Eternas Palavras 2/2 - Pedro Cipriano

A discussão começou na manhã seguinte, ainda antes do pequeno-almoço. 


– Tu és louco! Queres desgraçar-nos a todos! – acusou a mulher roliça de meia-idade, num tom mais agudo do que os seus ouvidos podiam suportar. 

Ele olhara-a espantado através da porta da casa-de-banho. 

– Olha que tu não te faças desentendido, carago! Porque é que trouxeste um livro proibido para casa? – prosseguiu Cidália, aproximando-se de Rui e baixando o tom. 

– Não sei! – balbuciou, sem conseguir continuar a barbear-se. 

– Como não sabes? Eu é que não sei! Tu nem sequer gostas de ler! 

– Foi um impulso! – defendeu-se, encolhendo os ombros. 

– E por causa dum impulso metes a família toda em perigo? 

– Não pensei nisso... 

– Tu nunca pensas em nada. Digo-te mais, o livro aqui em casa é que não fica. 

– Mas... 

– Não há mas nem meio mas, carago! Para casa com o livro é que não voltas. 

– Como é que me vou livrar dele? Não posso simplesmente colocá-lo no lixo... 

– Arranja-te! É o teu problema! – sentenciou a esposa, virando-lhe as costas. 

*** 

Rui arrastava-se por entre a multidão. Era a hora de ponta matinal e o livro ainda estava na sua mala. Antes de sair, olhara para ele com um estranho sentimento de nostalgia. Era o “Viagens na Minha Terra” de Almeida Garrett. Nunca o tinha lido, nem tinha vontade de o fazer. Só não conseguia suportar a ideia de que iria ser destruído. 

Aquele governo começava a oprimi-lo. Por causa da guerra tivera de abandonar o seu curso de engenharia. Servira duas vezes na linha do Mondego, primeiro contra os Franceses e depois contra os Lusitanos. A única recompensa que recebera fora um partido único e autoritário, permanentemente no poder. 

De súbito, recebeu um encontrão violento e desequilibrou-se. Arrastou-se inclinado para a esquerda até cair num buraco. 

– Cuidado, carago! – alguém gritou. 

Rui tentava colocar-se de pé quando vários metros de terra se precipitaram sobre ele. De imediato perdeu os sentidos. 

*** 

A primeira coisa que lhe ocorreu quando voltou a si foi a surpresa de ainda estar vivo. Estava coberto de lama até à cintura e a têmpora esquerda doía-lhe. Uma jovem enfermeira prestava-lhe auxílio no passeio e vários curiosos observavam. 

Num instante de clareza, lembrou-se do livro e procurou pela mala. O nervosismo cresceu ao perceber que não estava com ele. Sabia que se caíra nas mãos de alguma autoridade ou bufo estava perdido. Constatou que talvez tivesse sido melhor ser enterrado vivo. 

– Olha, a minha mala? – perguntou à trigueirinha de cabelos encaracolados. 

– Qual mala? – inquiriu a enfermeira, piscando os olhos. 

– Eu tinha uma mala comigo! – exaltou-se, levantando-se. 

– Não sei de nada! E você vai ficar quieto até o médico chegar. 

Mais vale enterrado que queimado, repetiu para si mesmo para se acalmar. Pelo menos ainda poderia ser encontrado mais tarde. 

Pouco depois chegou o médico. Devido ao seu estado, Rui acabou por ser transportado para o hospital. Deveria permanecer internado até à manhã seguinte para observações. 

Ao fim da tarde chegaram os agentes da PSI. Ambos vestiam fatos coçados pela idade e tinham óculos do período pré-guerra. As gravatas de cores díspares completavam o conjunto que duas décadas antes seria ridículo. Contudo, naquele momento, eram o pior pesadelo de Rui. 

– Senhor Mendes, precisamos de falar consigo. 

Forçou um sorriso. Achava que fora demasiado ingénuo ao pensar que poderia escapar. Porventura se confessasse de livre vontade, a pena não fosse tão pesada, assumiu desalentado. Ergueu a face e fitou -os. Enfrentaria o destino com dignidade. 

– Nós achamos que o que lhe aconteceu não foi um acidente. Achamos que as suas funções como queimador de livros tiveram bastante relevância neste caso. Provavelmente você foi alvo de um atentado, mas pode ficar descansado que iremos encontrar o culpado e castigá-lo. 

Rui respirou de alívio, tornara-se um rebelde sem querer.




Eternas Palavras 1/2 - Pedro Cipriano


Rui despejou o conteúdo da última caixa no meio da praça. As pessoas convergiam em passo lento para o amontoado de livros. Um monte que havia sido escrito por Pessoa, Eça, Saramago, Camões, Torga e muitos outros. Na sua maioria eram edições antigas, quase desengonçadas, mas havia também bastantes em bom estado. 

Como empregado estatal, tinha de realizar este tipo de tarefas um par de vezes por semana. Era um trabalho como qualquer outro, pensou o funcionário de meia-idade, enquanto ensopava a pilha de papel em álcool. 

Meia dúzia de soldados assegurava que ninguém interferisse com o evento. No meio da multidão que se juntara, estariam à paisana outros tantos agentes da PSI, a polícia de segurança interna. E claro, havia bufos um pouco por todo o lado. Ao estado, muito pouco escapava. 

Olhou para o seu relógio e viu que eram 3 da tarde. Era o momento de dar início ao espectáculo. A chama propagou-se com facilidade do fósforo para as folhas. A multidão soltou urros quase frenéticos. Nunca percebera se eram de alegria ou revolta. O fogo alastrou-se e, foi então, que os livros começaram a voar. Rui deu uns passos prudentes afastando-se da fogueira. 

Uma menina, com uns dez anos de idade, que estava nas primeiras filas começou a chorar. Fora atingida por um dos muitos livros que eram arremessados para a fogueira. Os gritos aumentaram de intensidade atingindo um êxtase colectivo, bem perto das fronteiras da loucura. Algumas pessoas haviam sido atingidas pelos projécteis que cruzavam o ar e mesmo esses estariam na próxima queima. Face a esses incidentes, os soldados nem se haviam movido. Tudo aquilo era normal. 

Rui ficou feliz que nenhum desses escritores fosse vivo. Assim só se queimavam os livros. 

*** 

Rui permaneceu de olhar fixo na caixa de madeira. 

O estaleiro municipal estava vazio naquele fim de tarde de Domingo. Tudo estava arrumado no seu devido lugar, só não sabia o que fazer ao livro. O governo pseudodemocrático não proibia a posse de livros. Nem tão pouco a leitura e a discussão pública era desencorajada ou punida. Era uma sociedade mais fechada do que fora na sua juventude, mas ainda não chegara a extremos. O problema é que havia livros e livros. O que estava à sua frente pertencia à lista de incineração. 

Pegou nele. Parecia estar em bom estado, somente a capa estava dobrada das pontas e as folhas amareladas. Havia algo naquele livro que o fascinava e foi nesse momento que decidiu levá-lo para casa. Olhou em volta e não viu ninguém. Num ápice, guardou-o na sua mala de trabalho. 

Antes de passar pelos guardas já um suor frio lhe envolvia o corpo. Devia ser só a sua cabeça a pregar-lhe uma partida, reflectiu. Qual seria a probabilidade de o livro ali ter sido colocado em jeito de armadilha? Só de considerar a possibilidade, sentiu uma tontura momentânea. Estando já fora do edifício, era impossível voltar atrás. 

Os guardas mandaram-no parar. O coração disparou, não era nada vulgar isso acontecer. Pediram-lhe a identificação. Nervoso como estava, quase não conseguiu retirar o cartão de funcionário. A qualquer momento eles iriam aperceber-se que estava a esconder algo. 

O mais baixo observou com cuidado a credencial e depois pediu-lhe que abrisse a mala. Rui ponderou se haveria de correr. Não valia a pena, eles não teriam dificuldade em capturá-lo. Resignado, abriu a mala, amaldiçoando o momento em que agarrara o livro. Apetecia-lhe gritar para pararem de brincar com ele e só não o fez porque ainda tinha esperança de escapar. 

O polícia observou cuidadosamente o interior do saco velho e gasto. Os dois sentinelas trocaram olhares. Rui quase desmaiou, face à possibilidade de ser detido a qualquer momento. 

Com um ar aborrecido o agente levantou a mão, fazendo-lhe sinal para seguir. Rui não quis acreditar e, após um momento de hesitação, atravessou o portão. Se calhar, os guardas nem sabiam que livros estavam na lista de incineração. 

Caminhou pelas ruas da capital em direcção à Baixa, pois não havia transportes públicos ao Domingo. A tarde estava agradável, adornada por uma temperatura amena de início de Outono. Era quase hora de jantar. Os passeios estavam praticamente vazios e poucos eram os veículos que cruzavam o pavimento. Com essa paz, Rui pôde perder-se nos seus pensamentos. 

Tanta coisa havia mudado desde a Guerra Europeia de há 18 anos atrás. Tudo começara quando se ouviu nas ruas que Lisboa fora ocupada. Mesmo sem um governo, o povo quis lutar contra o invasor estrangeiro. Contudo, nem o fim da ocupação devolveu a união ao país. Ninguém percebera com que é que aquele governo chegara ao poder. Algo semelhante acontecera em Espanha, culminando com a junção do Norte com a região da Galiza. Essa divisão era o motivo pelo qual tudo o que invocasse o período em que Portugal era só um tinha de ser destruído. 

Ao abrir a porta do apartamento, as suas narinas foram invadidas por um delicioso aroma a frango guisado. Rui estava feliz por não haver escassez de galináceos nesse ano. A falta crónica de alguns bens de consumo era o preço a pagar por viver num pequeno estado isolado do resto do mundo. 
A sua esposa e os três filhos já estavam sentados à mesa. A fome que o consumia fê-lo logo esquecer o livro.



Inspiração, procura-se! 4/4 - Pedro Pereira

     Dionísio empurrou João para o centro da clareira, colocando-o bem à vista das duas figuras que ali se encontravam. Uma mulher esbelta, de longos cabelos castanhos que envergava um vestido branco e um homem alto de corpo musculado, que vestia uma túnica comprida. 

     – Olá – cumprimentou João, levantando a mão timidamente para acenar. 

     – Então é este o desgraçado? – questionou Calíope claramente enervada. 

     A musa observou o jovem escritor da cabeça aos pés. 

     – Sim, é ele – confirmou Apolo com a sua voz grave. 

    – Eu tentei ajudar, mas o tipo é esquisito. Não gostou de nenhuma das minhas ideias – comentou Dionísio. 

     – Se eu achasse que ele precisava da ajuda de um bêbado, tinha-o enviado para um bar em vez de o trazer para aqui – declarou Apolo. – E então? O que achas mulher? 

    Calíope continuava a observar João atentamente, como se aqueles grandes olhos castanhos lhe estivessem a sondar a própria alma. Fazia lembrar um escultor a analisar a matéria em bruto antes de esculpir uma obra de arte. 

     A musa respirou fundo e deixou escapar um suspiro. 

     – Já os vi bem piores… Talvez este tenha solução. Com um empurrãozinho na direção certa, pode ser que ainda nos venha a surpreender. 

     – Vai-me ajudar? 

     – Com uma condição – avisou Calíope. – Tens de me prometer não irás escrever mais um romance sobre canibais lamechas. Se queres escrever sobre canibais, ao menos eles sejam maus e viris! Não quero voltar a ver criaturas que brilhem ao luar e que andem aos saltinhos pela floresta como se fossem fadas! 

     João nem queria acreditar sobre o quão fácil seria manter aquele acordo. 

     – Está combinado! 

     – Ainda bem. Eu não sei se seria capaz de suportar mais uma desilusão… 

    – Lembra-te do que prometeste, rapaz! Quem tem de a aturar sou eu! Se te atreves a escrever uma palavra que seja sobre o assunto, garanto-te que te transformo numa galinha! 

     João engoliu em seco. 

     – Tem a minha palavra – assegurou. 

     Calíope aproximou-se lentamente de João e colocou-lhe as mãos no rosto. Inclinou-se sobre o escritor e beijou-o com os seus lábios sumarentos. 

     – Detesto esta parte… – comentou Apolo entredentes. 

     João sentiu uma onda de calor a percorrer-lhe todo o corpo. Quando a musa rompeu o beijo e se afastou, sentiu que via o mundo com outros olhos. 

     – Está feito – declarou Calíope. 

     – Obrigado, acho eu… 

     Apolo avançou na direção de João com ar decidido. 

     – Está na altura de voltares para casa – disse o deus. 

   – Se um dia quiseres tomar um copo para afogares as mágoas, é só avisares. Eu levo a bebida – prontificou-se Dionísio. 

     – Agora desculpa-me. Isto vai doer – avisou Apolo. 

     – O que vai?… 

     Antes que pudesse terminar a questão, a mão de Apolo acertou em cheio no rosto de João numa violenta estalada. O jovem julgou mesmo que os olhos lhe iriam saltar das órbitas com a força do impacto. 

*** 

     João acordou sobressaltado com uma dor intensa na bochecha direita, como se alguém lhe tivesse dado uma grande bofetada. 

     Olhou para o relógio em cima da secretária. Eram cinco da manhã. Não se lembrava de ter adormecido nem do sonho que tivera, mas sentia-se invulgarmente inspirado. Pegou na caneta pousada no tampo e começou a escrever. Surgiu-lhe de imediato a ideia de um romance com canibais e adolescentes, mas um estranho desejo de querer comer milho fê-lo parar. Talvez fosse melhor escrever sobre outro tema…




Inspiração, procura-se! 3/4 - Pedro Pereira


João olhava confuso para o suposto deus embriagado. Nada daquilo fazia sentido.
– Não, você não é um deus! Você está é podre de bêbado!
– Se eu não fosse um deus, podia fazer isto?
Num abrir e fechar de olhos, o sujeito rechonchudo desapareceu numa nuvem de pó púrpura sem deixar rasto.
– Ora bolas… – comentou João. – Onde é que ele se enfiou?!
– Aqui em cima!
João olhou para cima. Dionísio estava agora sentado num dos ramos de uma oliveira com um sorriso idiota nos lábios.
– Sou ou não sou um deus, hein?!
O peso de Dionísio era demasiado para o pequeno ramo e antes que João pudesse responder, o deus caiu da árvore, aterrando no chão com violência.
– Você está bem?
– Ai as minhas hemorroidas! – queixou-se Dionísio enquanto se colocava novamente em pé, sempre com cuidado para não derramar o precioso líquido da garrafa. – Agora que já esclarecemos isto do deus, resta saber quem és tu e o que fazes aqui.
– O meu nome é João e não faço ideia de como aqui vim parar. Estava a escrever e…
– Haha! Um escritor! Isso explica tudo! E o que raio estavas tu a escrever que fosse tão mau ao ponto de aqui vires parar?
– Estava a trabalhar no meu novo romance sobre…
– Não digas mais nada! Esquece essa ideia, eu tenho a solução para ti! O romance perfeito!
– Ai sim?
– Imagina um mundo repleto de magia onde um jovem, com uma cicatriz em forma de chávena de café na testa, é admitido numa escola de magia onde os alunos morrem aos montes…
– Mas isso é a história do Harry Potter!
– Olha que coincidência gira! – comentou Dionísio sem dar importância comentário.
– Bem, eu agradeço a ajuda, mas eu só quero mesmo voltar a casa.
– Tens péssimo gosto em bebidas e péssimo gosto em literatura… Vocês escritores são todos iguais! Acham-se todos superiores e não querem a minha ajuda! Que seja! Anda daí, eu levo-te à Calíope, pode ser que ela tenha a cura para o teu problema.
– Calíope? A musa? 
– Sim, os escritores são a especialidade dela. Felizmente que já recuperou daquela depressão…
– Depressão?
– Sim, há uns tempos atrás apareceu por cá uma escritora que tal como tu estava com problemas. Ela estava a escrever um romance sobre um canibal que brilhava ao luar e se apaixonava por uma rapariga sem sal.
– Isso soa familiar… – comentou João.
– A Calíope ajudou naquilo que pôde, mas era um caso crónico. Nem com a ajuda da musa o romance se safou e a Calíope entrou em depressão. Não querias saber o que é uma musa deprimida. Não é nada bonito de se ver!
Dionísio conduziu João por entre as oliveiras do Monte Parnaso. Apesar da distância percorrida não ser muita, o tempo que levou ainda foi razoável. O deus pura e simplesmente não conseguia andar direito de tão embriagado que estava. João teve mesmo que prestar auxílio algumas vezes para evitar a queda da divindade. Por fim, pararam junto a uma clareira.
– É sempre a mesma coisa! Tu trazes para aqui esses desgraçados e eu que os ature! – protestava uma voz feminina aos berros.
– O que é isto? – questionou João.
– Isto é a tua musa. Tens sorte, parece que hoje está de bom humor!


Os Kravyads 7/7 – Maus Augúrios – Vitor Frazão

     Suando em bica e arfando, como se tivesse acabado de subir a correr uma extensa escadaria, Nowak acabou a leitura, retirando as mãos ensanguentadas de dentro do cadáver e fechando as pálpebras, incapaz de suportar o poder dos próprios olhos por mais um segundo que fosse, à medida que uma violenta dor de cabeça ameaçava rachar-lhe o crânio. Maria ofereceu uma cadeira ao mestre, porém, este recusou, limitando-se a apontar insistentemente para os olhos, exigindo que as costuras fossem recolocadas de imediato e com elas o selo que encerraria o seu poder. Sem hesitação, a semi-humana inverteu o processo, voltando a coser as pálpebras com um sortilégio, e afastou-se sabendo que o mestre também recusaria ajuda para chegar ao lava-loiça. 

     Enquanto o Doutor despia a camisa ensanguentada, passando-a à assistente, revelando uma camisola interior branca de cavas, antes de começar a lavar o sangue dos braços cobertos de cicatrizes paralelas, Kunti mordia a língua para se conter de fazer perguntas, Isha não ousava sequer mexer-se e Anath olhava de soslaio para o caderno, pousado sobre uma cadeira, fingindo desinteresse. 

     O adivinho levou um bom bocado a lavar as mãos, braços e rosto, bichanando durante todo o processo, aparentemente tentando reorganizar ideias ou memorizar algo. Quando finalmente acabou, a eficaz e silenciosa Maria estava ao seu lado com uma toalha seca e uma camisa limpa que tirara da mala de viagem. 

     - Ano complicado, este que aí vem. Muitas mudanças para os que caminham na sombra do Homem – comentou ele, em português, pouco depois, ao mesmo tempo que abotoava a camisa, antes que Kunti pudesse perguntar o quer que fosse. – Precisarei de estudar as palavras com mais atenção… Muitas variáveis… Muitos caminhos, todos eles com ramos largos… – Era-lhe difícil concentrar-se num só pensamento, enquanto o cérebro entrava em hiperactividade para tentar deslizar todas as possíveis consequências e significados daquilo que vira. – Ainda bem que arranjaram um espécime tão bom… teria sido mais difícil com um inferior… Pena ser o último. 

     - O último? Como assim? O que viu? O que vai acontecer? – quis saber Kunti, sentindo-se alarmada, pois embora os rakshasas fossem imortais, no sentido mais lato do termo, não eram indestrutíveis. 

  - Tenho de estudar melhor… – disse Nowak, falando com os botões e colocando os óculos escuros. 

   - Doutor, porquê o último? – insistiu Isha, inclinando-se para a frente e apelando a todo o autocontrolo para não soar ameaçador. 

     - Mesquinhos rakshasas, não é o vosso futuro que merece mais estudo. Fosse tudo tão claro! – respondeu Nowak, abanando a cabeça perante a tacanhez dos devoradores de homens e vestindo o casaco. – O destino do mundo não é ditado pelos vossos umbigos, Kravyads. Disse o último, porque para o ano vocês já não estarão em Coimbra e eu terei de procurar outros caçadores. Será difícil encontrar alguém do vosso nível por aqui… Sim, é pena não poder ir com vocês... Mas não adianta, tenho de ficar… 

   - O que quer dizer quando afirma que não estaremos cá? – inquiriu Anath, como um misto de desconfiança e esperança. 

  - Mudar-se-ão ou pelo menos devem fazê-lo – esclareceu o adivinho, esforçando-se para os informar, embora preferisse gastar toda a energia mental a deslindar questões mais importantes. – Coimbra deixará de vos servir, não prosperarão nela como no passado, na verdade, tornar-se-á perigosa para vós. Partam. Quanto mais cedo melhor. A Sul poderão encontrar prosperidade durante alguns anos, mas as melhores oportunidades estão a Leste. Mantenham-se longe do campo, escolham cidades grandes, onde podem passar despercebidos entre a população. Madrid ou… 

   - Paris? – sugeriu Anath, não escondendo o brilho nos olhos perante a possibilidade. 

    - Sim, Paris é uma boa escolha – concordou o Doutor, passando a mão pelo queixo em reflexão, sendo impossível precisar se avaliava a situação dos Kravyads ou se pensava nos eventos que vira nas entranhas. – É uma terra mais fria do que estão habituados… contudo, cuidará de vós. Mantenham-se longe dos turistas, é o que aconselho. Desejo-vos boa sorte, rakshasas. Vamos, Maria – acrescentou apressadamente, abotoando o casaco e começando a dirigir-se para a saída, ansioso por chegar a casa e lançar-se de cabeça no trabalho, em busca dos verdadeiros significados das visões que tivera. 

     - Obrigado Doutor – agradeceu Kunti, desviando-se do caminho de Nowak, privilégio que não reservava a mais nenhum mortal. Estava irritada perante a perspectiva de recomeçar do zero numa cidade nova, contudo, não lhe passou pela cabeça ignorar o conselho do adivinho, a quem aquela família devia tanto – Anath, acompanha-os. 

     Enquanto a mãe se enervava, pensando no trabalho que as mudanças dariam, tentando esconder a apreensão, e o pai focava a atenção em desmontar o cadáver do humano, procurando calcular como levaria as provisões durante a viagem, Anath seguiu os convidados, dando por si a sorrir genuinamente pela primeira vez em décadas. Finalmente iria para uma cidade a sério, Paris ainda por cima! Lá sim, encontraria verdadeira diversão. 

     Imerso em pensamentos e caminhando com uma confiança que escondia a sua cegueira, Nowak alcançou a saída rapidamente, porém, quando abriu a porta, estacou, parecendo ponderar sobre algo, e revelou no rosto uma emoção que raramente utilizava, pesar. Antes de franquear a ombreira, fez duas coisas que Anath nunca o vira fazer, voltou-se directamente para ela e colocou-lhe a mão no ombro. 

    - Lamento, criança – afirmou, com sincera tristeza, retirando-se logo de seguida e começando a percorrer o corredor do prédio, que se encontrava imerso numa escuridão invulgar. 

     Essas duas palavras foram suficientes para manchar a alegria da rakshasi, roubando-lhe o sorriso e abalando-lhe a confiança, como nunca acontecera nos seus duzentos e trinta anos de existência. 

     - O que é que ele quis dizer com aquilo? – perguntou Anath, alarmada, agarrando o braço de Maria para a impedir de avançar. Assim que entrou em contacto com ela sentiu um ligeiro ardor e algo a mexer-se debaixo da pele da semi-humana, porém, manteve o aperto, exigindo uma resposta. 

     - O Mestre lamenta se lhe deu esperanças infundadas e pela sua perda, quando está tão perto de alcançar aquilo que deseja – respondeu Maria, com calma e cortesia, não se deixando intimidar e fazendo eco dos pensamentos de Nowak, como se eles fossem seus. – Ele sabe o quanto a mudança para uma grande cidade significa para si. 

     - Desculpa? – proferiu Anath, começando a sentir-se assustada. 

     - Receio que não viverá em Paris – disse a semi-humana, com compaixão na voz, pois sempre simpatizara com a jovem rakshasi. 

     - Mas ele disse?… Era uma mentira? – perguntou Anath, sabendo que estava errada assim que falou. Nowak nunca mentia. Podia ser vago, mas era incapaz de mentir descaradamente. 

     - Não, a sua família, de facto, encontrará prosperidade lá. Você não terá tal sorte – especificou a assistente, sentindo o aperto da rakshasi abrandar. 

    - Ele está errado – retaliou Anath, com mais choque do que confiança, largando o braço da semi-humana. 

     - É possível – admitiu Maria, não se sentindo ofendida com a contestação das capacidades do mestre, pois há muito que a aprendera que não existia predestinação ou sinas imutáveis, apenas probabilidades e tendências. – Nenhum futuro é inquestionável até ser passado. Foi por isso que o Doutor não o mencionou aos seus pais. Entenda-o como um pequeno agradecimento pelos vossos anos de bons serviços. Não obstante, as probabilidades são muito baixas. Não sabemos se morrerá antes de lá chegar ou ficará retida noutro sítio, apenas estamos noventa porcento seguros que não descobrirá aquilo que deseja… 

     - Ele está errado... – repetiu Anath, tentando manter-se confiante apesar de se sentir cada vez mais desanimada. Embora dez por cento não fosse o mesmo que zero, as hipóteses eram demasiado baixas para permitir mais do que uma fugaz esperança, especialmente, quando a sentença fora proferida por alguém como Nowak, que nunca errava. - Lamentamos e desejamos-lhe sorte – despediu-se Maria, fazendo uma ligeira vénia e sorrindo encorajadoramente, antes de seguir o mestre para a escuridão, deixando atrás de si uma rakshasi que, pela primeira vez na sua longa existência, sentiu como era ser destroçada por uma ilusão.




Os Kravyads 6/7 – Sacrifício – Vitor Frazão

     A previsibilidade dos acontecimentos, fez Anath revirar os olhos de tédio, enquanto se encostava à parede, cruzando os braços, e procurava imaginar-se noutro local, fazendo uma lista mental de sítios e actividades mais emocionantes, algo que não era difícil. 



     A cerimónia processava-se sempre da mesma entediante maneira. Após obter a confirmação da qualidade da vítima, Nowak retirava o casaco, que passava à assistente; arregaçava as mangas até aos cotovelos, expondo os antebraços polvilhados com marcas de cortes auto-infligidos no decorrer de outros rituais, e removia os óculos escuros, revelando que não só era cego como tinha as pálpebras cosidas, num padrão em ziguezague. Então, Maria esticava o braço esquerdo, colocando a mão a milímetros do rosto do Mestre, proferia duas palavras e as linhas dos pontos começavam a mexer-se, quais vermes, deslizando para fora da pele e enrolando-se nos dedos da semi-humana. Nessa altura, Nowak abria as pálpebras, revelando que dentro de cada órbita, no lugar do olho, tinha uma minúscula esfera amarela, que à primeira impressão parecia brilhar, mas na verdade sugava luz para a escuridão absoluta, aparentemente sem fundo, que ocupava a sua periferia. 

     Perante esta visão bela e aterrorizante, na qual temia perder-se, caindo para o abismo negro e infinito das órbitas, Luís quase desmaiou, agonizando por não conseguir fechar as próprias pálpebras, sendo forçado a assistir, indefeso com um cordeiro. 

     Pegando numa pequena faca, ferrugenta e ligeiramente curva, com um velho cabo negro em madeira, tirada da mala de viagem pela assistente, Nowak entoou uma lengalenga numa língua que Anath desconhecia, enquanto Maria sacava de uma caneta e de um caderno novinho em folha. Após fazer um pequeno corte no braço, o Doutor repetiu o processo na mão esquerda do humano, misturando o seu sangue com o dele e salpicando a substância na direcção de cada ponto cardeal. Por fim, com um golpe preciso e lento, abriu o ventre da vítima viva, de ilharga a ilharga, fazendo com que as tripas se erguessem, altura em que pousou a faca na bancada e meteu as mãos dentro do mortal, qual obstetra a ajudar um nascimento. 

    Concentrando-se enquanto remexia as entranhas, o Doutor analisou tudo o que percepcionava e ditou-o à assistente, numa língua morta que mais ninguém naquela sala compreendia. Num estado de transe parcial, a fala do adivinho era acelerada e desprovida de pausas, sendo apenas devido à sua vasta experiência e capacidades sobrenaturais que Maria conseguia apontar as palavras proferidas. Ocasionalmente, Nowak puxava órgãos para fora do corpo de Luís e estudava-os, com os seus estranhos olhos, virando-os e revirando-os, detectando neles mistérios inalcançáveis para os comuns mortais, alguns dos quais difíceis de ler mesmo com a sua mente prodigiosa. 

     O Doutor e a assistente encontravam-se imersos no trabalho em mãos, enquanto aos espectadores restava apenas esperar em silêncio. Anath aproveitou para experimentar ligeiras alterações no aspecto, mudando sinais, feições e cortes de cabelo, o que lhe valeu várias chamadas de atenção da mãe, executadas discretamente por medo de perturbar a cerimónia. A verdade era que, embora aborrecida pelo ritual e de mal com a vida, a jovem rakshasi tinha sempre esperança que as visões e conselhos do Doutor lhe concedessem a mudança que tanto desejava, convencendo os pais a partir para um local mais emocionante. Enquanto a filha escondia zelosamente tais sentimentos, os pais eram muito mais transparentes. Kunti esfregava as mãos em antecipação e receio, temendo que aquele fosse o ano em que seria profetizada a sua morte ou qualquer outra desgraça. Isha petiscava de uma malga de alumínio cheia de dedos humanos cozidos, que ocasionalmente oferecia à mulher e filha, ao mesmo tempo que analisava a qualidade dos órgão retirados e repostos por Nowak, procurando imaginar como os cozinharia. 

     Contudo, nenhum deles, rakshasa ou não, reconhecia o sofrimento de Luís, cujos olhos tremiam como se a alma quisesse fugir do corpo. Diante do terror de se ver indefeso, à mercê de um bando de sádicos que pretendiam esquartejá-lo vivo, a mente do humano disparou em dezenas de direcções: implorou a Deus e amaldiçoou-o; fez todas as promessas possíveis e confessou pecados; ponderou que nunca mais veria família e amigos; reconheceu a insignificância dos problemas que o haviam atormentado até então e lutou com todas as forças que tinha para se mover ou simplesmente gritar, sem qualquer resultado. Todavia, esta cornucópia de pensamentos evaporou-se perante a dor, quando a barriga lhe foi aberta e o Doutor começou a remexer-lhe nas entranhas. Infelizmente para o humano, morrer de um golpe no ventre pode levar várias horas de incomensurável sofrimento, não havendo o alívio de um final sujo e rápido ou sequer do torpor criado pelo acto de esvair-se em sangue. Paralisado, mas experienciando cada toque, Luís sentiu os seus gritos de agonia presos na garganta, sem escapatória possível, enlouquecerem-no, enquanto o tormento tomava controlo de cada parte da sua mente, levando-o a desmaiar e a acordar sucessivamente. 

     Após o que lhe apareceu uma eternidade, o veneno que o paralisara começou a perder efeito e Luís conseguiu mexer os dedos e as pálpebras, porém, por essa altura já não tinha forças para lutar, desejando apenas que lhe acabassem com o sofrimento. Eventualmente, o mortal viu o seu pedido atendido, quando os danos provocados aos órgãos, pela desajeitada violação do Doutor, se tornaram demasiado extensos. O fim não foi rápido, nem pacífico, apenas bem-vindo.





Inspiração, procura-se! 2/4 - Pedro Pereira

     João sentia-se como se lhe tivessem largado um piano de cauda em cima. Acordou com uma dor de cabeça cuja única palavra que lhe surgiu para a descrever era épica. Estava decidido, não voltaria a tocar em álcool nos próximos tempos. A luminosidade magoava-lhe os olhos, pelo que demorou a aperceber-se de onde se encontrava. 



     – Mas que raio?! 

     João deu por si deitado no chão de um extenso olival. Sentou-se e perscrutou o local. Talvez desse com alguma pista que lhe explicasse como raio é que ali tinha ido parar. 

     – Muita pinga ontem à noite? – questionou uma voz rude e animada. 

     João virou-se para ver quem falava. Para seu espanto, atrás de si estava um sujeito gorducho, careca e quase nu, não fosse pela espécie de saia branca que lhe cobria as partes privadas… O rosto rosado e a garrafa de vinho na mão não deixavam dúvidas, o tipo estava bem bêbado. 

     – O quê? Onde é que eu estou? 

     – Ena! Isso bateu mesmo forte! 

     Dando saltinhos anedóticos, o gorducho aproximou-se de João. O tipo tresandava a vinho… 

     – Onde estou? – repetiu João. 

     – Tu? Tu estás é com uma grande ressaca, meu! Toma, bebe isto que já passa – disse o sujeito soluçando enquanto lhe passava a garrafa. 

     – Não, obrigado. 

    Num abrir e fechar de olhos, o gorducho agarrou João pela cabeça e enfiou-lhe o gargalo da garrafa na boca, obrigando-o a beber o conteúdo. 

     João empurrou o sujeito e libertou-se do aperto, acabando por cuspir o vinho. 

     – Que desperdício de uma bela pomada! Fazes ideia de quanto tempo deixei este menino a envelhecer?! 

     – Mas você é louco?! 

     – Já vi que não sabes apreciar uma boa bebida! 

     Farto daquela situação e não querendo arranjar conflitos com o bêbado, João afastou-se e começou a deambular por entre as oliveiras centenárias. 

     – Se eu fosse a ti ficava sossegadinho, meu. O Apollo não gosta que andem por aí a bisbilhotar. 

     Quase que a deitar fumo pelas orelhas, João virou-se para o sujeito que insistia em segui-lo. O tipo tinha que lhe dar respostas e já! 

    – Apollo? Mas afinal que sítio é este, quem é você, e como raio é que aqui vim parar?! – Dionísio ao seu dispor. Bem-vindo ao Monte Parnaso – respondeu o gorducho com um sorriso matreiro enquanto fazia uma vénia desajeitada.




Os Kravyads 5/7 – Aquilo que o Doutor receitou – Vitor Frazão

     Como era habitual, o convidado e a assistente chegaram exactamente à meia-noite e cinco minutos, sendo recebidos por Anath, que os guiou para a cozinha, enquanto tentava esconder o tédio, perante aquela monótona tradição anual, atrás de uma máscara de cortesia e simpatia, função particularmente difícil, uma vez que a sua beleza e ilusões não afectavam o Doutor. 

      O recém-chegado era um homem pálido, alto e magro, com cerca de cinquenta anos, dedos compridos, feições cadavéricas, nariz aquilino e cabelo branco cortado rente. Vestia um fato e camisa preta, sapatos do mesmo tom e não usava anéis, nem relógio, apenas um par de óculos escuros, com lentes circulares pequenas e armação fechada, sendo completamente impossível ver-lhe os olhos. Era um indivíduo educado, mas sisudo, sorrindo apenas quando as convenções o exigiam. 

      Quanto à assistente, apesar de reflectir a indumentária sóbria e insonsa do mestre, na forma de um casaco largo, camisa simples, saia com bainha abaixo do joelho e sapatos rasos, sendo todas as peças azul-escuras, era muito mais sorridente, embora raramente mostrasse os dentes ao fazê-lo. Não era uma mulher completamente desprovida de encantos, contudo, perante a beleza sobrenatural de Anath, os seus trinta anos, pele morena, olhos azuis, cabelos lisos até aos ombros e feições delicadas, empalideciam. Tal como o mestre não usava jóias ou relógio, trazendo consigo apenas uma pequena mala de viagem. 

      - Saudações, Senhora e Senhor Kravyad – cumprimentou o convidado, em português, ao entrar na cozinha, executando uma fria e quase imperceptível vénia, ao mesmo tempo que tentava esconder o nojo perante o cheiro a carne podre do casal. 

      - Bem-vindo, Doutor Nowak – retribuiu Kunti, na mesma língua, simulando respeito, a um nível que rasava o servilismo. – Creio que arranjámos um belo espécime este ano – afirmou, afagando a cabeça da vítima apavorada. 

      - Veremos – respondeu o convidado. – Maria. 

      Perante o simples comando, a assistente baixou os olhos em concordância, pousou a mala no local mais limpo que conseguiu encontrar dentro da macabra cozinha, cuja decoração aliava sangue, serradura e pedaços de ossos partidos, a electrodomésticos enferrujados e móveis velhos, e esticou a mão para Isha. O rakshasa apressou-se a passar à semi-humana um pires, com o sangue que pouco antes retirara do braço direito da vítima, que enfaixara toscamente com um pano sujo. Recebendo a amostra, cheirou-a antes de molhar a língua nela, bebendo-a qual gato, e degustar o fluido vital por entre estalidos. 

      - Oitenta e cinco porcento – afirmou Maria, pousando o pires vazio num armário empoeirado. Nas raras ocasiões em que falava, um observador atento teria a oportunidade de reparar que a assistente de Nowak possuía minúsculos símbolos entalhados nos dentes e um discurso ligeiramente sibilado. 

      O Doutor lançou um meio sorriso de cortesia ao ouvir a avaliação, vendo-se forçado a reconhecer que a Senhora Kravyad tinha razão, aquele era um bom exemplar, certamente o melhor que os rakshasas arranjaram desde que iniciaram a aliança. Nowak era um fazedor de magia que se dedicava às artes divinatórias. Muitas eram as técnicas que utilizava para praticar o seu ofício, tendo uma predilecção pela hepatomancia, a leitura e interpretação das vísceras de animais sacrificados, particularmente do fígado. Não obstante, para ele nenhuma funcionava com maior eficácia e precisão que a observação dos órgãos de um humano vivo no decorrer de um lento e meticuloso sacrifício anual. O ritual nunca era perfeito, porém, escolhendo a altura em que a Lua estava na posição ideal e procurando a vítima adequada, tentava reduzir ao máximo o número de variáveis que poderiam interferir com a cerimónia. Por isso, fizera um acordo com aquela família de rakshasas, eles arranjavam o humano para o sacrifício e ele utilizava aquilo que aprendia com o ritual para os aconselhar no modo mais seguro e prospero de agirem nos decorrer do ano seguinte. Afinal, quem melhor para descobrir vítimas que uma raça que caçava humanos há milénios. Por outro lado, perante os novos perigos e desafios do mundo ocidental do século XXI, aquelas criaturas ancestrais precisavam de toda a ajuda que conseguissem arranjar…



Os Kravyads 4/7 – O cordeiro – Vitor Frazão

     Embora paralisado, o aterrorizado Luís manteve-se completamente desperto, experienciando tudo, por isso, quando entrou na cozinha, os seus sentidos foram atacados. O cheiro putrefacto emitido por Kunti tornou-se mais forte e passou a ser acompanhado por outro, no qual o férreo odor a sangue e o indistinto aroma a carne cozida se misturam. Moscas zumbiam à sua volta, tratando-se, na sua maioria, de gordas e esverdeadas varejeiras, enquanto se ouvia o som de água em ebulição e de sacos de plástico a serem fechados. 

      - A tua filha está impossível – acusou Kunti, enquanto esperava que o marido tirasse os últimos sacos de cima da robusta bancada ao centro da cozinha, para nela depositar a vítima. 

      Quando Luís foi largado, qual saca de batatas, a sua cabeça ficou virada para o lado e pôde ver um homem de etnia indiana, largo como um barril e com braços peludos, vestido com calças cinzentas coçadas, t-shirt e avental brancos, manchados com sangue, a atirar peças de carne ensacadas para uma grande arca frigorífica. O estudante podia ter-se iludido sobre a natureza desta carne, não fosse a visão de um pé inconfundivelmente humano, antes da arca ser fechada. 

      - Devias ter visto o como ela saiu à rua, Isha – continuou Kunti, enquanto o marido pousava o cutelo manchado de sangue e acabava de guardar as miudezas do “cliente” anterior. Embora a mulher e a filha não gostasse das tripas, rins e fígado, Isha não era tão selectivo pois, mais velho, lembrava-se bem de épocas duras, durante as quais nem isso conseguira arranjar, devido à concorrência com outros da sua espécie. O rakshasa aproveitava quase tudo, só as cabeças eram deitadas fora, após removidos os miolos, claro. – Sabes qual é o problema? Ela tem vergonha de nós e não tem respeito nenhum pela nossa herança cultural. 

      - Ela já comeu alguma coisa? – perguntou o marido, a quem o cabelo escasseava no topo, tendo, para compensar, um farto bigode negro. – Os dedos estão quase pronto. 

      - Ela tem tempo de comer durante o ritual – garantiu a mulher com indiferença, remexendo com uma colher de pau o conteúdo da panela que estava ao lume, fazendo com que alguns dedos humanos subissem à superfície. – Estão com bom aspecto… Não que ela te agradeça. Criança ingrata. Sabes qual é o problema? Mimámo-la. Ela nunca teve de roubar cadáveres ou caçar humanos com mais osso que carne em becos imundos. Fizemos-lhe as vontades todas. Ela quis ver o mundo, procurar emoção, viver numa cidade e nós, parvos, cedemos. Devíamos ter ficado em casa… 

      - Estava a pensar numa cidade a sério, LA, Paris ou Londres. Não isto! – atirou Anath, a partir da sala de estar. 

     - Estás a ver como ela me fala? – indicou Kunti, apontando para a porta com a colher de pau. – Ainda por cima tem os ouvidos apurados da megera da tua mãe. 

      - Sim, sim… – respondeu Isha, não se esforçando muito para fingir que prestava atenção aos queixumes da mulher, enquanto virava o rosto da vítima para o tecto e começava a analisar a peça, com as mãos ainda encharcadas com o sangue do “cliente” anterior, atraindo varejeiras. Aterrorizado e enojado, Luís tentou escapar, porém, não conseguiu mexer um único músculo. – Trouxe-nos um bom. 

      - Sim – concordou a esposa, admitindo a contragosto que, apesar dos seus muitos defeitos, a filha sabia escolhê-los. – Um pouco magrinho, não? 

      - Não, olha aqui – indicou Isha, puxando a manga esquerda de Luís para cima, apalpando e abanando-lhe o braço, sem que o humano, aprisionado dentro do próprio corpo, pudesse fazer o que quer que fosse para o impedir. – É tenrinho. Não tem muita gordura, mas também não é um desses ressequidos montes de músculo. Bah! 

      Embora os rakshasas não precisassem verdadeiramente de comer, eram incapazes de resistir ao sabor de carne humana, o único alimento que ingeriam. Era como um vício para eles, não diferente da nicotina ou álcool para um mortal, sendo-lhes impossível renunciar a tal dieta sem começar a ressacar. 

     - Acho que será bom para o ritual – adiantou Kunti, desligando o lume e esperando a confirmação do marido. – O que te parece? 

      Habitualmente, os Kravyads escolhiam as vítimas entre vagabundos e migrantes, para que o seu desaparecimento provocasse menos ondas, sendo tal selecção exclusivamente condicionada pela qualidade e quantidade da carne, porém, uma vez por ano, a selecção processava-se de modo diferente. Ocasiões como aquela exigiam que tivessem em conta outros factores, entre os quais, a personalidade e estado de espírito do “cordeiro”. Regra geral, a falta de pessoas que se importassem com a vítima seria uma vantagem, todavia, daquela feita, para que o ritual fosse bem-sucedido, o raptado precisava de ter pessoas que sofressem com o seu desaparecimento. 

      - Vamos ver – disse Isha, esticando o indicador esquerdo e fazendo com que a unha se retraísse para dentro da pele, ao mesmo tempo que na ponta do dedo surgiu uma fina e resistente agulha de queratina. Quando a sonda atingiu dez centímetros de comprimento, o rakshasa enfiou-a no ouvido direito de Luís, perfurando-lhe o tímpano e não parando até atingir o cérebro. Apesar das dores, o mortal paralisado foi incapaz de gritar, sendo o tremor dos seus olhos o único sinal de sofrimento. – Sim, muito bom… Inocente e perturbado, com um pequeno toque de escuridão na alma… Pais e irmão, uma família que o adora… não muitos amigos, mas leais. Sim… sentirão a falta deste… O seu desaparecimento causará muita dor, será óptimo para o ritual. Boa escolha, Anath! – gritou, para que a filha ouvisse o elogio, enquanto removia a agulha. – Um belo sacrifício este ano. Devias agradecer-lhe. 

     Kunti resmungou entre dentes, em concordância, dizendo que já o fizera, ao mesmo tempo que começava a ajudar o marido a despir o humano, em preparação para o ritual, antecipando a chegada do Doutor.




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