Inspiração, procura-se! 4/4 - Pedro Pereira
Dionísio empurrou João para o centro da clareira, colocando-o bem à vista das duas figuras que ali se encontravam. Uma mulher esbelta, de longos cabelos castanhos que envergava um vestido branco e um homem alto de corpo musculado, que vestia uma túnica comprida.
– Olá – cumprimentou João, levantando a mão timidamente para acenar.
– Então é este o desgraçado? – questionou Calíope claramente enervada.
A musa observou o jovem escritor da cabeça aos pés.
– Sim, é ele – confirmou Apolo com a sua voz grave.
– Eu tentei ajudar, mas o tipo é esquisito. Não gostou de nenhuma das minhas ideias – comentou Dionísio.
– Se eu achasse que ele precisava da ajuda de um bêbado, tinha-o enviado para um bar em vez de o trazer para aqui – declarou Apolo. – E então? O que achas mulher?
Calíope continuava a observar João atentamente, como se aqueles grandes olhos castanhos lhe estivessem a sondar a própria alma. Fazia lembrar um escultor a analisar a matéria em bruto antes de esculpir uma obra de arte.
A musa respirou fundo e deixou escapar um suspiro.
– Já os vi bem piores… Talvez este tenha solução. Com um empurrãozinho na direção certa, pode ser que ainda nos venha a surpreender.
– Vai-me ajudar?
– Com uma condição – avisou Calíope. – Tens de me prometer não irás escrever mais um romance sobre canibais lamechas. Se queres escrever sobre canibais, ao menos eles sejam maus e viris! Não quero voltar a ver criaturas que brilhem ao luar e que andem aos saltinhos pela floresta como se fossem fadas!
João nem queria acreditar sobre o quão fácil seria manter aquele acordo.
– Está combinado!
– Ainda bem. Eu não sei se seria capaz de suportar mais uma desilusão…
– Lembra-te do que prometeste, rapaz! Quem tem de a aturar sou eu! Se te atreves a escrever uma palavra que seja sobre o assunto, garanto-te que te transformo numa galinha!
João engoliu em seco.
– Tem a minha palavra – assegurou.
Calíope aproximou-se lentamente de João e colocou-lhe as mãos no rosto. Inclinou-se sobre o escritor e beijou-o com os seus lábios sumarentos.
– Detesto esta parte… – comentou Apolo entredentes.
João sentiu uma onda de calor a percorrer-lhe todo o corpo. Quando a musa rompeu o beijo e se afastou, sentiu que via o mundo com outros olhos.
– Está feito – declarou Calíope.
– Obrigado, acho eu…
Apolo avançou na direção de João com ar decidido.
– Está na altura de voltares para casa – disse o deus.
– Se um dia quiseres tomar um copo para afogares as mágoas, é só avisares. Eu levo a bebida – prontificou-se Dionísio.
– Agora desculpa-me. Isto vai doer – avisou Apolo.
– O que vai?…
Antes que pudesse terminar a questão, a mão de Apolo acertou em cheio no rosto de João numa violenta estalada. O jovem julgou mesmo que os olhos lhe iriam saltar das órbitas com a força do impacto.
***
João acordou sobressaltado com uma dor intensa na bochecha direita, como se alguém lhe tivesse dado uma grande bofetada.
Olhou para o relógio em cima da secretária. Eram cinco da manhã. Não se lembrava de ter adormecido nem do sonho que tivera, mas sentia-se invulgarmente inspirado. Pegou na caneta pousada no tampo e começou a escrever. Surgiu-lhe de imediato a ideia de um romance com canibais e adolescentes, mas um estranho desejo de querer comer milho fê-lo parar. Talvez fosse melhor escrever sobre outro tema…
Inspiração, procura-se! 3/4 - Pedro Pereira
João olhava
confuso para o suposto deus embriagado. Nada daquilo fazia sentido.
– Não, você
não é um deus! Você está é podre de bêbado!
– Se eu não
fosse um deus, podia fazer isto?
Num abrir e
fechar de olhos, o sujeito rechonchudo desapareceu numa nuvem de pó púrpura sem
deixar rasto.
– Ora bolas… –
comentou João. – Onde é que ele se enfiou?!
– Aqui em cima!
João olhou
para cima. Dionísio estava agora sentado num dos ramos de uma oliveira com um
sorriso idiota nos lábios.
– Sou ou não
sou um deus, hein?!
O peso de
Dionísio era demasiado para o pequeno ramo e antes que João pudesse responder,
o deus caiu da árvore, aterrando no chão com violência.
– Você está
bem?
– Ai as minhas
hemorroidas! – queixou-se Dionísio enquanto se colocava novamente em pé, sempre
com cuidado para não derramar o precioso líquido da garrafa. – Agora que já
esclarecemos isto do deus, resta saber quem és tu e o que fazes aqui.
– O meu nome é
João e não faço ideia de como aqui vim parar. Estava a escrever e…
– Haha! Um
escritor! Isso explica tudo! E o que raio estavas tu a escrever que fosse tão
mau ao ponto de aqui vires parar?
– Estava a
trabalhar no meu novo romance sobre…
– Não digas
mais nada! Esquece essa ideia, eu tenho a solução para ti! O romance perfeito!
– Ai sim?
– Imagina um
mundo repleto de magia onde um jovem, com uma cicatriz em forma de chávena de
café na testa, é admitido numa escola de magia onde os alunos morrem aos
montes…
– Mas isso é a
história do Harry Potter!
– Olha que
coincidência gira! – comentou Dionísio sem dar importância comentário.
– Bem, eu
agradeço a ajuda, mas eu só quero mesmo voltar a casa.
– Tens péssimo
gosto em bebidas e péssimo gosto em literatura… Vocês escritores são todos
iguais! Acham-se todos superiores e não querem a minha ajuda! Que seja! Anda
daí, eu levo-te à Calíope, pode ser que ela tenha a cura para o teu problema.
– Calíope? A
musa?
– Sim, os
escritores são a especialidade dela. Felizmente que já recuperou daquela
depressão…
– Depressão?
– Sim, há uns
tempos atrás apareceu por cá uma escritora que tal como tu estava com
problemas. Ela estava a escrever um romance sobre um canibal que brilhava ao
luar e se apaixonava por uma rapariga sem sal.
– Isso soa
familiar… – comentou João.
– A Calíope
ajudou naquilo que pôde, mas era um caso crónico. Nem com a ajuda da musa o
romance se safou e a Calíope entrou em depressão. Não querias saber o que é uma
musa deprimida. Não é nada bonito de se ver!
Dionísio
conduziu João por entre as oliveiras do Monte Parnaso. Apesar da distância
percorrida não ser muita, o tempo que levou ainda foi razoável. O deus pura e
simplesmente não conseguia andar direito de tão embriagado que estava. João
teve mesmo que prestar auxílio algumas vezes para evitar a queda da divindade.
Por fim, pararam junto a uma clareira.
– É sempre a
mesma coisa! Tu trazes para aqui esses desgraçados e eu que os ature! –
protestava uma voz feminina aos berros.
– O que é
isto? – questionou João.
– Isto é a tua
musa. Tens sorte, parece que hoje está de bom humor!