Filho de peixe sabe nadar 4/4 - Carlos Silva
Uma
procissão de vassalos prestava homenagem ao rei Sigmundo, que exalava os
últimos folgos de vida no seu leito. A rainha Guinei, sentada no trono,
escondia as lágrimas dos súbditos. Não era maior a tristeza de ver o seu marido
a morrer que a de saber que ainda não lhe fora capaz de dar herdeiros. Já
experimentara centena de poções e feitiços, sem que nenhum lhe desse um ventre
capaz de gerar uma criança normal. Todas as noites se remoía em culpa de ter
sido fértil para o elfo, mas não o conseguir para o legítimo marido. O mago
ainda a tentara convencer de que a falta de gestação era falha de Sigmundo, mas
Guinei exortara-o a calar-se e a não duvidar da virilidade do seu rei. No
entanto, a cada dia que se passava, a dúvida crescia a compasso com o seu
desespero. Teria de casar de novo. Como filha primogénita do falecido rei de
Lindura tinha o dever de dar um filho ao seu povo.
Um descomunal crocitar ecoou
pelo salão, seguido da entrada de um enorme vulto negro de asas abertas que,
quando tocou no chão, se começou a transformar na conhecida figura do mago da
corte. Com um gesto de mão o rei dispensou todos os vassalos e até mesmo a sua
rainha. O amanita abeirou-se da cama do monarca, deixando o meio-sangue no meio
do salão. Sigmundo agarrou a manga de Hiram e puxou-o para mais perto de si.
- Falhaste, mago – gemeu com
esforço. – Prometeste que darias um príncipe ao reino ainda antes do meu último
dia. Que me trazes tu? Um elfo? – Disse, apontando para o rapaz de cabelo verde
que observava as paredes de pedra, estranhando-lhes a falta de vida.
- Sabeis bem que o meu voto de
lealdade está enraizado em algo muito mais poderoso do que qualquer ética. Segui
à regra o que me pedistes: Aqui tendes um filho, nascido no ventre de Guinei,
educado nas finas artes da exigente sociedade élfica e nos saberes reais por um
mago experiente – disse, apontando para o príncipe Volter.
O rosto do rei encolerizou-se,
tornando-se vermelho, fazendo as veias sobressair como as raízes de uma árvore
antiga. Um ataque de tosse que o levou às lágrimas intercalou cada palavra
gritada:
- Nunca! Nunca compactuarei com
tal coisa! O reino precisa de um herdeiro, mas eu também preciso de um filho meu!
Nunca aceitarei que ele use o escudo deste país.
- O meu voto de lealdade é para
com o reino, não para com o rei. O concílio dos magos nunca exigiria outra coisa
de um dos seus. Aqui tendes um rapaz que irá dar um excelente rei sem que
Lindura tenha de passar por uma crise de sucessão. Se não o aceita, pior para
si, ninguém o ouvirá depois de morto e o sangue real que corre nas veias de
Volter passará em todos os testes.
- Como te atreves, insolente! Nem
um mago sabe quando chega a derradeira hora de um homem!
O sorriso de Hiram rasgou-se,
exibindo as duas fileiras cerradas de pequenos dentes pontiagudos.
- Oh, meu bom rei, tendes toda a
razão. Porém, um bom mago sabe quanto tempo demora cada um dos seus venenos a
trazer a morte. – O mago consultou o horológio que trazia na túnica. - O da
rainha Guinei deve estar mesmo agora a surtir efeito e o seu não deve tardar.
Resignado, engolindo o seu
orgulho e as lágrimas que lhe escorriam pela barba, o rei Sigmundo deixou-se
morrer serenamente perante o olhar frio do mago e do Príncipe Volter. O plano
arquitectado pelo amanita corria ágil e preciso, como os mecanismos do seu
horológio. Só faltava uma ponta por atar… Hiram olhou por cima do ombro e ali
estava ela! Vento que Anda entrava pela janela, sob a forma de um avejo que
certamente enganara para lhe roubar a essência. Tocando no chão, desfez a
mentira e tomou a forma de elfo, segurando um avejo morto entre os dedos que
depressa atirou para o chão com desprezo.
- Parabéns – felicitou, batendo
palmas sem entusiasmo - Um plano digno de um elfo! Confesso que não esperava nada
assim. Não sei…Talvez pela sua simplicidade…De qualquer modo, foste tão desleixado
na análise das leis que nem te ocorreu que tendo eu partilhado o leito com a
rainha e dando-lhe o filho com que continuar a linhagem faz de mim o legítimo
rei regente em caso do infortúnio que acaba de acontecer.
- Não te ocorreu pensar porque
foste tu o escolhido para ser o pai desta criança? Soberba! Todos os elfos têm
esse terrível defeito, mas tu ultrapassa-los a todos. Sabia que não resistirias
em reclamar o teu lugar por direito, colocando-te exactamente no lugar em que
eu te quero.
- E que lugar é esse, reles
amanita?
- Exactamente aí, onde estás, trespassado pela espada do filho que acaba de ver os pais assassinados.
Dito isto uma lâmina irrompeu pelo
ventre de Vento que Anda, revelando a presença até lá oculta por artes da raça
do meio-sangue. Ao ouvir o grito do elfo, a guarda irrompeu pelo salão de
lanças em punho, prontos a punir qualquer ameaça ao rei. No entanto, tinham
chegado tarde de mais, informou-lhes o mago, o elfo conseguira matar os
monarcas de Lindura. Felizmente, o filho há muito perdido tinha tornado a casa,
morto o regicida, e estava pronto para ocupar o trono.
Rei morto, rei posto.
O mago bateu-lhe nas costas amigavelmente, segredando-lhe
ao ouvido.
- Ides agora fazer o teste do sangue, perante o túmulo dos
seus antepassados e todos os nobres da corte. Não vos preocupeis, irá correr
tudo da melhor forma.
- Não vindes comigo, fiel amigo? Presenciar o momento eu
que sou aclamado como real herdeiro da coroa?
- Não, tenho de ir libertar Ruão da sua prisão élfica.
O choque estampou-se na cara de Volter.
- Mentiste-me! Dissestes que já o tinhas liberto!
- Meu príncipe, até parece que não reconheceis o valor de
uma pequena mentira em favor de um bem maior!
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4 comentários:
Agora só resta saber a índole do príncipe Volter.
Gostei de ler. Só acho que podia ser maior. Pelo que li dos outros textos do mesmo autor, a história teria a ganhar mais com mais desenvolvimento.
Talvez, não sei, como o plano precisava de um regicida (apesar de se saber que o rei encontrava-se moribundo) parece um bocadinho de nada conveniente o elfo aparecer justamente quando era pretendido, ele não tem propriamente um horológio :)
Não necessitava legalmente, mas por uma questão de aceitação. Volter é catapultado para posição de herói e herdeiro, na altura ideal, sem ter de esperar pela morte natural do pai. Não está em causa o rei, mas o reino. (tentei dar a entender que havia uma crise não só de sucessão, mas da política de gestão do reino, mas parece que falhei)
Quando ao elfo aparecer na altura certa. Confesso que é apenas um artifício literário. Podia metê-los a esperar uma hora ou duas pela chegada do elfo (ele chegaria, não deixaria a invasão da sua casa e roubo do que era seu sem castigo), mas sacrificaria o timing do conto.
Poderia ser maior, mas não seria um bom formato para o blog. Talvez tivesse feito melhor em escolher outro tipo de história.
Nota: Não me estou a desculpar dos erros :P Aceito-os a todos como meus.
Obrigado pela resposta, Carlos :)
Gosto de saber das decisões tomadas por trás da obra.
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