou-se da poltrona e precipitou-se sobre o calor da lareira. Tropeçou na manta em que se enrolara e, tombando sobre o tapete, arrastou-o atrás de si, até chegar ao fogo. Aqueceu o corpo ignorando as picadas na pele, de olhos muito abertos vigiou a divisão, acompanhando o incessante ruído infantil.
Tecidos roçaram ritmicamente, deixando-a atenta à fricção dos panos. O apertão de dentes num dos seus mamilos fê-la gritar e proteger os seios com as mãos. Arrastou-se pelo chão, raspando as costas na parede. O choro esfomeado ecoou pela casa enquanto uma corrente de ar ártico lhe cobria a cara.
Contida por tecidos, de costas pregadas no estuque e com lacrimosos olhos negros, Alina descobriu o calor. Devorada por brilhantes chamas azuladas, estava pronta para enfrentar o frio invasor. Pronta para alimentar o nado-morto que a reclamava.


3 comentários:

rui alex disse...

gostei de ler, tem bastante suspense até ao final.

Selenyum disse...

Uma história bom construída com um final arrepiante!

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Gostei da envolvência do conto.

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